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CAPÍTULO III – O ARGUMENTO MULTICULTURALISTA

III. 1.4 – ESCAPANDO DO DILEMA?

Nancy Fraser apresenta a seguinte tabela, desenvolvendo as possíveis combinações entre reconhecimento e redistribuição em suas formas afirmativas e redistributivas:

REDISTRIBUIÇÃO:

ESTADO DE BEM-ESTAR LIBERAL:

Realocações superficiais de bens existentes; apóia a diferenciação entre grupos; pode gerar não-reconhecimento.

SOCIALISMO:

Reestruturação profunda das relações de produção; elimina diferenciações entre grupos; pode ajudar a curar algumas formas de não- reconhecimento.

RECONHECIMENTO:

MULTICULTURALISMO DOMINANTE;

Realocações superficiais de respeito às identidades de grupos; apóia a diferenciação entre grupos.

DESCONSTRUÇÃO;

Reestruturação profunda das relações de reconhecimento; desestabiliza diferenciações entre grupos.

(Fonte: Idem, pg 273)

No primeiro eixo horizontal são demonstradas as duas formas de redistribuição; a se dizer, o Estado de Bem-Estar Liberal e o socialismo. No segundo eixo horizontal são demonstradas as duas formas de reconhecimento, o multiculturalismo dominante e a desconstrução. Ao ver de Fraser, dois pares de remédios se complementam: o Estado de

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Bem-Estar Liberal pode se associar ao multiculturalismo dominante devido suas características de sanar superficialmente as injustiças sem mexer nas bases da sociedade que as geraram. Essa alternativa é tida como pouco promissora. Esses dois remédios tendem a perpetuar as injustiças a princípio combatidas.

Por outro ângulo, o socialismo pode associar-se a desconstrução por não apenas reconhecer universalmente o valor moral dos sujeitos que clamam por justiça, mas antes de qualquer, coisa por atacar as estruturas socioeconômicas e culturais sobre as quais a injustiça se assenta. Finalmente, nas palavras da autora: Tanto para gênero como para

“raça” o cenário que mais escapa do dilema de redistribuição/reconhecimento é o socialismo na economia e a desconstrução na cultura.

“Raça” e gênero necessitam de remédios ambivalentes, ou seja, necessitam de redistribuição e de reconhecimento. Aceitar essa assertiva não significa corroborar a tese multiculturalista. Políticas universalistas de reconhecimento de direitos podem conviver com políticas redistributivas. Aceitar uma redistribuição socioeconômica que beneficie as coletividades ambivalentes não está condicionado ao fato que elas necessitam de direitos especiais enquanto cultura.

Políticas, ou remédios distributivos devem ser aplicados a qualquer sujeito que esteja abaixo dos padrões compreendidos como justos – universalmente (como na idéia rawlsiana de justiça).

Fraser tenta superar o dilema redistribuição/reconhecimento. Não consideramos necessário retornar à exposição desse problema, devidamente esclarecido. O que nos chama a atenção é o fato que no afã de superar uma dicotomia, Nancy Fraser acaba caindo em outro abismo: o dilema afirmação/transformação. Para Fraser qualquer

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tentativa de conciliar remédios afirmativos com remédios redistributivos parece pouco promissora. Problemas ligados à injustiça socioeconômica só podem encontrar solução satisfatória no socialismo, bem como problemas de reconhecimento têm como único caminho promissor a desconstrução. Qualquer combinação híbrida é aparentemente rejeitada por Fraser. Por exemplo, Fraser ataca a idéia que a injustiça sofrida por uma coletividade ambivalente como “raça” possa ser sanada com a combinação de reconhecimento cultural através da desconstrução e de redistribuição através do Estado de Bem-Estar. A saída seria a combinação entre desconstrução e socialismo. Aqui reside a dicotomia, que ao nosso ver prejudica a tese de Fraser: não há saída fora do socialismo e da desconstrução! O que se coloca em xeque é a compreensão de remédio redistributivo apresentada por Fraser. Quando a própria autora reconhece os atuais conflitos como inerentes ao pós-socialismo e ainda apresenta que, apesar de epistemologicamente compreensível o socialismo é experiencialmente raro136, as soluções redistributivas seguem como uma utopia pós-apocalíptica, praticamente irrealizável.

Isso ainda não significa dizer que a tese de Fraser se demonstra incapaz de esclarecer analiticamente os conflitos contemporâneos137. Mas para a compreensibilidade

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Idem, pg 279.

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Uma das mais candentes críticas ao argumento de Fraser é realizada por Axel Honneth: In my opinion this critique is based on a grave misunderstanding … she inevitable takes on board the false premise of a historical opposition: between a politics of material interests and legal concerns, and a ‘politics of identity’. In short, as a result of the misleading periodization of the aims of social movements, the struggles for recognition comes to be understood as a demand that has arisen as a moral issue only very recently; thus it can be reduced to the single aspect of cultural recognition so that all others dimensions of the struggles for recognition remain ignored. HONNETH, Axel. Recognition or Redistribution? Changing Perspectives On The Moral Order of Society. Theory Culture & Society 2001(SAGE, London. Thousands Oaks and New Delhi), Vol. 18 (2-3): 43–55. pg 53.Nancy Fraser apresentaria pois, um falso dilema entre redistribuição e reconhecimento; esforços por redistribuição ao contrário do que Fraser argumenta estariam incluídos nos esforços por reconhecimento, e fazem parte do processo de generalização e efetivação de direitos das relações jurídicas. Em resposta a essa crítica, Fraser argumenta: Honneth, for example assumes a reductive culturalist view of distribution. Supposing that economics inequalities are rooted in a cultural order that privigies some kinds of labor of others, he believes that changes that cultural orders is sufficient to preclude

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de sua tese seja condizente tanto com os objetivos das coletividades em conflito quanto com a realidade política contemporânea, ela precisa de uma ampliação no conceito de redistribuição. O fato de as injustiças econômicas estarem fundamentadas em última instância no surgimento da propriedade privada, não significar afirmar que a justiça distributiva não será possível enquanto a propriedade privada existir, ou enquanto não for edificado o reino messiânico do socialismo. Também não se trata de deslegitimar os anseios socialistas, esse não é nem ao longe o objetivo desse trabalho; o que se apresenta é que a incorporação dos princípios rawlsianos de como os defendidos em Uma Teoria da Justiça parecem soar mais harmônica e realisticamente com as reivindicações de classes exploradas e coletividades ambivalentes em épocas pós-socialistas. O princípio socialista não precisaria ser descartado como objetivo para que se adote pragmaticamente a idéia rawlsiana e ainda sim dentro dos limites de justiça propalados por Rawls a sociedade ser considerada justa.

O que se afirma é que a desconstrução pode ser conciliada com um princípio liberal de justiça e ainda sim ser factível. Vamos ainda mais longe: em face à derrocada do socialismo de modelo soviético e a falta de um qualquer modelo de socialismo que venha assumir seu posto como projeto realizável hoje, não há como corresponder às expectativas contemporâneas por justiça redistributiva sem que se abra mão do pragmatismo, para além do modelo rawlsiano.

all maldistribution. FRASER, Nancy. Recognition Without Ethics? Theory Culture & Society 2001(SAGE, London. Thousands Oaks and New Delhi), Vol. 18 (2-3): 21–42.

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