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CAPÍTULO II: A ESTRUTURA DE DESENVOLVIMENTO DA MORAL

II. 3 – HEGEL E O SISTEMA ÉTICO

Semelhantemente a Kant, Hegel é um racionalista. Este também acredita que a razão, entendida como conjunto de normas e condições universalmente válidas, deve governar a realidade. Mas, para Hegel, a razão não é um fato e sim uma tarefa.

Hegel defende que esse governo da razão sobre a realidade não é possível enquanto a realidade não tenha se tornado racional. Essa racionalidade não é algo pré- estabelecido a priori, como a razão prática kantiana, mas sim algo que só é possível quando o sujeito irrompe na natureza e na história.

A substância viva é o ser, que na verdade é sujeito, ou – o que significa o mesmo – que é na verdade efetivo, mas só na medida que é o movimento do pôr-se-a-si-mesmo, ou na mediação consigo mesmo tornar-se o outro.90

A realidade para Hegel é compreendida como um processo, onde o Ser é a unificação dos processos contraditórios onde se desenvolve e no qual pode ser compreendido. Algo interessante a ser notado é que, para Hegel, nem tudo que existe é

real. As coisas existentes só são reais quando se comportam como o a mesma coisa no

interior de suas relações contraditórias e no desenvolvimento de suas potencialidades. Para citar um exemplo, podemos ter em nossas mãos uma semente de uma planta qualquer; obviamente que essa semente existe, mas sua realidade não “é” nem a planta,

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nem a semente nem seus possíveis frutos isoladamente, ela é, sim, a totalidade do movimento que vai desde a semente, passando pela planta até sua destruição.

Mas algo diferencia qualitativamente a planta do homem. O homem tem a possibilidade de compreender esse processo de desenvolvimento. Só o homem tem a consciência do movimento de transformação, daquilo que é e das possibilidades do que pode vir a ser. Essa é a característica básica da existência humana, a percepção e atualização de suas potencialidades à razão. O mundo real não é aquele que aparece fenomenicamente, mas aquele que é compreendido pelo pensamento racional.

Ainda há outra diferença entre um homem e uma planta. A finalidade de ser planta já está contida desde a semente. O homem por sua vez, além de compreender o processo no qual sua vida se movimenta, tem a possibilidade de desenvolver suas potencialidades livremente à luz da razão.

O homem é para si tão somente como razão formada, que a si mesma já fez o que é em si: unicamente essa é a sua realidade efetiva. Mas tal resultado é, ele próprio, imediatamente simples, pois é a liberdade consciente-de-si que repousa em si e não pôs de lado a oposição para deixa-la abandonada, mas, ao contrário, reconciliou-se com ela.

O que acaba de ser dito pode também se exprimir da seguinte maneira: a razão é o agir de acordo com um fim.91

A razão passa a ser uma força significante quando aparece na realização das potencialidades do sujeito. A razão é uma força histórica (Geist). Não existe para Hegel

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uma unidade imediata entre razão e realidade. Isso só é possível quando o sujeito molda a realidade pela razão, através da razão. Diferente da razão transcendental kantiana a razão para Hegel só faz sentido quando enquadrada num processo histórico – que se desenvolve no conflito, na contradição.

O mundo humano não começa com uma luta entre a natureza e o indivíduo. Para Hegel o indivíduo, assim como a razão, não é algo a priori na existência, mas um produto tardio na história.

No processo de desenvolvimento humano e de sua eticidade a primeira forma que a consciência assume é a comunidade (Allgemeinheit), essa comunidade apesar de nutrir uma união imediata entre o sujeito e objeto ainda não é racional. É essa união entre sujeito e objeto que Hegel denomina consciência.

Nesse primeiro estágio, não há uma consciência individual, mas ao contrário, uma consciência universal, encontrada no que Hegel denomina como consciência de grupo primitivo. Aqui todas as individualidades (sensações, sentimentos, conceitos) são determinadas pela consciência comum, pelo que é coletivo, e não pela individualidade. A consciência é determinada pelo que é universal, e não pelo que é particular.

Mas mesmo nessa unidade continua a existir oposições. A própria consciência só pode existir mediante a oposição aos objetos dessa consciência, ainda que essa oposição só exista no plano da subjetividade.

O mundo humano se constrói a partir de uma serie de integração de opostos. O segundo estágio é caracterizado pela oposição do individuo em relação aos outros indivíduos. O terceiro estágio é marcado pela união destes opostos numa na integração

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entre o sujeito e o objeto. Esses três estágios possuem três diferentes meios de integração: a linguagem, o trabalho e a propriedade.

SUJEITO MEIO OBJETO

1 CONSCIÊNCIA LINGUAGEM CONCEITOS

2 INDIVÍDUOS OU GRUPO

DE INDIVÍDUOS

TRABALHO NATUREZA

3 NAÇÃO; COMUNIDADE

DE INDIVÍDUOS

PROPRIEDADE NAÇÃO; COMUNIDADE

DE INDIVÍDUOS (Fonte: MARCUSE, 2004, pg 75.)

A linguagem é o meio pelo qual se processa a primeira integração entre o sujeito e o objeto. A linguagem é, portanto a primeira comunidade real, por ser objetiva e compartilhada por todos os indivíduos. Mas se por um lado a linguagem é o primeiro meio de integração entre o sujeito e o objeto, por outro também se mostra como o primeiro meio de individuação. Ao nomear os objetos que o rodeiam, o ser também determina seu território lingüístico. A linguagem permite uma tomada de posição do indivíduo contra seus semelhantes, de seus desejos contra os desejos de seus semelhantes.

Os antagonismos resultantes da oposição entre os indivíduos são integrados no

processo de trabalho. O trabalho se torna o processo condicionante das formas de

comunidade subseqüentes: a família, a sociedade civil, e o estado.

A primeira forma de integração determinada pelo trabalho ocorre na família. O trabalho une a família através da propriedade familiar dos objetos necessários à sua

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subsistência. Mas não existe apenas uma família proprietária, existe então um conflito entre grupos de famílias proprietárias. Nesse estágio os objetos sofreram uma apropriação por parte dos indivíduos, fazem parte de sua propriedade atual ou potencial. Os objetos foram incorporados ao mundo subjetivo dos indivíduos. Quando os homens fabricam os objetos, organizam-no como parte integrante de sua personalidade. Integrar os objetos significa instalar a natureza na história. É a luta de vida e de morte em torno do reconhecimento dos direitos à propriedade que marcam o segundo estágio do desenvolvimento da sociedade. A história passa a ser história humana.

É o advento das diversas unidades familiares que inaugura a luta pelo reconhecimento mútuo de seus direitos. Quando a propriedade passa a constituir parte da personalidade humana, sua defesa passa a ser um elemento fundamental da manutenção do indivíduo como indivíduo. Essa oposição só pode vir a ser superada quando os indivíduos puderem ser integrados na comunidade da nação.

É nesse processo de instauração da propriedade privada que a unidade familiar se converte na sociedade civil. Um dos objetivos do trabalho na sociedade civil é a produção de mercadorias. Hegel ressalta o caráter do trabalho e da mercadoria no contexto de uma sociedade capitalista e como isso pode degenerar e individualismo.92 Mas o efeito básico

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Em muitos momentos Hegel se aproxima da compreensão marxiana desses fenômenos. Marx denominava por fetichismo o processo pelo qual uma relação social definida, estabelecida entre os homens, assume a força fantasmagórica de uma relação entre coisas (ver O Capital. Bertrand Brasil, 1989. pg 81). A matéria é humanamente transformada pelo trabalho, e convertida em mercadoria. Ao se converter em mercadoria esta é valorada de acordo com outras mercadorias. O trabalho, individualmente produzido, é socialmente trocado. Mas essa troca não é protagonizada pelo indivíduo, é, antes de tudo, uma relação entre os objetos. São as relações entre mercadorias que moldam a estética do capitalismo para Marx. O valor de troca da mercadoria solapa seu valor de uso, reificando, portanto, as esferas de interação humana. O centro da sociedade deixa de ser o humano e se torna a mercadoria, a coisa. Antes de uma relação sujeito- sujeito, vemos uma relação entre mercadoria-indivíduo, objeto-sujeito e mercadoria-mercadoria, objeto-objeto.

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desse processo para a eticidade é que a sociedade civil inaugura um momento de direitos individuais protegidos pelo estado. Esses direitos tem como primeiro caráter a imputabilidade individual do indivíduo, defendem sua autonomia; mas por outro aspecto são universais, pois fazem que, com esses direitos os indivíduos não sejam responsáveis apenas perante si mesmos, mas por toda comunidade.

II.3.1 – RECONHECIMENTO NA DIALÉTICA DO SENHOR E DO