• Nenhum resultado encontrado

Capítulo I – O Direito Internacional Humanitário e os Jornalistas

1.5. Perda de proteção ao abrigo do Direito Internacional Humanitário – o caso dos jornalistas que

1.5.2. Comissão de crimes graves, nomeadamente incitamento ao genocídio

O incitamento ao genocídio pela comunicação social não é um fenómeno recente. Estamos perante uma situação em que os jornalistas deixam de ser as vítimas para serem os agressores, ou no mínimo, prestam auxílio aqueles que posteriormente cometem crimes contra a população civil.

Foi o genocídio do Ruanda, em 1994, que despertou as consciências para este papel desvirtuado dos media – a comunicação social podia ser usada como um instrumento de incitamento ao ódio, e estava a sê-lo de facto com uma eficácia surpreendente. A propaganda do ódio contra os Tutsi, na rádio RTLM principalmente, já se fazia sentir 4 anos antes dos acontecimentos que despoletaram a perseguição dos Tutsi e Hutos moderados222. Aos ouvintes da RTLM estava a ser incutida uma mensagem de violência, “their hearts and minds were being prepared for genocide”223.

Apesar de todos os sinais evidentes de que estava em marcha uma campanha de extermínio dos Tutsi, ninguém tomou medidas para o prevenir, como constatam vários autores, “[t]he international community does not need to wait for actual genocide to transpire before taking action to respond to its warning signs, including incitement”224. A conclusão destes

221 Recorde-se a este propósito que o artigo 30.º do Regulamento Relativo às Leis e Costumes da Guerra em Terra, anexo à II Convenção da Haia, de 29 de julho de 1899 dispunha que “o espião apanhado em flagrante não poderá ser punido sem julgamento prévio” (art. 30.º), numa clara afirmação de que os atos de espionagem, por si, não justificavam um castigo a quem os praticou sem que tal facto seja comprovado por um tribunal. No caso em análise supra, o jornalista está sob suspeita de praticar atos de espionagem, não tendo sido apanhado em flagrante, como dispõe o artigo 30.º do regulamento, mas sendo contudo, necessário um tribunal para apurar a veracidade da acusação.

222 “Over the previous four years, the radio and other media had engaged in vicious hate propaganda against the Tutsi population.” Cf. Wibke Kristin Timmermann, The Relationship between Hate Propaganda and Incitement to Genocide: A New Trend in International Law Towards Criminalization of Hate Propaganda?, LJIL, volume 18, 2005, p. 258. 223 Colette Braeckman, “Incitement to Genocide”, in Crimes of War, disponível em http://www.crimesofwar.org/a-z- guide/incitement-to-genocide-2/ [08/09/2014].

224 Irvin Cotler, Favid Grossman, “State-Sanctioned Incitement to Genocide: The Responsability to Prevent”, in’Hate

Speech’ and Incitement to Violence – Workshop Series, 2009, pp. 10 e 11, disponível em http://web.law.columbia.edu/sites/default/files/microsites/law-culture/files/hate-speech-files/Hate-Speech- Cotler.pdf [08/09/2014].

63

autores é suportada pela decisão do Tribunal Internacional de Justiça, quando se pronunciou, no contexto da aplicabilidade da Convenção para a Prevenção e Repressão do Crime de Genocídio relativamente à responsabilidade dos Estados na prevenção deste crime internacional, em concreto no caso bósnio225.

O acontecimento que despoletou a matança dos Tutsi foi o abate do avião em que seguia o Presidente Habyarimana. Nas horas seguintes ao incidente, a RTLM tomou uma abordagem mais agressiva contra a minoria Tutsi:

After President Habyarimana's plane was shot down, the radio called for a "final war" to "exterminate the cockroaches." During the genocide that followed [RTLM] broadcast lists of people to be killed and instructed killers on where to find them.226 O papel das rádios, principalmente da RTLM, nos acontecimentos que se sucederam de 6 de abril a 4 de julho de 1994, foi de tal forma bem sucedido que, em menos de 100 dias, mais de 800 mil Tutsis ruandeses foram brutalmente assassinados, assim como alguns milhares de Hutos moderados:

The message worked. By July of 1994, when the victory of the Tutsi-led Rwandan Patriotic Front (RPF) put an end to the genocide, up to 1 million Rwandans – mostly Tutsis, but also Hutus belonging to the democratic parties in Rwanda – had been slaughtered. The radios had been all too successful in inciting the genocide.227 A Convenção para a Prevenção e Repressão do Crime de Genocídio, de 9 de dezembro de 1948, proíbe os atos de incitamento ao crime de genocídio no seu artigo 3.º:

225 Em bom rigor, as palavras do Tribunal Internacional de Justiça, a propósito do caso relativo à aplicação da Convenção para a Prevenção e Repressão do Crime de Genocídio (Bósnia e Herzegovina contra a Sérvia e o Montenegro) foram as seguintes: “a State can be held responsible for breaching the obligation to prevent genocide only if genocide was actually committed. It is at the time when commission of the prohibited act (genocide or any of the other acts listed in Article III of the Convention) begins that the breach of an obligation of prevention occurs. In this respect, the Court refers to a general rule of the law of State responsibility, stated by the ILC in Article 14, paragraph 3, of its Articles on State Responsibility: “[…] 3. The breach of an international obligation requiring a State to prevent a given event occurs when the event occurs and extends over the entire period during which the event continues and remains not in conformity with that obligation.” This obviously does not mean that the obligation to prevent genocide only comes into being when perpetration of genocide commences; that would be absurd, since the whole point of the obligation is to prevent, or attempt to prevent, the occurrence of the act. In fact, a State’s obligation to prevent, and the corresponding duty to act, arise at the instant that the State learns of, or should normally have learned of, the existence of a serious risk that genocide will be committed.”. cf. Application of the Convention on the Prevention and Punishment of the Crime of Genocide (Bosnia and Herzegovina v. Serbia and Montenegro), Judgment, ICJ Reports 2007, pp. 221 e 222, parágrafo 431.

226 “The impact of hate media in Rwanda”, BBC, 3 de dezembro de 2014, disponível em http://news.bbc.co.uk/2/hi/africa/3257748.stm [07/09/2014].

64

Serão punidos os seguintes atos: (…)

c) O incitamento, direto e público, ao genocídio;

Ora, o papel que os media tiveram, antes e durante a perseguição aos Tutsi, sem margem para dúvida, é um incitamento, direto e público, ao genocídio. Este papel ativo no massacre foi reconhecido pelo Tribunal Penal Internacional para o Ruanda, no caso Ferdinand Nahimana e sobre o qual nos debruçaremos, oportunamente, mais adiante.

A proposta de convenção internacional da Press Emblem Campaign, que analisaremos posteriormente neste trabalho, prevê no artigo 2.º, n.º 5 a proibição do incitamento à violência, e concretamente ao genocídio pelos jornalistas, “[a]ll incitements by all media to violence, genocide, crimes against humanity, and serious violations of humanitarian law are prohibited”228. Aos jornalistas que incitem ao genocídio fica-lhes vedada a proteção prevista por este instrumento, que recordamos, não entrou ainda em vigor.

No entanto, os casos de jornalistas suspeitos de incitar ao genocídio multiplicam-se. A 30 de abril de 2014, Adama Dieng, Special Adviser da ONU para a Prevenção do Genocídio, emitiu um Press Release no qual manifestava uma grande preocupação por casos graves de

incitamento à violência contra as populações no Sudão do Sul, com o uso da rádio para tal: Of Particular concern to us, also, were the reports of the use of the radio in Bentiu to incite ethnic violence, including sexual violence against women.229

Adama Dieng não adianta qualquer detalhe da participação de jornalistas na violência que se está a verificar na jovem nação Sul-sudanesa. Em todo o caso, é preocupante que, uma vez mais, a comunicação social seja um adjuvante à violência, em vez de a combater.

228Draft proposal for an International Convention for strengthen the protection of journalists in armed conflicts and

other situations including civil unrest and targeted killings, cit.

229 “Media Briefing by Adama Dieng, United Nations Special Adviser on the Prevention of Genocide on Mission to South Sudan”, Press Release, disponível em http://www.globalr2p.org/media/files/media-briefing-adama-dieng-30-april- 2014.pdf [07/09/2014].

65

Capítulo II – Questões em aberto relativas à proteção dos jornalistas em