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Os jornalistas como membros da população civil e proteção decorrente do princípio da

Capítulo I – O Direito Internacional Humanitário e os Jornalistas

1.1. Os jornalistas como membros da população civil e proteção decorrente do princípio da

O princípio da distinção, como já fizemos referência neste estudo, é um dos princípios fundamentais do DIH. Fazemos referência primordial ao princípio da distinção, pois este é de importância vital para a proteção dos civis, mas mais importante ainda, para a proteção dos jornalistas, enquanto civis, em missão perigosa de conflito armado. Esta importância é tanto mais relevante, porque “there is a fundamental distinction between civilians and combatants, and between military objectives and civilian objects”148 que é mandatório respeitar durante as

148 “International Legal Protection of Human Rights in Armed Conflict”, United Nations Human Rights Office of the High Commissioner, Nova Iorque/Genebra, 2011, p.20.

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hostilidades. Este princípio tem a função de “proteger a população civil e os bens de caráter civil, [assim como estabelecer] a distinção entre combatentes e não combatentes”149.

Os jornalistas, enquanto civis que são e protegidos enquanto tal, têm neste princípio uma das primeiras “linhas de defesa” quando se encontram em missão perigosa de conflito armado. É a distinção entre combatentes e civis, neste caso, jornalistas, que delimita que os últimos não são alvos legítimos de ataque, na medida em que não estão a participar diretamente nas hostilidades.

O que distingue os jornalistas dos demais civis – e de certa forma justifica uma proteção diferenciada entre os dois – prende-se com a sua atuação perante as hostilidades. As populações civis, face à iminência de um conflito armado, têm a tendência natural para a fuga e o refúgio nos países vizinhos ou pelo menos para zonas do país onde as hostilidades não se façam sentir com tanta intensidade. Os jornalistas, por seu turno, apresentam o movimento completamente oposto. O foco de atração destes profissionais é a linha da frente das hostilidades, local que, por razões evidentes de segurança, não é apropriado para civis. Desta forma, torna-se ainda mais vital o respeito pelo princípio da distinção, neste caso, entre combatentes e jornalistas. O artigo 48.º do I PA, que transcrevemos supra, afirma essa distinção enquanto regra fundamental.

Os jornalistas, sem exceção, são civis à luz do DIH e gozam da proteção decorrente desse seu estatuto sempre que não participem diretamente nas hostilidades. Portanto, decorre deste princípio que os jornalistas não podem ser alvos de ataque, tal como definido no artigo 51.º do I PA “[n]em a população civil enquanto tal nem as pessoas civis devem ser objeto de ataques”.150 Esta proteção vigora sempre, salvo se os civis participarem diretamente nas hostilidades. Em sentido semelhantes, estão protegidas as instalações dos meios de comunicação social, pois constituem bens de caráter civil.151

Entramos, portanto, no domínio da necessidade de proteção de bens de caráter civil, mais concretamente, das instalações das estações de rádio e de televisão. Este assunto conheceu uma maior exposição pública, e consequentemente um maior debate em seu redor, no contexto do

149 Maria de Assunção do Vale Pereira, “O Princípio da Distinção como princípio fundamental do Direito Internacional Humanitário”, cit., p. 413 [interpolação nossa].

150 Artigo 51.º, n.º 2 do I Protocolo Adicional às Convenções de Genebra de 1949.

151 A este propósito reza o artigo 52.º do I PA o seguinte: “1 – Os bens de caráter civil não devem ser objeto de ataque

ou de represálias. São bens de caráter civil todos os bens que não são objetivos militares nos termos do n.º 2; 2 – Os ataques devem ser estritamente limitados aos objetivos militares. No que respeita aos bens, os ataques militares são limitados aos que, pela sua natureza, localização, destino ou utilização contribuam efetivamente para a ação militar e cuja destruição total ou parcial, captura ou neutralização ofereça, na ocorrência, uma vantagem militar precisa.”, cf. Artigo 52.º, n.º 1 e n.º 2 do I Protocolo Adicional às Convenções de Genebra de 1949.

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conflito do Kosovo. As instalações da televisão Sérvia, em Belgrado – a RTS (Radio Television of Serbia) – foram alvo de ataque a 23 de abril de 1999. A NATO considerou as instalações como objetivo militar, argumentando que estas eram usadas no sentido de espalhar uma propaganda pró-regime sérvio152. Por este facto, a NATO considerou as instalações da RTS como objetivo militar153, e portanto alvo de ataque, opinião suportada publicamente pelos líderes da NATO154.

Ora, que seja do conhecimento público, os jornalistas da estação de televisão sérvia não tinham qualquer participação no conflito, portanto não podiam ser considerados combatentes. Por outro lado, a RTS tinha sido instrumentalizada para difundir propaganda pró-regime, mas tal não faz dela um objetivo militar, porque a propaganda não pode ser entendida como uma participação nas hostilidades.

Também no conflito sírio os ataques a instalações das estações de televisão têm sido uma constante, como reporta a Amnistia Internacional. No relatório que publicou em 2013, Shooting the Messenger: Journalists targeted by all sides in Syria, a ONG faz um ponto de situação das adversidades que os jornalistas enfrentam naquele conflito armado e denuncia casos concretos de violação do DIDH e do DIH. No que concerne a ataques a instalações de média, o caso mais conhecido teve lugar a 22 de fevereiro de 2012 e destruiu o Homs Media Centre155, do qual resultou na morte da correspondente do Sunday Times Marie Colvin e do fotógrafo francês Remi Ochlik. O jornalista britânico Paul Conroy, que ficou ferido neste ataque, referiu à AI que o edifício estava sob vigilância nos dias anteriores ao ataque156. As forças pró-governamentais sírias são apontadas como as responsáveis por este ataque.

152 “At the time, NATO defended the air strike by saying the TV station was a legitimate target because of its role in what NATO called Belgrade's campaign of propaganda.”, cf. “NATO challenged over Belgrade bombing”, BBC News, 24 outubro de 2001, disponível em http://news.bbc.co.uk/2/hi/europe/1616461.stm [25/06/2014].

153 "[We need to] directly strike at the very central nerve system of Milosovic’s regime. This of course are those assets

which are used to plan and direct and to create the political environment of tolerance in Yugoslavia in which these brutalities can not only be accepted but even condoned. [….] Strikes against TV transmitters and broadcast facilities are part of our campaign to dismantle the FRY propaganda machinery which is a vital part of President Milosevic’s control mechanism.", (Final Report to the Prosecutor by the Committee Established to Review the NATO Bombing Campaign Against the Federal Republic of Yugoslavia, disponível em http://www.icty.org/sid/10052#IVB3 [25/06/2014]).

154 Recordamos a declaração de Clare Short, international development secretary do Reino Unido que afirmou: “This

is a war, this is a serious conflict, untold horrors are being done. The propaganda machine is prolonging the war and it's a legitimate target”. Este comentário estaria em linha com a opinião do então primeiro-ministro britânico, Tony Blair, que defendeu o ataque da NATO à RTS por entender que, por razões de propaganda do regime de Milosevic, esta constituía uma objetivo militar. Cf. “Serb TV station was legitimate target, says Blair”, The Guardian, 24 de abril de 1999, disponível em http://www.theguardian.com/world/1999/apr/24/balkans3 [25/06/2014].

155 Amnistia Internacional, Shooting the Messenger: journalists targeted by all sides in Syria, 2013, p. 27, disponível

online em http://www.amnestyusa.org/sites/default/files/shooting_the_messenger_-

_journalists_targeted_by_all_sides_in_syria.pdf .

156 Paul Conroy afirma que era possível ouvir, nos dias em que antecederam o ataque ao Homs Media Centre o som de um veículo de vigilância, vulgo drone, a circular junto da área em que estavam os jornalistas, “We had been hearing

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A 27 de junho de 2012, a estação de televisão Ikhbariya TV, em Damasco, foi alvo de ataque por grupos armados das forças da oposição. Do ataque, resultou a morte de 7 pessoas, 3 delas jornalistas. A Amnistia Internacional apela ao respeito pelos DIH durante o conflito armado, nomeadamente na proteção dos jornalistas:

As far as Amnesty International is aware, the Ikhbariya TV station is a civilian object and has not been used for any military purpose. In any case journalists and other media workers are civilians and must be protected from any deliberate and targeted attack.157

A proibição de ataque a objetivos civis vigora na medida em que não sejam usados com finalidades militares. Isto é, se uma estação de televisão for usada para o esforço da guerra, ou seja, que tenha uma utilização para fins militares. Neste caso ela pode tornar-se um alvo legítimo de ataque, ou seja, um objetivo militar, como decorre do art. 52.º do I PA supra transcrito. Contudo a questão não é pacífica. Natalino Ronzitti escreve a este respeito o seguinte:

The lawfulness of the attack on the Serbian radio and TV station in Belgrade is even more controversial. Radio and TV are dual-use objects, which can be employed for civilian use as well as for military purposes. If they are used for military communication, it is clear that they can be targeted. If they are used only for propaganda, their destruction does not give a “definite military advantage” within the meaning of Article 52, paragraph 2 of Protocol I. 158

Mais adiante, acrescenta que:

The view that media are a legitimate military objective, or may become one, is supported by the compilation of military objectives made by the ICRC in the context of its 1956 Draft Rules for the Limitation of the Dangers incurred by the Civilian Population in Time of War. According to that list of military objectives (which should have become an annex to Article 7, paragraph 2 of the Draft Rules), “installations of broadcasting and television stations” are military objectives. It must be added

the constant humming noise of a drone circling over the building for days before the attack; it sounded like a wasp circling the building and was possibly an unarmed surveillance drone”. Este jornalista atribui a autoria do ataque às autoridades sírias. Cf. Amnistia Internacional, Shooting the Messenger: journalists targeted by all sides in Syria, cit., p. 28.

157 Amnistia Internacional, Shooting the Messenger: journalists targeted by all sides in Syria, cit., p. 31.

158 Natalino Ronzitti, “Is the non liquet of the Final Report by the Committee Established to Review the NATO Bombing Campaign Against the Federal Republic of Yugoslavia acceptable?”, IRRC, n.º 840, 31 de dezembro de 2000, disponível online em http://www.icrc.org/eng/resources/documents/misc/57jqtc.htm [25/06/2014].

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that radio and TV stations are used (or can easily be used) for military purposes, i.e. for C3 (Command, Control and Communication).159

As draft rules do Comité Internacional da Cruz Vermelha de 1956, a que Ronzitti faz referência, entendia então no artigo 7.º que as instalações de rádio e de televisão podiam ser alvos legítimos de ataque em determinadas situações. Neste sentido, escreve Gabi Rado, tendo por base as regras do CICV de 1956, o seguinte:

Unbeknownst to most television reporters, customary law long ago deemed radio and television stations to be military objectives as are other military-industrial, military research, infrastructure, communications, and energy targets. The logic is that they can usually be put to military use and are essential for the functioning of any modern military in time of conflict.160

Curiosamente, o estudo do mesmo CICV a propósito das normas sobre o Direito Costumeiro aplicável em conflito armado, a regra n.º8, que define o que se entende por objetivo militar, nada diz a este respeito.

Por último, uma referência àqueles correspondentes de guerra que, estando integrados em forças armadas, usam uniformes semelhantes aos usados pelos combatentes dessas forças armadas. Nestes casos pode dar-se uma completa turvação do princípio da distinção. Na prática, não sendo possível distinguir entre um jornalista e um militar, por ambos se encontrarem vestidos de forma semelhante, o risco de ataque ao jornalista por forças armadas inimigas é muito mais elevado.