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Particular referência à proibição da exposição dos prisioneiros de guerra à curiosidade

Capítulo I – O Direito Internacional Humanitário e os Jornalistas

1.2. A proteção em caso de cair em poder do inimigo

1.2.2. Particular referência à proibição da exposição dos prisioneiros de guerra à curiosidade

A exposição dos prisioneiros de guerra à curiosidade pública constitui uma violação do seu estatuto de prisioneiro de guerra, tal como previsto pela III Convenção de Genebra de 1949. O artigo 13.º da referida Convenção, no segundo parágrafo, estipula o seguinte:

Os prisioneiros de guerra devem também ser sempre protegidos, principalmente contra todos os atos de violência ou de intimidação, contro os insultos e a curiosidade pública.

A proibição da exposição dos prisioneiros de guerra à curiosidade pública decorre, em larga medida, do princípio da humanidade. Ou seja, os prisioneiros de guerra devem sempre ser tratados com humanidade183, com respeito pela sua dignidade, integridade física e intelectual, etc. Sendo certo que, como afirmam Gordon Risius e Michael Meyer, “Article 13 of the Convention does not draw a clear dividing line between what is acceptable and what is a breach of its provisions”184, essa linha que os autores referem é muitas vezes cruzada de forma incauta pelos jornalistas.

No entanto, as imagens de prisioneiros de guerra veiculadas na Comunicação Social são, de certa forma, uma constante. Este facto não constitui, em si, uma perda de proteção por parte dos jornalistas que, no decorrer do seu trabalho, expõem os prisioneiros de guerra nos meios de comunicação social. Na invasão do Iraque pelos Estados Unidos da América, em 2003, várias foram as vezes em que prisioneiros de guerra apareceram nas televisões de todo o mundo. Sete

182 Emily Crawford, “The International Protection of Journalists in Times of Armed Conflict and the Campaign for a Press Emblem”, cit., p. 14 [interpolação nossa].

183 Knut Dörmann, Laurent Colassis, “International Humanitarian Law in the Iraq Conflict”, p.42, disponível online em http://www.icrc.org/eng/assets/files/other/ihl_in_iraq_conflict.pdf

184 Gordon Risius, Michael Meyer, “The protection of prisoners of war against insults and public curiosity”, IRRC, n.º 295, 1993, p. 292, disponível em http://www.loc.gov/rr/frd/Military_Law/pdf/RC_Jul-Aug-1993.pdf [30/07/2014].

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soldados americanos foram capturados numa emboscada em Nasiriyah, a 23 de março de 2003. No dia seguinte, foram alvo de uma verdadeira exposição pública levada a cabo por uma estação de televisão iraquiana. Essa exposição foi propagada por todo o mundo árabe através do canal de televisão Al Jazeera185. O resgate destes soldados viria a acontecer 3 semanas depois do início do cativeiro186. Dentro deste grupo de prisioneiros de guerra, a comunicação social deu espacial relevo ao resgate da soldado Jessica Lynch187.

Por outro lado, a Baía de Guantánamo e Abu-Ghraib ficarão marcados na história pelas piores razões, no que concerne à questão dos prisioneiros de guerra. No caso de Guantánamo, a comunicação social foi mantida à distância. Por esse facto, não há a identificação dos prisioneiros188.

Em Abu-Ghraib a questão assumiu contornos ainda mais degradantes da dignidade inerente aos prisioneiros. Embora as estações de televisão não tivessem tido acesso às instalações de detenção, várias fotografias e vídeos foram divulgados na comunicação social. Esses conteúdos multimédia mostravam os prisioneiros em posições humilhantes, alguns completamente despidos, outros encapuzados. As imagens mostraram ainda que foram usados cães para intimidar os prisioneiros. Não houve margem para dúvidas de que todos os limites, do respeito pela dignidade dos prisioneiros de guerra e da necessidade destes serem tratados com humanidade, foram largamente ultrapassados em Abu-Ghraib.

185 “Iraq puts captive troops on TV”, USAToday, 24 de março de 2003, disponível em http://usatoday30.usatoday.com/news/world/iraq/2003-03-23-pows-iraq-usat_x.htm [29/07/2014]. Ver ainda “Captured US Soldiers Show non Al Jazeera TV”, People’s Daily, 24 de março de 2003, disponível em http://english.peopledaily.com.cn/200303/24/eng20030324_113873.shtml [29/07/2014].

186 “A Nation at War: Freedom; Marines Discover 7 P.O.W.’s in town North of Baghdad”, The New York Times, 14 de abril de 2003, disponível em http://www.nytimes.com/2003/04/14/world/a-nation-at-war-freedom-marines- discover-7-pow-s-in-town-north-of-baghdad.html [29/07/2014]. Ver também em sentido idêntico, “Freedom for 7 American POWs”, SFGate, 14 de abril de 2003, disponível em http://www.sfgate.com/news/article/Freedom-for-7- American-POWs-2655443.php [29/07/2014].

187 A este respeito, um artigo particularmente curioso acerca da manipulação dos média em favor da máquina americana, encontra-se no sítio da internet do The Guardian. O artigo refere que o resgate da soldado Jessica roçou o “American folklore”, já que americanos transformaram este resgate num ato de pura propaganda americana (cf. “The truth about Jessica”, The Guardian, 15 de maio de 2003, disponível em http://www.theguardian.com/world/2003/may/15/iraq.usa2 [29/07/2014]).

188 “[S]howing prisoners of war at distance, from behind or blurring their faces to prevent them from being recognized

individually would be acceptable as it neither violates their dignity, nor jeopardizes their families or their return to their country. Prohibiting the transmission of images of prisoners of war as individuals, whilst permitting images of prisoners of war who cannot be individually recognized, seems the best way for a party to the conflict to reconcile protection of the prisoners or war’s dignity with the public’s need to be informed” (Knut Dörmann, Laurent Colassis, “International Humanitarian Law in the Iraq …” cit., pp. 43 e 44).

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No conflito armado que atualmente devasta a Síria, a Amnistia Internacional alerta para o efeito perverso que pode ter a exposição pública de prisioneiros189. Neste caso concreto não estamos perante prisioneiros de guerra como entendidos pelo DIH, uma vez que o conflito sírio é um conflito armado de caráter não internacional e neste tipo de conflitos armados, não há lugar à figura do prisioneiro de guerra.

A organização internacional de defesa dos direitos humanos afirma o seguinte:

Amnesty International is concerned that some published interviews with captives could end up serving the same purpose as public or televised “confessions”, where information provided by prisoners, often under duress, may be used as evidence against them or others allegedly involved in crimes. (…) Amnesty International urges journalists who enter Syria to take great care in ensuring that their journalistic activities are carried out in a manner that avoids putting vulnerable prisoners and captives at increased risk or torture, degrading treatment, unfair trail and cruel punishments.190

De acordo com a Amnistia Internacional, a exposição dos prisioneiros comporta um risco para os mesmos, na medida em que, quando libertados, estes indivíduos poderem vir a ser considerados traidores. Isto acarreta riscos para o próprio, mas também para a sua família como salientam alguns autores “being exhibited on television or in the newspaper may be extremely humiliating for a prisoner of war, […] [i]ndeed, being captured may be regarded as particular shameful in some cultures or, even worse, perceived as an act of treason which may subject the family of the “deserter” to reprisals”191.

Os jornalistas, mais concretamente os correspondentes de guerra, podem atuar como os agentes que expõem os prisioneiros de guerra, como podem eles próprios ser expostos, em caso de terem sido capturados, o que não deixa de ser uma dualidade interessante. Sendo certo que a primeira situação é bastante mais comum do que a segunda, a exposição pública de um corresponde de guerra, como prisioneiro de guerra, não acarreta grandes problemas para os mesmos, ao contrário dos combatentes, como já verificamos no caso do conflito armado na Síria. Não estará em causa qualquer problema de honra do correspondente de guerra, salvo se exposto

189 Por essa razão, a Amnistia Internacional, no relatório que elaborou a este respeito em que chama a atenção para a exposição pública dos prisioneiros sírios, não os denomina prisioneiros de guerra (prisoners of war ou POWs, na designação inglesa), mas simplesmente prisioneiros (prisoners e captives).

190 Amnistia Internacional, Shooting the Messenger: journalists targeted by all sides in Syria, cit., p. 21 [interpolação nossa].

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em situações que constituem em si tratamentos desumanos ou degradantes. Pelo contrário, há a forte convicção na opinião pública de que a exposição pública do correspondente de guerra serve de prova de que este não foi executado, ou alvo de outra situação fisicamente incapacitante ou degradante. Em todo o caso, nestas ocorrências, a III Convenção de Genebra prevê mecanismos de comunicação do prisioneiro de guerra com o exterior192, o que é em si igualmente prova de que estes não foram mortos, não fazendo, portanto, qualquer sentido da necessidade de exposição pública para provar que os mesmos não foram executados.

1.3. A certificação do estatuto de jornalista: um bilhete de identidade emitido pelo