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Como se escreve a história? Visões retrospectivas e causalidade(s) históricas

No documento História e historiadores no ICS (páginas 148-151)

A escrita de Valentim Alexandre incorporou pressupostos metodoló- gicas que vão sendo explicitados, no interior dos textos historiográficos, nos textos em que polemiza com outros historiadores e, por vezes, nos textos de natureza biográfica. Entre estes pressupostos conta-se a sua po- sição crítica em relação a visões retrospectivas ou teleológicas, posição que se concretizou numa insistência singular em descrever, por vezes de- tidamente, os cenários históricos alternativos, que podiam ter conduzido a outros desfechos. Creio que aí reside o sentido do título de uma das suas obras mais importantes, aqui analisada: os (vários) sentidos (possí- veis) do Império. As múltiplas vias que podiam ter sido trilhadas. Essa descrição permitiu-lhe desmontar a ideia de que alguns desfechos –

como, em 1821, a aceitação do regime constitucional pelo rei, ou, nos finais do século XIX, a entrada de Portugal na «corrida» a África – fossem naturais, e não o resultado de circunstâncias históricas concretas, ditadas por uma constelação complexa de factores mais circunstanciais ou mais estruturais. Assim, por exemplo, a propósito da vinda de D. João VI do Brasil para Portugal, depois da revolução vintista, Alexandre sublinha que essa vinda não era nem natural nem necessária, como uma leitura nacionalista da História poderia pretender. Pelo contrário, diz-nos, para o rei e para os estadistas que o aconselhavam teria sido tão plausível re- gressar a Portugal como romper com as Cortes e deixar Portugal «entre- gue a si próprio», se tivermos em conta a sua visão imperial da situação. Facto de que os liberais vintistas que discutiam no Parlamento tinham consciência e que temiam. Teria sido natural que D. João VI tivesse vindo, afirma ainda, se a nação fosse ela própria um dado natural, ideia com a qual não se identifica, como seria expectável e como se percebe lendo os parágrafos que dedicou à literatura sobre a criação das nações e do Estado-Nação na conclusão do livro.59

Do mesmo modo, o surto colonial português do século XIX, em vez do desaparecimento colonial de Portugal, não era evidente, ou natural. Como mostrou com a sua investigação, tinha sido precedido de um in- vestimento colonial anterior que o explicava e que carecia de ser expli- cado. Não era o resultado de uma «vocação colonial» que o tornava como que necessário, ou da existência prévia de um império territorialmente imenso, como sugeria o mapa cor-de-rosa de finais de Oitocentos.

A posição contrária a uma abordagem retrospectiva dos processos his- tóricos concretiza, como os dois exemplos anteriores mostram, a defesa da escrita da História como forma de desvendar nexos causais que o senso comum ou as mistificações políticas omitem e, por essa via, como forma de intervenção pública.

Outro evidente ponto de partida metodológico de Valentim Alexandre é a rejeição da explicação marxista da História e do correlativo primado da dimensão económica na explicação dos processos históricos.

Quando iniciou a leccionação da cadeira de História contemporânea, no ISCTE, Valentim Alexandre era, como ele próprio afirmou, marxista, embora numa versão gramsciana.60Foi esta a matriz ideológica do seu

primeiro livro, no qual a instância económica foi assumida como sendo

59Alexandre, Os Sentidos do Império..., 808 e segs. 60Alexandre, Pátria Utópica..., 287.

«determinante em última instância».61Nessa altura já se tinha aproximado

das gerações marxistas que reconheciam a autonomia das instâncias po- líticas e ideológicas na criação de sentidos, tendo sido esse o argumento com que mais tarde comprovou que este seu primeiro livro não confi- gurava uma abordagem economicista da História.62Os parágrafos con-

clusivos do livro confirmam esse posicionamento, pois o que neles se sublinha é que o Império português foi «o reflexo dessa relação entre o económico e o político, geralmente mediatizado pela ideologia».63Do

mesmo modo, viu-se como a explicação da conjuntura vintista assentou, em Os Sentidos do Império, na possibilidade do primado da política e da ideologia face aos interesses económicos e na valorização – que estará presente em todos os textos futuros – das diversas dimensões da vida das sociedades (económica, política, ideológica, diplomática, social) e da sua conjugação na explicação dos desfechos históricos.

Importa sublinhar, para terminar, que este caminho foi percorrido de forma reflectida. Nos parágrafos que lhe dedica em Pátria Utópica,64Va-

lentim Alexandre explicou as circunstâncias que o levaram a afastar-se dos modelos de construção do comunismo e respectivas teorias da His- tória. Esclareceu também que essas circunstâncias não determinaram um abandono absoluto da teoria marxista. Pelo contrário, continua a consi- derá-la interessante como perspectiva de análise de vários fenómenos, tais como a «mercantilização das relações sociais induzida pelo capita- lismo» .65Uma vez mais, foi a experiência concreta de investigação que

o levou a concluir que a «complexidade da evolução real dos povos» não era compatível com a explicação marxista da História,66do mesmo modo

que lhe fez compreender os limites do «[...] conceito de classe como se se tratasse de uma agente social, dotado de consciência e de vontade pró- pria. Existem, de facto, classes, como quadros em que a acção social se inscreve; mas quem age e pensa são as pessoas concretas, únicos sujeitos da História [...]».67

Esta última perspectiva é particularmente evidente nos seus textos, e em particular em Os Sentidos do Império, revelando-se num esforço cons- tante de interpretação das intenções presentes em cada momento, em

61Alexandre, «Crimes and misunderstandings...», 168. Nessa mesma página afirma que

a perspectiva marxista já não é (era) a sua.

62Alexandre, «‘Crimes and misunderstandings’...», 167-68.

63Alexandre, Origens..., 70.

64Alexandre, Pátria Utópica..., 287-290. 65Alexandre, Pátria Utópica..., 289. 66Alexandre, Pátria Utópica..., 289. 67Alexandre, Pátria Utópica..., 290.

cada atitude, em cada decisão política. A escrita detém-se, constante- mente, para interpretar a acção que descreve, a pequena acção, como se toda ela fosse intencional/racional, mesmo quando a avaliação errada das circunstâncias explica os «resultados não previstos» da História, assim como os previstos mas não realizados.68O facto, porém, é que a sua nar-

rativa está repleta de situações em que os sujeitos da História parecem não ter sido «pessoas concretas» mas antes mitologias, representações, equilíbrios de força que condicionaram os desfechos. Basta pensar, por exemplo, no que aconteceu com a política externa portuguesa em Os Sentidos do Império, de cuja leitura se retém que muito do que se deci- diu foi mais determinado pelo equilíbrio de forças internacional, no qual Portugal ocupava um lugar vulnerável, do que pela vontade dos agentes. Ou na força da ideia de Nação e no papel determinante que desempe- nhou no processo de desagregação do Império luso-brasileiro. Ou, ainda, nas narrativas mitológicas que ajudam muito a explicar os «elementos de irracionalidade» que condicionaram o modo como terminou o império português em África.

Importa salientar, finalmente, que o contacto de Valentim Alexandre com as várias teorias da História terminou numa atitude de distancia- mento crítico, que assumiu de forma plena e que transparece na sua forma de escrever a História: «Habituei-me assim, no meu trabalho de investigador, a proceder com inteira liberdade, não obedecendo a ideias feitas ou a preconceitos de escola.»69

No documento História e historiadores no ICS (páginas 148-151)