• Nenhum resultado encontrado

O historiador tardio

No documento História e historiadores no ICS (páginas 77-79)

Foi apenas nos últimos 25 anos da sua carreira que Manuel de Lucena assumiu de forma mais explícita a sua veia de historiador. Talvez o pri- meiro momento em que isso aconteceu tenha sido em 1991, com um artigo chamado «Salazar, a ‘fórmula’ da agricultura portuguesa e a inter- venção estatal no sector primário». Trata-se de um trabalho misturando história do pensamento económico e história da política económica, onde encontramos muitos dos traços identificadores da abordagem in- telectual típica de Manuel de Lucena. Desde logo, a subtileza interpreta- tiva, neste caso aplicada à evolução intelectual e política de Salazar. Sa- lazar começa por nos ser apresentado como um bem-intencionado reformista agrário de juventude que, na sua obra de 1916, Questão Ce- realífera, invectivava a predominância indevida do trigo na agricultura portuguesa e propunha uma «fórmula» visando reconvertê-la profunda- mente.5O trigo deveria ser largamente abandonado e o sector deveria

virar-se para a fruticultura, a horticultura ou a floricultura, em grande parte com os olhos postos na exportação. De acordo com Manuel de Lucena, terão sido as necessidades de acção política que fizeram Salazar sentir-se obrigado, por realismo, a transigir com os interesses dos latifun- diários alentejanos nos anos de 1930. A cultura do trigo foi profunda- mente apoiada pelo novo regime e o plano reformista abandonado.6

A sinceridade reformista de Salazar seria comprovada, de acordo com Lucena, pelo regresso, nos anos de 1960, ao programa original, embora pelo interposto delfim José Gonçalo Correia de Oliveira – na sua quali- dade de ministro da Economia entre 1965 e 1968.7Alteradas as condições

políticas, económicas e sociais do país, Salazar achou que podia, quarenta anos depois, voltar às ideias de juventude. E tocamos aqui num ponto fundamental da forma utilizada por Manuel de Lucena para abordar tanto o período do Estado Novo em geral como a acção do seu mentor, Salazar, em particular: a continuidade dos problemas e das soluções po- líticas. Segundo Lucena, não se pode dizer que tivesse havido uma polí- tica agrária «fascista»; o que existiu foi, antes, um problema agrário por- tuguês, que o Estado Novo tratou de formas diversas ao longo do tempo, algumas das quais o próprio regime democrático saído de 25 de Abril de 1974 deveria levar em consideração.

5António de Oliveira Salazar, Questão Cerealífera – O Trigo. Coimbra, Imprensa da Uni-

versidade, 1916.

6Lucena, «Salazar, a ‘fórmula’...», 103-128. 7Lucena, «Salazar, a ‘fórmula’...», 167-191.

Eis uma postura que se repetiu no conjunto de textos em que, de forma mais explícita, assumiu a sua qualidade de historiador – ou, talvez melhor, de biógrafo. Falamos de uma série de biografias de grandes figu- ras do Estado Novo, a começar pela do seu próprio chefe máximo, Sala- zar, e continuando por aqueles a que chamou os seus «lugar-tenentes»: Pedro Teotónio Pereira, Armindo Monteiro, José Gonçalo Correia de Oliveira, Franco Nogueira e Adriano Moreira.

A biografia de Salazar é uma peça historiográfica notável, que padece apenas do facto de ser incompleta (termina em 1945). No entanto, o ma- terial que apresenta corresponde a um esforço empírico e interpretativo muito importante para a compreensão da carreira do ditador. Manuel de Lucena pesquisou tudo o que foi escrito sobre Salazar em vida (da mais pequena nota a obras inteiras) e procurou seguir as grandes questões da sua carreira política de forma detalhada. Daqui resultou um retrato cuja complexidade é típica em Manuel de Lucena: «a vida portuguesa – política e não só – ficou profundamente marcada pelo tenaz e minu- cioso despotismo salazarista, sobre cuja existência nunca houve dúvidas. Só da sua exacta natureza [...] se continua a discutir: a) Aos adeptos mais entusiásticos, esse despotismo parecia admiravelmente esclarecido e salví- fico [...]; b) Mas inimigos jurados, de direita e de esquerda, garantiram que era um despotismo retrógrado ou reaccionário, geralmente liberticida, por força desastroso; [...] lá se vislumbra algum consenso acerca do ca- rácter autoritário do Estado Novo e do seu fundador, mas logo se revela insignificante porque demasiado genérico; com efeito, falar em autorita- rismo sem mais pouco adianta; e ao de Salazar chegam certos opositores a considerá-lo uma espécie do totalitarismo [...], sem quererem ver que as duas categorias se excluem; ao passo que certos adeptos, privilegiando o critério das hecatombes (em Portugal o sangue correu bem menos do que noutras autoritárias ou até democráticas paragens), o mostram tão moderado que facilmente sobrevém a tentação de o situar nos arredores imediatos da ocidental democracia».8

A variedade de olhares sobre Salazar que Manuel de Lucena recenseou também se reflecte na variedade de posições que o próprio tomou ao longo da vida. A biografia de Salazar enquanto homem político constitui um bom complemento humano (digamos) ao estudo do Estado Novo enquanto regime ou estrutura institucional, em particular numa ideia cen- tral que Manuel de Lucena sempre repetiu: a de que as instituições do re-

8Lucena, «Salazar, António de Oliveira», in Dicionário, orgs. António Barreto e Maria

gime, mais do que a rigidez que muitas vezes lhes foi atribuída, eram afinal bastante flexíveis, podendo acomodar mudanças políticas drásticas. Com Salazar, ter-se-ia passado o mesmo: «diz-se [que as ideias de Salazar foram] invariáveis, inabaláveis ao longo de toda a sua carreira política [...] [e que assentaram em três valores essenciais]: Deus, Pátria e Família. [...] Mas, no caso [...], deram-se no quadro da ideologia imutável grandes mudanças de atitude política: [...] [Salazar] começou por sustentar o primado da educação sobre a acção política e depois [...] [acabou] por se achar à frente de uma revolução que foi legal antes de mental. Do que se lamentou... Elogiou, em novo, o tolerante liberalismo anglo-saxónico [...] e acabou à frente de um minucioso sistema de repressão [...]. Propôs-se fomentar um corporativismo associativo, assente no consenso dos corpos intermédios interessados mais do que na iniciativa e coacção estatal, e acabou à frente de um corporativismo substancialmente de Estado».9

Esta variedade e esta complexidade prolongam-se nas biografias dos «lugar-tenentes»: Marcello Caetano, o integralista de juventude que terá sonhado, na maturidade, fazer convergir o Estado Novo para a demo- cracia europeia; Franco Nogueira, o jovem de simpatias oposicionistas que se foi convertendo ao culto de Salazar e se transformou no símbolo final do Estado Novo agonizante; Adriano Moreira, o jovem também de simpatias «liberais» que um dia se imaginou (e foi imaginado) como sucessor de Salazar, mas acabou a sentir-se por ele traído; Pedro Teotónio Pereira e José Gonçalo Correia de Oliveira, colaboradores próximos e instrumentais na introdução do corporativismo nos inícios do regime ou no regresso ao reformismo agrário (e para fazer o país entrar na «Eu- ropa») nos anos de 1960, respectivamente; Armindo Monteiro, outro filho dilecto que também se viu envolvido num conflito insanável com o mentor.

No documento História e historiadores no ICS (páginas 77-79)