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Português Moderno

No documento História e historiadores no ICS (páginas 130-133)

A obra de Valentim Alexandre está ligada a um momento marcante da vida do seu autor, o da sua participação na «fase final do derradeiro império colonial português».6 Essa participação concretizou-se num

acontecimento que não era provável, pois na altura em que foi mobili- zado para o então Ultramar português (mais concretamente, para a Guiné), em 1970, nenhum «especialista em Direito» o tinha sido, como ele próprio sublinhou.7Alexandre já tinha terminado uma licenciatura

em Direito, na Universidade de Coimbra (1967), com a média final de curso, nada comum, de 18 valores. Em circunstâncias normais teria ini- ciado aí a sua carreira académica em Direito. Acontece que aquelas não eram, pelo menos se se olhar para elas a partir da actual normalidade de- mocrática, as circunstâncias da época, pois vivia-se em Portugal sob o «céu de chumbo» de uma ditadura que insistia em manter um império colonial em tempos de descolonização. Por este e por outros motivos, desde o início dos anos 60 que Valentim Alexandre participava na luta estudantil contra o regime de Salazar. Tinha aderido, em 1962, altura em que frequentava o 3.º ano da Faculdade de Direito de Lisboa, a uma

5Identificação feita com base nas publicações referidas em http://www.ics.ul.pt/insti-

tuto/?ln=p&pid=67&mm=5&ctmid=2&mnid=1&doc=31809901190&sec=5 (10 de Maio de 2016).

6Alexandre, Os Sentidos do Império..., 15. 7Alexandre, Pátria Utópica..., 111.

greve de fome motivada pela proibição do Dia do Estudante e pela re- pressão a ela associada, o que lhe valeu a expulsão da Universidade por três anos e a consequente transferência para a Universidade de Coimbra. Sentiu este «regresso à província» (pois nascera em Viseu) como «um exí- lio»,8mas prolongou ali o seu passado de militância no Partido Comu-

nista e de luta anticolonialista. Assim, foi sem ilusões que, finalizado o curso, aceitou o convite para ingressar na Faculdade como assistente, o que seria o primeiro passo daquela carreira. Sabia «[...] que a informação da PIDE seria um obstáculo insuperável, como de facto veio a verificar- -se»9. Mas não podia imaginar que viria a ser mobilizado para uma guerra

colonial cuja legitimidade havia muito contestava e contra a qual já dis- tribuíra muitos panfletos. Ele próprio testemunhou o seu particular dis- tanciamento relativamente à dimensão nacionalista e imperialista do Es- tado Novo:

O anticolonialismo tinha em mim raízes já longínquas: nunca fui tocado pela retórica do nacionalismo imperial, tão difundido nas elites portuguesas – talvez porque, no meu espírito, ele se identificava com a ideologia do Estado Novo, o que por si mesmo o desqualificava!10

Foi neste contexto que Valentim Alexandre iniciou a procura de uma explicação racional para o que considerava ser um elemento de irracio- nalidade quase colectiva, a relutância do Estado e de boa parte das elites políticas do país em enfrentar a descolonização, prolongando, com isso, uma guerra na qual ele sentiu que se encontrava «no lado errado» («[...] no lado daqueles que em Portugal sempre considerara como opressores, e com quem agora me via obrigado a conviver»).11Uma guerra que tinha

condicionado o seu destino individual e o da sua geração. Foi essa in- quietação, unida a uma convicção antiga sobre as potencialidades expli- cativas da História, que o conduziu à história do colonialismo português. Esta seria um dos projectos da sua vida, pois a sua investigação mais re- cente estava já no ADN dos primeiros textos que escreveu sobre aquele tema.

O sentimento de que a investigação em áreas não-jurídicas era uma direcção possível da sua vida também era antigo, como a certa altura pude saber. Além de que, no seu percurso escolar, já tinha tido pelo menos

8Alexandre, Pátria Utópica..., 98. 9Alexandre, Pátria Utópica..., 107. 10Alexandre, Pátria Utópica..., 101. 11Alexandre, Pátria Utópica..., 115.

um bom encontro com a História. Esse encontro ocorreu quando, no 6.º ano, se deixou fascinar pela leitura da Histoire de la Civilisation en France, de François Guizot, embora «[...] não ao ponto de mudar da alí- nea e), que conduziria ao curso de Direito, para a de História (pela sim- ples razão de recusar inteiramente a ideia de vir a ser professor do ensino secundário»).12Outras circunstâncias ditaram essa mudança de rumo.

O primeiro passo da carreira de investigação de Valentim Alexandre foi dado quando, depois de, como desde sempre planeara, desertar da guerra (onde acabou por ficar durante cerca de um ano, após uma pri- meira tentativa de deserção, ainda antes de partir para a Guiné), e já no exílio, apresentou, nos inícios dos anos 70, ao Institut Universitaire de Hautes Études Internacionales de Genebra, um projecto para pesquisar o império português do último quartel do século XIX, com o qual pre- tendia doutorar-se.13

Regressado a Portugal, onde acabaria por ingressar como assistente no ISCTE (1975-1990), percebeu, pela investigação que fez nos arquivos, que era preciso recuar no tempo, se queria encontrar respostas consis- tentes para o problema que pretendia resolver. Esse recuo cronológico conduziu-o até ao projecto africano da primeira metade do século XIX. Pois, diz-nos ainda na Introdução a Os Sentidos do Império, ao contrário do que até aí se pensava, o «surto colonizador português de finais do sé- culo XIX» era «[...] o coroar de um esforço para manter e reforçar a sobe- rania de Portugal nos territórios africanos, levado a cabo nas décadas an- teriores, face a inúmeras resistências e dificuldades».14Valentim Alexandre

não quis analisar a parte final de um processo cuja primeira parte desco- nhecia e era então desconhecida, em boa medida, por motivos ideológi- cos, que dificultavam quer a investigação da história do Império nesse período, quer a sua interpretação historiográfica.

Desta opção resultou a publicação de Origens do Colonialismo Português Moderno, um livro que mudou a visão que até então se tinha sobre o império português do século XIX. Este trabalho matricial surgiu numa altura em que a historiografia portuguesa, fortemente penalizada pelo regime de Salazar, estava a consolidar-se, mas em que os reflexos desse processo eram ainda pouco visíveis. Essa fragilidade manifestava-se so- bretudo no respeitante aos estudos sobre o Império, como Valentim Alexandre pôde demonstrar estatisticamente quando, nos finais dos

12Alexandre, Pátria Utópica..., 90. 13Alexandre, Pátria Utópica..., 111-112. 14Alexandre, Os Sentidos do Império..., 16.

anos 90 elaborou, para a Fundação para a Ciência e a Tecnologia, um Perfil da Investigação Científica em Portugal na área da História, a partir de informação que remontava ao início dos anos 70, na altura facultada pelo então Observatório das Ciências e das Tecnologias.15 Neste con-

texto, aquele primeiro livro teve uma influência decisiva na geração de historiadores que se estava então a formar e nas que se seguiram. Não somente pelos conhecimentos novos sobre um período pouco conhe- cido, mas também porque Alexandre identificou ali, de modo sistemá- tico, os mitos («[...] modo de apreender a realidade no seu todo, de a pensar e de a sentir, integrando factores económicos e não económicos e, em qualquer deles, tanto os aspectos racionais como os irracionais»)16

que até então tinham contaminado a historiografia do Império. Foi em diálogo com estes mitos, desconstruindo-os e reconstruindo os contex- tos em que eles emergiram e reemergiram, mostrando o que se ocultava por detrás do que narravam, que compôs a sua história do «colonialismo português moderno».

No documento História e historiadores no ICS (páginas 130-133)