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Vasco Pulido Valente – o «filho» dilecto de Oliveira Martins

No documento História e historiadores no ICS (páginas 153-155)

Começo por confessar que a solicitação para fazer esta apresentação me causou alguma estranheza inicial. Desconfiança porque não percebi imediatamente qual o alcance da iniciativa nem qual o tom a colocar na abordagem da matéria para a qual fui convocado. Por um lado não me imaginei a produzir um exercício de uma qualquer espécie de ego-His- tória institucional. Por outro, praticamente todos os nomes elencados para serem alvo desta reflexão crítica passaram por outras instituições en- quanto professores e investigadores ao longo dos seus percursos acadé- micos. Reduzi-los ou rotulá-los simplesmente como «historiadores do ICS» poderia ser demasiado redundante e abrir uma polémica desneces- sária, situação que a organização deste encontro resolveu de forma feliz ao denominar as mesmas como «História e Historiadores no ICS». E su- blinho o «... no ICS».

O desconforto preambular referido atrás prendeu-se, sobretudo, com o nome que me foi proposto para proceder à análise da importância da sua obra historiográfica. Olhando para a lista completa de autores sobre os quais se falou ao longo do evento posso dizer que conheço pessoal- mente todos eles e que com todos eles, de uma forma mais abreviada ou mais desenvolvida, troquei impressões sobre matérias várias, ainda que de circunstância, em momentos diferentes ao longo da minha actividade enquanto estudante e depois investigador e docente. Alguns foram, in- clusivamente, meus professores ao longo da minha formação enquanto aluno de mestrado. Outros marcaram presença no meu júri de doutora- mento. Com outros, ainda, colaborei em projectos de investigação de natureza diversa no e fora do ICS.

A grande excepção a este quadro genérico introdutório é mesmo a fi- gura de Vasco Pulido Valente. Gostaria de deixar um testemunho, o de que, ao contrário dos outros convidados para virem fazer os seus comen- tários a estas jornadas, nunca troquei a mais breve palavra com Vasco Pu-

lido Valente, que imagino não me deva conhecer de lado nenhum, nem que alguma vez tenha passado os olhos por algum texto da minha auto- ria. Se, porventura, algum dia leu uma linha do que eu escrevi, tenho a certeza de que, como um dia escreveu Maria de Fátima Bonifácio,1não

fui seguramente merecedor de qualquer tipo de concordância da sua parte, fosse qual fosse o tema por mim abordado.

Vi-o apenas duas vezes ao longo dos anos. A primeira no lançamento do livro O Crespúsculo dos Grandes,2de Nuno Gonçalo Monteiro, numa

livraria da Imprensa Nacional ali para os lados de São Sebastião, para os que se lembram. A outra ocasião foi num colóquio organizado no Palá- cio Fronteira (algures em 1999 ou 2000), também em Lisboa, sobre o tema genérico «Para que serve a História?» ou algo de semelhante dentro do registo utilizado por Marc Bloch na Introdução do seu livro Apologie pour l’histoire ou métier d’historien, onde também marcaram presença, ao que me recorde, a Maria de Fátima Bonifácio e o António Manuel Hes- panha. Obviamente, Vasco Pulido Valente, ao fim de 10 segundos da sua intervenção naquela ocasião, destruiu qualquer esperança da minha parte em o ouvir pronunciar o mais leve comentário optimista acerca de um eventual carácter utilitário da disciplina, o que para um ainda relativa- mente jovem e pouco experiente entusiasta da causa não constituiu grande momento de exaltação.

Como se depreende do que fica dito, nunca privei com ele nem nunca me apercebi da sua passagem pelas instalações do ICS, ainda na com- pactada versão do 1.º andar do antigo edifício do ISCTE, quando me iniciei na tarefa de secretariar a revista Penélope. Revista de História e Ciências Sociais, então dirigida pelo já citado Nuno Gonçalo Monteiro. O mesmo aconteceu nos quase seis anos que passei já nas novas instalações do ICS enquanto bolseiro de pós-doutoramento. Da mesma forma nunca notei a sua presença na Biblioteca Nacional de Portugal. Sempre me interro- guei de onde viria o enorme manancial de referências bibliográficas uti- lizadas nos artigos e nos livros que foi publicando ao longo dos anos. Como seria possível alguém citar daquela forma erudita e sempre pron- tamente actualizada sem colocar os pés na Biblioteca Nacional? A título de exemplo e para ilustrar o que acabo de referir convoco os interessados a passar os olhos pelas referências bibliográficas citadas na sua obra

1Maria de Fátima Bonifácio, História da Guerra Civil da Patuleia, 1846-1847. Lisboa,

Editorial Estampa, 1993, 10.

2Nuno Gonçalo Monteiro, O Crepúsculo dos Grandes – A Casa e o Património da Aristo-

Os Militares e a Política,3livro que mereceu cinco edições. Apurei depois

que não se tratava de nenhum enigma. Vasco Pulido Valente foi sempre um ávido consumidor de livros e a sua biblioteca pessoal foi sendo ali- mentada ao longo dos anos atingindo uma dimensão muito considerável. Seja como for, ouvia as suas intervenções na rádio e lia-o nos jornais quase todas as semanas, mas nunca o via pelos locais que eu imaginava fossem os da sua frequência.

Percebi também mais tarde que não seria bem assim e que os melhores historiadores não precisavam de socializar na Biblioteca Nacional. Talvez fosse essa mesma a razão da sua superioridade. Isto para dizer que sempre encarei a figura de Vasco Pulido Valente como a de um sábio à moda an- tiga. Enigmático, fugidio, distante, irascível até, dificilmente acessível aos estranhos ao seu círculo de amigos ou de gente próxima. Via-o como uma espécie cowboy solitário da banda desenhada ou um herói romântico fora de tempo, mais dado a angústias e a ansiedades do que a emoções, como o próprio confessou em entrevista. O tom pessimista, que o pró- prio nunca reconheceu, e não raramente apocalíptico das suas interven- ções no espaço público aproximou-o, no meu imaginário, da figura de Oliveira Martins. Não tanto pelos timbres da sua personalidade, mas mais pela abordagem proposta pelos seus trabalhos, Vasco Pulido Valente seria o Oliveira Martins do meu tempo. Ambos cultivavam o gosto pela História apresentada de forma narrativa, valorizando sempre os aspectos literários da disciplina, para além da ênfase colocada na dimensão polí- tica.

No documento História e historiadores no ICS (páginas 153-155)