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Os mitos do colonialismo português

No documento História e historiadores no ICS (páginas 133-137)

O papel pioneiro de Portugal na abolição da escravidão – pretensão ao serviço da imagem de um colonialismo português «sem mácula» – foi um dos mitos que Valentim Alexandre investigou. Neste, como em outros objectos, a tarefa de desconstrução foi acompanhada pela pro- dução de conhecimentos novos, pois o tema da escravidão e do tráfico de escravos teve uma centralidade absoluta no conjunto das suas publi- cações. Além de ser um tema sempre presente nos seus textos sobre o império português no século XIX, foi também o tema específico da sua tese complementar ao doutoramento, que defendeu na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa em 1988 [Portugal e a Abolição do Tráfico de Escravos (1822-1851)]. Foi ainda um tema de vários artigos seus publicados nas revistas Análise Social e Pené- lope, destacando--se entre estes os que foram escritos na polémica que manteve com o historiador João Pedro Marques, acerca da natureza do

15Valentim Alexandre, Perfil da Investigação Científica em Portugal – História. Lisboa, Fun-

dação para a Ciência e a Tecnologia, 1999, 7-26.

16Valentim Alexandre, «A África no imaginário político português (séculos XIX-XX)»,

abolicionismo português e da sua articulação com o projecto colonial no século XIX.17

Além de propor uma datação errada ou equivocada, o mito do pio- neirismo português omitia a natureza lenta, muito lenta, da abolição efectiva do tráfico e da escravatura, bem como as resistências com que se confrontaram os que quiseram concretizá-las, para mais facilmente «modernizar» o colonialismo em África. Por esse motivo, todos estes as- pectos foram objecto privilegiado de estudo em Origens do Colonialismo Português Moderno e, depois, com bastante mais profundidade, nos capí- tulos que redigiu na História da Expansão Portuguesa, organizada por Fran- cisco Bethencourt e K. Chaudhuri.18

A espoliação de um «grande império africano» na época da partilha e da política externa a ela associada nos finais do século XIXfoi outro mito sobre o qual Valentim Alexandre reflectiu. O conhecido «mapa cor-de- -rosa», diz-nos a esse propósito, não passava de uma representação retó- rica à qual não correspondia uma realidade territorial extensa ou contí- nua. Esse território do império português existia, mas na imaginação ou na argumentação estratégica da política externa portuguesa, pois, no sé culo XIX, o domínio colonial directo em África exercia-se apenas em «alguns pontos costeiros».19Partindo desta constatação, Alexandre expli-

cou que, ao contrário do que se afirmou, no momento e posteriormente, os territórios que couberam a Portugal na sequência do Ultimato incluíam não somente espaços ainda não ocupados pelos portugueses, como até espaços que não tinham sido reivindicados. Aquele mapa, o imaginário que lhe esteve associado, explicou ainda Valentim Alexandre, obscureceu durante muito tempo um facto central, hoje bem conhecido, o da forma- ção do moderno império colonial português apenas na viragem para o século XX.

Um outro mito, que Alexandre articulou com o anterior, foi o da «vo- cação imperial dos portugueses», bem como, associado a este, o da rela- ção especial dos portugueses com os povos nativos dos territórios ultra- marinos. Na História da Expansão Portuguesa, como também em artigos publicados em várias revistas científicas, identificou com detalhe o con-

17João Pedro Marques, «Uma revisão crítica das teorias sobre a abolição do tráfico de

escravos português», Penélope, 14, 1994; Valentim Alexandre, «Projecto colonial e aboli- cionismo», Penélope, 14, 1994; Valentim Alexandre, «‘Crimes and misunderstandings’. Ré- plica a João Pedro Marques (debate sobre o abolicionismo)», Penélope, 15, 1995; João Pedro Marques, «Avaliar as provas. Resposta a Valentim Alexandre (debate sobre o abo- licionismo)», Penélope, 15, 1995.

18Alexandre, «Ruptura e Estruturação...». 19Alexandre, Origens do Colonialismo..., 27.

texto (de nacionalismo radicalmente imperial, de emergência do «popu- lismo imperial») em que estes dois últimos mitos se formaram e conso- lidaram. Contou também a sua história, relacionando-os: as ideias do «carácter sagrado dos territórios coloniais», da «vocação colonial do povo português» e de um «grande território espoliado» (sobretudo pela Grã- -Bretanha) estiveram na origem do que designou como um sentimento de vitimização colectiva que, por sua vez, se articulou com aquela outra ideia, que viria a ganhar nova vida alguns anos mais tarde, da relação es- pecial com o «indígena», «o nosso melhor aliado em África».20Esta última

percepção, que foi posteriormente enfraquecida pela intensificação cres- cente de noções racistas nos finais do século – noções cuja expressão mais acabada Valentim Alexandre analisou na obra de Oliveira Martins –, ressurgiu depois em vários contextos e sofreu diversas metamorfoses, tendo adquirido, já na fase final do Império, a sua versão lusotropicalista. Este foi um percurso que Valentim Alexandre reconstituiu em vários dos seus textos21e que foi depois desenvolvido, sob sua orientação, pelo tra-

balho de mestrado da historiadora Cláudia Castelo.

Todos estes mitos conviveram com um último, também persistente e articulado com os anteriores: o da ausência de rupturas na história do co- lonialismo português. Tratava-se, na retórica do Estado Novo, de um colonialismo conduzido, desde o seu início, na longínqua época dos des- cobrimentos, por uma «vocação imperial», a-histórica, dos portugueses. Logo em Origens do Colonialismo Português Moderno Alexandre explicou como, ao dissolver «[...] a especificidade do colonialismo português mo- derno numa continuidade multissecular», esta forma de contar a História e a respectiva ideologia omitiam «tudo o que respeita à génese da expansão colonial portuguesa em África no século XIX: as condições históricas con- cretas em que teve lugar, as motivações (económicas, políticas e ideológi- cas) a que correspondeu, os sectores sociais nela interessada».22

O que Alexandre se propôs fazer foi, precisamente, reconstituir as cir- cunstâncias e as motivações que tinham sido ocultadas pela ideologia e

20Valentim Alexandre, «Configurações políticas...», in História da Expansão..., eds. F.

Bethencourt e K. Chaudhuri, 126.

21Valentim Alexandre, «O Império e a ideia de raça (séculos XIXe XX)», in Novos Ra-

cismos – Perspectivas Comparativas, ed. Jorge Vala. Oeiras, Celta Editora, 1999, 133-144; Valentim Alexandre, «Questão nacional e questão colonial em Oliveira Martins», Análise Social, XXXI (135), 1996, 183-201, sobretudo pp. 200-201; Valentim Alexandre, «A África no imaginário político português (séculos XIXe XX)», Penélope, 15, 1995, 39-52.

pelos seus mitos. Por isso, é a esse trabalho que vou dedicar os próximos pará- grafos. Mas antes não deixarei de recordar que estes mitos, ainda que uns mais do que outros, continuam a actuar na memória colectiva, assim como nos textos de autores que publicam sobre os temas que lhes estão associados. No momento em que constatou este fenómeno, Alexandre identificou as suas causas, e destacou, entre as elas, a dificuldade com que os académicos se confrontam quando se trata de divulgar as aquisi- ções da pesquisa científica junto do grande público, e nomeadamente quando estão em causa temas como o colonialismo, a escravatura ou o trabalho forçado imposto às populações nativas.23A produção historio-

gráfica permaneceu e permanece muito circunscrita à academia, o que diminui o papel da História enquanto «forma de intervenção pública», inquietação que Alexandre manifestou em relação à sua própria obra.24

Voltou a manifestar a mesma inquietação quando analisou, nos anos 90, o modelo de avaliação da investigação nas áreas da História e das Ciên- cias Sociais. Nessa altura afirmou, a este propósito, que a aplicação à pro- dução historiográfica de parâmetros de avaliação científica que valorizam principalmente a (necessária, como sublinhou) internacionalização e a publicação em revistas de referência especializadas e pouco acessíveis ao público em geral tinham subjacente um esquecimento: o de «[...] que a historiografia, para além da sua função científica de produção de conhe- cimentos, desempenha uma outra – a de contribuir para a formação da memória colectiva, a vários níveis (local, regional, nacional ou interna- cional) [...]».25

Quando analisou os previsíveis efeitos perversos de uma avaliação da investigação em História orientada pelos parâmetros das «ciências duras» Valentim Alexandre propôs alternativas, que se mantêm em aberto na discussão pública. Por esse motivo, o Perfil da Investigação Científica em Portugal que redigiu nessa altura mantém-se actual. Há sinais, embora in- suficientes, de um novo esforço para fazer chegar a investigação ao grande público, mas seria sem dúvida interessante pensar esta dimensão das funções da História nas discussões em curso sobre a avaliação da pro- dução científica.

23Alexandre, «Traumas do Império. História, memória e identidade nacional», Cadernos

de Estudos Africanos, 9-10, 2006, 41, onde manifesta o seu cepticismo relativamente ao desempenho, pelos historiadores, da função de «médicos da memória» na psicanálise co- lectiva.

24Alexandre, Pátria Utópica..., 290-291. 25Alexandre, Perfil da Investigação..., 20.

O projecto imperial oitocentista e suas

No documento História e historiadores no ICS (páginas 133-137)