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O Tempo e o Modo

No documento História e historiadores no ICS (páginas 155-158)

O seu papel para a renovação da historiografia portuguesa é enorme e, independentemente do que possamos achar da evolução do seu posi- cionamento político, indiscutível. Começou pela abordagem da transição da Monarquia para República («As duas tácticas da monarquia, 1908- -1910»),4ainda na versão de O Tempo e o Modo (entre 1967 e 1969), publi-

cação que já merecia ser estudada como uma verdadeira escola das Letras em Portugal numa altura em que ainda não se adivinhava o final do re- gime autoritário. Aqui Vasco Pulido Valente prefaciava já aquilo que seria

3Vasco Pulido Valente, Os Militares e a Política. Lisboa, Imprensa Nacional, 1997. 4Vasco Pulido Valente, «As duas tácticas da monarquia (1908-1910)», O Tempo e o Modo,

a sua primeira obra maior,5onde se aproximou da visão de uma history

from bellow cultivada, entre outros, por Richard Cobb, um dos nomes grandes da historiografia de Oxford. Afirmou-se imediatamente como um historiador da política, ainda que tenha ensaiado precocemente, com sucesso, refira-se, uma abordagem à História da Educação,6aproximação

que ainda hoje, em certos aspectos, não foi revista ou melhorada.

O povo nas Invasões Francesas

Não podendo comentar toda a produção bibliográfica de Vasco Pulido Valente, item por item, optei pela menção àquelas que considero as obras que foram balizando a evolução da sua carreira. Começo pela sua leitura estimulante do período fundador da modernidade em Portugal no artigo intitulado «O povo em armas: a revolta nacional de 1808-1809» e depois continuado e aprofundado em um dos seus últimos livros.7Este ensaio

escrito em 1973-1974 sobre a revolta popular contra os franceses revelou de forma evidente as suas preocupações com a relação entre a acção po- pular e a organização política. Aí desenvolveu a tese da resistência po- pular à ocupação estrangeira (1808-1809), mostrando como os franceses também foram expulsos do reino devido à iniciativa do «povo» (pesca- dores, assalariados rurais, camponeses, artesãos, comerciantes pobres, em- pregados públicos), fruto das circunstâncias provocadas pela penúria eco- nómica sentida naquele tempo. Nesse momento Vasco Pulido Valente mostrou como os levantamentos contra o domínio gaulês no Norte do país, aparecendo o Minho como centro por excelência do delírio popu- lar, resultaram de guerrilhas restauracionistas, que se estenderam depois até ao Algarve. Tratou-se à época da sua publicação da tradução e im- portação para o contexto português da perspectiva de que as ditas «Inva- sões Francesas» serviram para o lançamento de um movimento «nacio- nalista» ibérico, abordagem não particularmente original num enfoque comparado, pois visivelmente tributária da historiografia sobre a Espanha da época ou não tivesse sido o orientador da sua tese de doutoramento em Oxford – apresentada em 1974 – um dos maiores hispanistas do sé- culo XX, o recentemente falecido Raymond Carr.

5Vasco Pulido Valente, O Poder e o Povo: A Revolução de 1910. Lisboa, Publicações Dom

Quixote, 1976.

6Vasco Pulido Valente, Uma Educação Burguesa (Notas para a Ideologia do Ensino no Século

XIX). Lisboa, Livros Horizonte, 1974.

7Vasco Pulido Valente, «O povo em armas, a revolta nacional de 1808-1809», Análise

Social, XV (57), 1979: 7-48; Vasco Pulido Valente, Ir prò Maneta. Lisboa, Alêtheia Editores, 2007.

A biografia

Vasco Pulido Valente foi também um dos precursores do «abençoado retorno», expressão que tomo de empréstimo à sua colega Maria de Fá- tima Bonifácio, da biografia enquanto género historiográfico emancipado através das suas abordagens à vida de um personagem menor como Vieira de Castro e de personalidades mais relevantes como as de Paiva Couceiro e Marcello Caetano, sendo este último texto publicado numa primeira versão pela revista K.8

A insistência dada à biografia, de maneira mais sistemática desde o iní- cio da década de 1990, aparece como consequência directa da alteração dos paradigmas historiográficos influenciados pelo debate ideológico subsequente à queda do Muro de Berlim e ao desmoronamento da União Soviética (1989-1991). Com efeito, o reforço do género ficou antes de mais a dever-se ao ocaso do marxismo, enquanto filosofia de inter- pretação dos fenómenos históricos, e ao reconhecimento das insuficiên- cias e limitações das análises de tipo estrutural dele derivadas, bem ao gosto da «Escola dos Annales» e dos seus seguidores, que, chamando a atenção para o colectivo e para a acção das grandes massas, deixavam um reduzido espaço de manobra para a afirmação do indivíduo en- quanto verdadeiro motor da História.

O regresso à biografia resulta, pois, do efeito combinado de várias in- satisfações agora mais evidentes na comunidade historiográfica. De um lado a insatisfação por uma espécie de «anti-humanismo» que fez os seus dias durante as décadas de 1960 e 1970, que anulou os homens e as mu- lheres enquanto entidades históricas reconhecíveis. Segundo José Mat- toso, o tipo de abordagem proposta pelo marxismo, pelo estruturalismo e pelos Annales, condenava as excepções, o acontecimento vulgar e todo o voluntarismo dos heróis, «[...] porque se ocupavam fundamentalmente das recorrências».9Vasco Pulido Valente tratou de reconhecer as insufi-

ciências e as limitações das análises de tipo macro, ou estruturais do ponto de vista económico, social e político, quando usadas de forma ex- clusiva. Aquelas privilegiam o colectivo, as massas anónimas, os fenó- menos das repetições, reservando um espaço demasiado reduzido, por

8Vasco Pulido Valente, Glória, Biografia de J. C. Vieira de Castro. Lisboa, Gótica, 2001;

Vasco Pulido Valente, Marcello Caetano – As Desventuras da Razão. Lisboa, Gótica, 2002; Vasco Pulido Valente, Um Herói Português: Henrique Paiva Couceiro. Lisboa, Aletheia, 2006.

9José Mattoso, A Escrita da História, Teoria e Métodos. Lisboa, Editorial Estampa, 1988,

vezes nulo, para o indivíduo, para o homem enquanto ser dotado de uma vontade, e não apenas como membro de um grupo.

Em consequência deste renascimento da valorização do papel da pes- soa, enquanto sujeito principal da História, e como reacção contra a história serial, assistiu-se, também, em Portugal «ao regresso do aconte- cimento» e à reabilitação da política pelos estudiosos do tempo con- temporâneo, campo onde Vasco Pulido Valente abriu caminho. Este foi, afinal, numa transcrição para o panorama nacional, mais um episódio do clássico conflito historiográfico entre a prevalência do grupo e a afir- mação do individual, ou, por outras palavras, entre o primado da estru- tura e a supremacia da acção.

No documento História e historiadores no ICS (páginas 155-158)