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O peso das resistências nas «periferias do Império»

No documento História e historiadores no ICS (páginas 140-143)

Como já referi antes, um dos objectivos que nortearam a investigação inicial de Valentim Alexandre foi a rejeição das teses de Perry Anderson, R. J. Hammond, e dos autores que nelas se inspiraram.35A classificação

do imperialismo português de Oitocentos como um «imperialismo de prestígio», sem base mercantil, industrial ou financeira, encerrava uma tese que colidia com o quadro reconstituído por Valentim Alexandre. Ao demostrar que tinha havido, desde cedo, no século XIX, um projecto político e interesses económicos a ele associados, Alexandre invalidou quase todos os argumentos que sustentavam aquela tese e pôs de lado a hipótese de que a lentidão da «modernização do Império» pudesse ser explicada, em primeiro lugar, pela fragilidade do capitalismo português. Era errado, como ele reconheceu, sobrevalorizar o peso das relações co- loniais na economia portuguesa. Mas era igualmente errado, como acres- centou, deduzir a ausência de projeto da insuficiência dos seus resultados. Era, portanto, necessário encontrar outra(s) explicação(ões) para aqueles fenómenos. Alexandre fê-lo alterando o lugar das variáveis explicativas. Deslocando-as da metrópole para os territórios africanos.

A necessidade de fazer uma história do colonialismo português que in- tegrasse também a perspectiva africana, levando em conta as iniciativas e resis- tências da sociedade colonizada e «a dinâmica interna própria da África negra», nomeadamente no que diz respeito à sua agency no tráfico negreiro – um tráfico baseado em redes de comércio que já existiam e que a procura

34Alexandre, Origens do Colonialismo..., p. 67, sublinhados nossos.

35Ver também, além das páginas já citadas de Origens ..., Alexandre, «Projecto colonial

e abolicionismo»..., 121, em parágrafos onde volta a salientar esta sua posição na contra- argumentação em resposta às críticas metodológicas que lhe foram feitas por de João Pedro Marques.

europeia intensificou e alterou –, bem como as respostas que suscitou na «sociedade colonizadora», foi uma outra marca que Alexandre impri- miu à historiografia sobre o império português.36Uma vez mais, essa

marca esteve presente desde o início, no livro Origens do Colonialismo Por- tuguês Moderno. Já nessa altura a deslocação do olhar permitiu-lhe afirmar que o factor explicativo essencial (para a lentidão do processo de transi- ção para um regime de comércio lícito, para a modernização do Império) estava, como em outras zonas de África, «[...] na resistência das estruturas cimentadas durante o regime que tinha por base a exploração de mão- -de-obra escrava», e não na (efectiva) debilidade do capitalismo portu- guês: «[...] o principal obstáculo à exploração económica de África para Portugal e para qualquer das outras potências coloniais, sem excluir a Grã-Bretanha, estava na solidez das estruturas preexistentes, na vitalidade do tráfico de escravos, no poder dos negreiros – que resistiam à penetra- ção externa, numa primeira fase opondo-se à transição para o comércio lícito, e num segundo momento procurando controlar essa transição a seu favor; e face às dificuldades, a burguesia mercantil portuguesa mais solidamente implantada – como a do Porto – manteve-se ligada aos mer- cados tradicionais, evitando a aventura africana [...]».37

A importância concedida às «realidades vividas nas próprias colónias, que por larga parte escapavam às determinações da metrópole» reapare- ceu na História da Expansão Portuguesa. Depois de descrever a situação (social, económica, do ponto de vista da configuração dos poderes) na Angola do século XIX, as suas palavras são conclusivas, não somente no respeitante ao peso explicativo das resistências locais como a um outro elemento já aqui assinalado, o da fragilidade da presença portuguesa e a consequente incapacidade para combater aquelas resistências: «[...] neste contexto, o governo de Lisboa via-se obrigado a confiar nas estruturas de poder já existentes nas colónias, herdadas do Antigo Regime, – ou seja, dos tempos do sistema luso-brasileiro. Correspondiam essas estruturas a uma forma fluida de exercício da soberania, com cariz e peso diversos, con- soante as zonas do território angolano», que a seguir descreve. No fim, conclui de forma esclarecedora:

Historicamente, estas estruturas estavam ligadas ao tráfico de escravos, de que viviam em grande parte. Era essa a sua função, no termo do Império luso-brasileiro, que dava a Angola o papel de fornecedor de mão-de-obra da colónia americana. Desfeito o Império – mas mantidas por largos anos as

36Alexandre, Origens..., 21-22. 37Alexandre, Origens..., 68.

relações da possessão angolana com o novo continente – não surpreende que resistissem à mudança, sobretudo no campo do escravismo e do trabalho forçado. Daí a impotência do poder central, que via frequentemente contra si voltados os instrumentos de acção de que julgava dispor em Angola. Por isso mesmo, dos projectos congeminados em Lisboa, só deixaram marcas os que não feriam os interesses locais [...].38

As resistências locais à abolição do tráfico conjugaram-se, assim, com a fragilidade do império português, «um império perto da desagregação total, composto por partes desconexas entre si, com escassas ligações à metrópole, a qual, face à resistência dos poderes locais, nelas não exerce mais do que uma soberania meramente nominal».39

É importante sublinhar a afirmação aqui explicitada, inédita, ou pelo menos rara, na historiografia portuguesa da época, de que o que se pas- sava no império era determinado não somente pelo que se passava na metrópole (pela existência ou não de projectos, capitais, vontade de in- vestir, etc.), mas também, e até sobretudo, pelos contextos locais. Ao cha- mar a atenção para esta ordem de factores, Alexandre aproximou a his- toriografia portuguesa de perspectivas que são hoje património metodológico de qualquer estudo sobre os impérios não orientado por visões eurocêntricas. Nestes estudos é consensual a ideia de que os im- périos não foram sobretudo modelados pela vontade do «colonizador» ou pelas características das nações que colonizaram, assim como a de que tão-pouco os «colonizados» e as respectivas sociedades foram sujeitos passivos das acções desses impérios. Do mesmo modo, ao valorizar o papel desempenhado por grupos e sociedades locais, Alexandre aproxi- mou-se, mesmo que de forma não-intencional, da perspectiva crítica do pós-colonialismo em relação à história clássica dos impérios.40A forte

vertente de desconstrução das memórias do Império português, também logo no seu primeiro livro e em inúmeros outros escritos,41foi outro

38Alexandre, «Configurações Políticas»..., 161. Neste mesmo texto traçou um quadro

em tudo semelhante para Moçambique.

39Alexandre, «‘Crimes and misunderstandings’»..., 162-164. Esta resistência, bem como

a incapacidade de a combater, mantiveram-se até ao fim da escravidão, em 1875, sendo que as mesmas determinantes ideológicas, sociológicas e económicas continuaram a ac- tuar na transição para o trabalho forçado, como mostra com detalhe no vol. IVda História

da Expansão Portuguesa.

40Valentim Alexandre, «A História e os estudos pós-coloniais», in Itinerários: A Inves-

tigação nos 25 Anos do ICS, eds. Manuel Villaverde, Karin Wall, Sofia Aboim e Filipe Car- reira da Silva. Lisboa, Imprensa de Ciências Sociais, 2008, 693-707.

41Alexandre, «Le colonialisme portugais...», 7-27; Valentim Alexandre, «A África no

ponto de contacto entre ao trabalho de Valentim Alexandre e as propos- tas do pós-colonialismo, no qual a sua obra de modo nenhum se pode inscrever. Ainda assim, isso talvez explique a atitude de abertura meto- dológica com que, num artigo onde discutiu o tema do pós-colonialismo, nomeadamente na história do Império português, e depois de se posi- cionar no debate que opôs o campo da historiografia aos estudos pós- -coloniais, tenha optado por se afastar do «caminho mais fácil – o de negar qualquer pertinência às teorizações pós-colonialistas, no seu todo[...]»:

Uma vez rebatido, nas formulações pós-modernas, o que há de claramente inaceitável, não custa reconhecer que o pós-colonialismo abriu novas pers- pectivas, fazendo evoluir uma historiógrafa imperial estagnada e desacredi- tada.42

Acrescentou ainda que «é na «desconstrução» desta narrativa identitária que os estudos pós-coloniais podem ter um papel de relevo, pelas novas perspectivas que muitas vezes abrem e pelos novos temas que trazem à pesquisa».43

Heranças históricas: o Império luso-brasileiro

No documento História e historiadores no ICS (páginas 140-143)