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como sempre chove lá 64 chove muito frio!

A prática de migração com seus espaços e cenários: avaliação e valoração

63 como sempre chove lá 64 chove muito frio!

65 não só o frio do clima 66 mas o frio das pessoas 67 o frio de não saber falar nada 68 de não saber se defender

O cenário a que se refere Renato é Londres, cidade sobre a qual ele inicia uma

apreciação com base nos aspectos climáticos que contradizem suas expectativas (linha

60). Tais expectativas, possivelmente, se engajam às vozes da incipiente rede social que liga Jaraguá àquele destino, que por sinal, é bastante almejado pelos jaragüenses em função da valorização da moeda local frente ao real. Há, portanto, nessa apreciação uma contração dialógica em relação às advertências que comumente se fazem aos candidatos a moradores de Londres, com respeito às dificuldades do clima, geralmente nublado e bastante frio para os padrões brasileiros. Contudo, Renato imediatamente se alinha às vozes da representação de dificuldade, lançando uma reação de impacto, amplificada na metáfora “outro planeta” (linha 61).

Na seqüência, Renato associa o frio do clima, ao frio das pessoas, em uma nova metáfora com a qual traça uma avaliação implícita no campo do afeto, reveladora do estado de desolamento que lhe acometeu na chegada (linhas 66-68, “... o frio das pessoas”, “o frio de não saber falar...”, “... de não saber se defender”). Segundo Carter (1992), metáforas desse tipo são um mecanismo poético que o migrante usa para se referir a cenários de um outro país, de modo a lhe permitir estabelecer conexões simbólicas quando as conexões lógicas não são suficientes.

Como bem se percebe, as avaliações do cenário londrino traçadas por Renato acionam atitudes do campo da apreciação impregnadas de afeto, revelando implicitamente uma dimensão negativa, que denuncia o estado de desolação e até mesmo um certo medo do migrante frente a seu contexto de chegada. De modo geral, a dimensão negativa dessas avaliações é implícita, muito embora haja casos em que essa dimensão se revele mais diretamente, como o faz Emília, no próximo exemplo:

Primeiro que eu fiquei super decepcionada quando eu cheguei aqui... com as coisas, assim....porque eu esperava isso aqui...quando eu entrei em Danbury eu achei que isso aqui era uma fazenda, tudo escuro, sabe...mesmo aquelas áreas de mansão... ninguém usa energia... aquela economia...aquele negócio...eu falei_ ‘gente do céu!’ , sabe? Brasil cê anda ...aquelas ruas todas claras, ruas largas, eu prefiro...eu tô aqui no fim do mundo (risos). Andando pela cidade...as casas completamente diferente, tudo de madeira, não tem aquela arquitetura que tem no Brasil...eu não sei se é porque, igual você falou, eu tava acostumada com coisa boa, entendeu?...a gente tá acostumada a ir em hotéis bons, é...conhecer coisa boa, então pra mim...assim, de certa forma eu esperava isso aqui diferente, muito melhor do que é. Apesar de que depois, eu tive oportunidade de ir à Califórnia, de ir à Flórida, né...e conhecer mais coisas, então, quer dizer, tem muita coisa rica, muita coisa bonita

Emília, nesse recorte (83), lança diretamente uma avaliação negativa sobre o cenário de chegada, a cidade americana do estado de Connecticut, Danbury, uma região considerada como uma das mais ricas e prósperas do país. Ela inicia essa avaliação em termos apreciativos, enfatizando sua reação de decepção. Existe aí, mais uma vez, uma

contração dialógica em relação a um discurso preestabelecido, o de que as cidades

americanas, como o país inteiro, seriam bem mais ricas e desenvolvidas que as brasileiras. Ela prossegue nessa contração dialógica, comparando os dois contextos, sempre reafirmando seu desapontamento frente a um cenário que não se revelou tão superior quanto o esperado.

Segundo Carter (1992), a superposição de um local invisível, guardado na memória, a um novo local onde o migrante refaz sua vida, é essencial para a interpretação desse novo espaço de vivência. O autor ainda sugere que, inicialmente, é necessário ao migrante, para se orientar no novo ambiente, encontrar nele semelhanças com o lugar antigo. O que se revela nas narrativas jaragüenses é que o migrante, ao menos no início, mantém-se preso à lembrança do antigo local, no caso Jaraguá, cidade invisível que se preserva e se mistura à nova espacialidade, plena de simbólicos e sentidos. Esse artifício de contraposição muitas vezes resulta na sensação de estranha familiaridade, como a relatada por Emília, que até enxerga no cenário americano a mesma paisagem rural _ “eu achei que isso aqui era uma fazenda” _ típica de seu contexto original goiano.

Essa sobreposição inicial de cenários, que de certa forma ofusca a visão do migrante na chegada, tende a se dissipar à medida que avança sua vivência no país, e ele começa a ajustar seu olhar, encarando com menos reservas o novo cenário. Progressivamente, dissipa-se também a negatividade do início e o migrante se desarma, tecendo avaliações mais positivas, como bem demonstrou Emília _ “tem muita coisa rica, muita coisa bonita”. É assim também com Guido, conforme seu relato a seguir:

(83) Guido

122 bom... a Bélgica... Bruxelas é uma cidade encantadora! 123 a cidade mais bonita que eu já conheci

124 muito bonita...

125 é ...pequena demais da conta! 126 acho que é menor do que Goiás

127 não sei se é menor quase parecida com o tamanho de Goiás

/.../

164 eu... se eu tivé oportunidade... eu vou levá minha esposa...pra conhecer Bruxelas... 165 porque é uma cidade muito bonita, encantadora

166 e é uma cultura totalmente diferente

Guido é direto em sua apreciação positiva, calcada no campo da reação e da

qualidade, “cidade encantadora” (linha 122), que ele gradua com um comparativo de

superioridade, “a cidade mais bonita que eu já vi” (linha 123), dando maior intensidade ao predicado positivo. Observa-se que Guido já se despe da atitude de desconfiança e reserva, mais comum nos primeiros contatos. Mesmo assim, o faz ainda sobrepondo os espaços anterior e atual em um arranjo complexo, que equipara centros regionais díspares como Bruxelas, Bélgica e Goiás em uma dimensão comum improvável. É uma avaliação apreciativa que, embora positiva, denuncia o grau de desorientação e deslocamento do migrante frente aos cenários transnacionais. Sobre esses cenários, disponho mais uma avaliação:

285 ai fiquei dois dia na Espanha 286 super fascinante

287 lá, quente pra caramba!

288 aquele clima totalmente brasileiro, sabe?

289 as pessoas lá saem e vão pra praças com mochilas com refrigerantes, vodka essas coisas e suco 290 e senta assim na praça

291 e começa a beber 292 e conversar

293 e fazer amizade com ingleses que vão pra lá 294 e o pessoal dos outros paises

Novamente se expõe uma avaliação positiva do campo da apreciação de reação e qualidade, graduada pelo marcador de intensidade “super” em “super fascinante” (linha 286). Aqui, ainda se percebe a sobreposição de cenários, Brasil e Espanha, que se equiparam no clima. Comparação que também pode ser entendida em sentido metafórico, uma vez que o comportamento descontraído das pessoas, na praça (linha 289), bem pode se associar ao “clima” de desprendimento das pessoas no Brasil. Implicitamente, Marcelo abona o ato de beber, usar mochila, sentar na praça para conversar, pois não lança nenhum julgamento moral negativo sobre essa conduta. Nessa medida, as avaliações apreciativas de Marcelo acabam tangenciando outros campos

atitudinais, pois acionam sentimentos e emoções, como o de amizade, que ele afirma

travar entre “o pessoal de outros países” (linha 294).

As análises deste tópico apóiam as observações de Beiro (2005), para quem o lugar é um espaço no qual os sujeitos estabeleceram ligações de familiaridade e afetividade. Tal característica explica, parcialmente, o fato de que as avaliações do migrante sobre os novos cenários de sua vivência sobrepõem atitudes do campo da

apreciação e do afeto, bem como invadem terrenos do julgamento, conforme

desenvolvo com mais atenção no próximo tópico.