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1. Introdução

1.3. Mecanismos fisiológicos de tolerância à salinidade

1.3.2. Regulação iónica ao nível celular

1.3.2.1. Compartimentação vacuolar do Na +

As células vegetais estão estruturalmente bem preparadas para a compartimentação dos iões devido à presença do vacúolo, descrito como o maior compartimento subcelular que ocupa mais de 80% do volume celular (Neuhaus, 2007). A compartimentação do Na+ e Cl− no vacúolo previne os efeitos tóxicos dos iões no citosol, pelo que constitui um mecanismo essencial na tolerância das plantas a ambientes salinos, quer das glicófitas, quer das halófitas. Só assim se pode explicar as elevadas concentrações de Na+ que são quantificadas em folhas que funcionam normalmente sem mostrarem sinais de toxicidade pelo sal. Como acontece na halófita Mesembryanthemum crystallinum que é capaz de acumular na célula até 1 M de Na+, ou noutras que suportam concentrações próximas à da água do mar (Vera-Estrella et al., 1999; Läuchli & Grattan, 2007). Concentrações acima de 200 mM são comuns em plantas crescidas em meios salinos, ainda que níveis desta ordem inibam completamente a atividade in vitro das enzimas. Conforme se referiu na secção 1.1., as atividades das enzimas isoladas de halófitas ou de plantas não tolerantes são igualmente inibidas in vitro pelo excesso de NaCl, o que sugere que a compartimentação do Na+ é um mecanismo essencial em todas as plantas e não resultado da evolução diferencial das enzimas das plantas halofíticas (Munns & Tester, 2008). Com a exceção da presença eventual de glândulas excretoras de sal nas plantas tolerantes, a diferença entre estas e as plantas sensíveis à salinidade reside na maior eficiência da compartimentação vacuolar das primeiras (Yeo, 1998). Além disso, as halófitas usam o sódio confinado no vacúolo como osmólito, o que é vantajoso para a manutenção da turgescência e expansão celulares (Bohnert et al., 1995).

Por vezes, confunde-se o teor de Na+ nos tecidos da planta salinizada (folhas, caules ou raízes) com o teor citosólico, pois nas vulgares análises dos elementos inorgânicos nos tecidos vegetais não é tido em conta que uma parte significativa do Na+ acumulado pode estar retido no vacúolo (Chen et al., 2005). A microanálise por raios-X tem permitido localizar e estimar as concentrações dos iões acumulados nos compartimentos celulares. Um dos trabalhos pioneiros com esta técnica foi realizado em células de tabaco adaptadas a elevada salinidade (428 mM NaCl), que confirmou a acumulação dos iões Na+ e Cl− no vacúolo a concentrações da ordem de 780 mM e 624 mM, respetivamente, enquanto que os níveis de ambos os iões no citosol estavam abaixo de 100 mM (Binzel et al., 1988). Os resultados obtidos da microanálise por raios-X em folhas da halófita A. spongiosa crescida em meio com 600 mM NaCl revelou concentrações iónicas consideravelmente superiores no vacúolo do que no citosol, o que evidencia que a compartimentação iónica é um mecanismo que possibilita às plantas suportarem níveis elevados de salinidade (Storey et

al., 1983). No entanto, e também recorrendo a esta técnica, Ottow et al. (2005) concluíram

que a estratégia usada nas folhas de Populus euphratica para lidar com a salinidade (400 mM NaCl) consistiu na acumulação do Na+ no apoplasto e não no vacúolo. Outros organelos, como os plastídios e mitocôndrias, podem também acumular algum Na+ e contribuirem para compartimentação subcelular do ião (Zhu, 2003). Mas, de um modo geral, os vacúolos são os organelos que mais fazem baixar o Na+ no citosol, cuja concentração tende para não exceder os 150 mM, independentemente do teor salino no meio externo (Wang et al., 2001). Para além de que a compartimentação vacuolar de Na+ e Cl− gera uma pressão osmótica elevada no interior do organelo favorável à entrada de água e ao crescimento da célula (Gaxiola et al., 2001). Adicionalmente, contribui para a manutenção de uma razão K+/Na+ relativamente elevada no citosol fundamental para a homeostasia iónica em condições salinas (Fukuda et al., 2004a). A compensação osmótica é feita no citosol pela acumulação de solutos orgânicos cuja natureza é variável, havendo referências a incrementos nos níveis de açúcares e de aminoácidos (Olmos & Hellín, 1996; Santos & Caldeira, 1999). Nas células de tabaco adaptadas ao sal, o Na+ e Cl− acumulados foram os principais solutos utilizados no ajustamento osmótico, tendo estado também envolvidos na osmoregulação de P. euphratica crescido na presença de NaCl (Binzel et al., 1987; Ottow et al., 2005). Apesar da acumulação de solutos orgânicos em ambos os modelos experimentais, o seu contributo para o ajustamento osmótico foi menor comparativamente ao dos solutos iónicos, o que parece ser vantajoso em termos

metabólicos. A estratégia em usar sobretudo os elementos inorgânicos no ajustamento osmótico é mais favorável do ponto de vista energético, uma vez que o sódio é um elemento abundante, enquanto que a síntese dos solutos orgânicos implica um consumo de energia que seria benéfico para o crescimento da planta (Zhu, 2001). Segundo Munns & Tester (2008), a exigência em ATP para a síntese dos solutos compatíveis nas células foliares é consideravelmente superior à quantidade necessária para acumular o sal como osmólito.

Os vacúolos são capazes de armazenar uma elevada quantidade de iões sódio e cloreto, entre outros, mas para que se estabeleça um gradiente de concentração em relação ao citosol o transporte de ambos para o vacúolo terá que ser ativo. O transporte do Na+ é mediado pelo antiportador Na+/H+ que, à semelhança do antiporte localizado na membrana plasmática, utiliza o gradiente eletroquímico de H+ gerado pelas bombas V-H+-ATPase e V-H+-PPase associadas ao tonoplasto (Figura 1.10). Estas proteínas são responsáveis pelo bombeamento de H+ para o interior do organelo, a partir do consumo de ATP e de pirofosfato (PPi) respetivamente, criando um gradiente de H+ transmembranar fundamental à energização dos sistemas de transporte ativo secundário, determinantes das funções associadas ao vacúolo como a osmorregulação, controlo de pH e armazenamento de iões e nutrientes (Martinoia et al., 2007).

Desde há muito que se admite o envolvimento do antiportador Na+/H+ vacuolar no transporte do Na+ e na capacidade das plantas para crescerem em meios salinos. As primeiras evidências do mecanismo de transporte do tipo antiporte Na+/H+ surgiram no tecido de reserva da espécie tolerante B. vulgaris e nas respetivas culturas de células em suspensão mantidas na presença de NaCl, tendo a ativação do antiportador Na+/H+ sido essencial para a tolerância destas ao sal (Blumwald & Poole, 1985, 1987). A atividade do antiportador foi também observada na halófita M. crystallinum exposta a 200 mM NaCl, ao passo que em Plantago a sua atividade foi detetada apenas na espécie tolerante ao sal (P.

maritima) e não na sensível (P. media) (Garbarino & DuPont, 1988; Staal et al., 1991;

Barkla et al., 1995). A ausência de atividade do transportador nas plantas sensíveis ao sal parece reforçar a noção de que estas plantas dependem da exclusão do Na+ ao nível da membrana plasmática e não acumulam o ião no vacúolo (Blumwald, 2000).

Apesar das indicações sobre a função do antiportador Na+/H+ na compartimentação e homeostasia do Na+, a sua importância na tolerância salina foi confirmada após a identificação em A. thaliana do gene AtNHX1, homólogo do gene que codifica o

antiportador Na+/H+ vacuolar em Saccharomyces cerevisiae (ScNHX1), e posteriores estudos de sobre-expressão em várias plantas (Gaxiola et al., 1999). Com efeito, a sobre- expressão do AtNHX1 e de genes homólogos (OsNHX1 e TNHX1) aumentou a tolerância à salinidade em A. thaliana, Brassica napus e O. sativa (Apse et al., 1999; Zhang et al., 2001; Apse & Blumwald, 2002; Fukuda et al., 2004b; Brini et al., 2007). Nestas plantas, o teor de Na+ aumentou em consequência da exposição ao sal, no entanto, assistiu-se a um aumento dos níveis de transcritos e da proteína, bem como da atividade do antiportador no tonoplasto. A acumulação de Na+ eventualmente contribuiu para manter a turgescência celular, ainda que conservando o ião a baixos níveis no citosol devido à sua compartimentação no vacúolo (Plett & Møller, 2010). Em plantas conhecidas pela sua tolerância ao sal, como é o caso das halófitas M. crystallinum e A. gmelini, e das plantas e culturas de células de B. vulgaris, assistiu-se a um aumento da expressão dos genes do antiportador do tipo NHX1 induzido pelo stress salino (Chauhan et al., 2000; Hamada et

al., 2001; Xia et al., 2002). Em Gossypium hirsutum verificou-se que a expressão do gene

que codifica o antiportador Na+/H+ (GhNHX1) foi mais elevada nas cultivares tolerantes ao sal (Wu et al., 2004), tendo-se observado um resultado idêntico nos genótipos mais resistentes de Triticum aestivum (Saqib et al., 2005).

O gradiente eletroquímico de H+ através da membrana vacuolar gerado pela V-H+- ATPase e V-H+-PPase constitui a força motriz para o transporte ativo secundário e acumulação de iões e de outros solutos no vacúolo, o que é revelador da importância das duas bombas de protões na resposta ao stress salino. Embora a V-H+-ATPase seja uma proteína membranar generalizada em todos os eucariontes, a V-H+-PPase é encontrada nas plantas, em algumas algas e nas bactérias fotossintéticas. Para além de ser única na célula, a V-H+-PPase utiliza o PPi como fonte de energia, um substrato simples e de elevada energia, subproduto de diversas reações metabólicas em que se incluem os processos de síntese de proteínas, RNA, amido e celulose, ou a β-oxidação de ácidos gordos e a conversão do piruvato em fosfoenolpiruvato (Maeshima, 2000). Já a V-H+-ATPase está presente no sistema membranar de outros organelos além do vacúolo (retículo endoplasmático, complexo de Golgi), onde é responsável pela acidificação do interior destes compartimentos intracelulares, e cuja estrutura se assemelha às ATPases que existem nas mitocôndrias e cloroplastos (ATPases tipo F) (Barkla & Pantoja, 1996). Em contraste com a V-H+-PPase que consiste num só polipéptido de cerca de 80 kDa, a V-H+- ATPase é uma proteína multimérica composta por cerca de onze subunidades diferentes,

dependendo da espécie, com um peso molecular que ronda os 400-650 kDa. Caracteriza-se por dois domínios funcionais,o domínio periférico(V1) hidrofílicovoltado para o citosol e

formado pelas sub-unidades A (70 kDa) e B (60 kDa), responsáveis pela atividade catalítica da enzima, e pelas subunidades C–H que ligam este setor ao domínio hidrofóbico

vacuolaraltamente acídico (inferior a três) dos bagos (Maeshima, 2000). A sua estrutura aparentemente simples faz com que esteja menos sujeita à degradação provocada pela exposição dos bagos ao calor do que a V-H+-ATPase, tendo-se já confirmado a sua estabilidade a elevadas temperaturas, o que leva a admitir que a V-H+-PPase poderá ser a bomba de protões mais ativa na acidificação do lúmen vacuolar em situações de stress (Martinoia et al., 2007).

Nesta perspetiva, a sobre-expressão do gene da V-H+-PPase (AVP1) em A. thaliana resultou emplantasmuito maisresistentes aelevadas concentrações de NaCl e à falta de água doque as plantas não transformadas (Gaxiola et al., 2001). Anteriormente tinha sido já visto que a expressão heteróloga da pirofosfatase (AVP1) em leveduras restabelecia a tolerância salina de linhas mutantes sensíveis ao sal (Gaxiola et al., 1999), e este resultado foi mais tarde confirmado por Gao et al. (2006) em plantas de tabaco.

Em princípio, a maior expressão de uma das bombas de H+ deverá aumentar a compartimentação dos iões no vacúolo perante o gradiente protónico gerado (Silva & Gerós, 2009). Assim foi observado na halófita Salicornia bigelovii crescida na presença de inserido no tonoplasto (V0) (Figura 1.11). O

setor (V0) é composto pela subunidade a e por

várias cópias da subunidade c que compõem o canal de passagem dos protões (Martinoia et al., 2007).

Ao nível do tonoplasto, a V-H+-ATPase é a bomba de protões mais abundante na maioria das plantas, estima-se que compõe até 35% da proteína total da membrana, enquanto que a V- H+-PPase pode constituir 1 a 10% da proteína total (Dietz et al., 2001). Emborahajaexceções como acontece nos tecidos jovens em crescimento e nosbagos de uva em que a V-H+- PPase é predominante, contribuindo para o pH

Figura 1.11 – Estrutura da V-H+-ATPase. O complexo da enzima é composto pelo domínio periférico à membrana responsável pela hidrólise de ATP (V1), e

pelo domínio transmembranar (V0) que

está envolvido na translocação dos protões através do tonoplasto. Adaptado de Dietz et al. (2001).

elevada concentração salina, em que o aumento dos níveis de V-H+-PPase e da sua atividade de bombeamento estimulou o transporte de Na+ para o vacúolo por via do antiportador Na+/H+ (Parks et al., 2002). Em cevada, o stress salino aumentou de forma idêntica os níveis de transcritos da V-H+-PPase (HVP1) e do antiportador Na+/H+ vacuolar (HvNHX1), o que indica que em situações de salinidade a expressão de ambos os transportadores envolvidos na acumulação do Na+ é coordenada (Fukuda et al., 2004a). Estudos realizados mostraram que a expressão simultânea dos genes AVP1 e NHX1 em A.

thaliana e na planta do arroz foi mais eficiente no aumento da tolerância salina do que a

expressão apenas do antiportador (Zhao et al., 2006; Brini et al., 2007).

A coexistência de dois sistemas enzimáticos distintos a desempenhar a mesma função na membrana vacuolar é, aparentemente, paradoxal. É frequentemente aceite que a V-H+- ATPase tem um papel predominante na formação do gradiente eletroquímico transmembranar, ao passo que a V-H+-PPase parece funcionar como um sistema auxiliar no bombeamento de H+, principalmente nos tecidos mais jovens onde a produção de PPi é mais intensa (Façanha & de Meis, 1998). Rea e Sanders (1987) propuseram que, ao invés de ambas as enzimas operarem em paralelo no bombeamento de H+ para o interior do vacúolo, o gradiente de H+ gerado pela V-H+-PPase poderia promover a síntese de ATP, ativando o funcionamento reverso da ATPase, principalmente em condições de stress onde a produção de energia poderá estar mais comprometida. Em vesículas de tonoplasto de milho, a síntese de ATP foi obtida em resposta ao gradiente de H+ gerado pela hidrólise de PPi, o que mostra que a V-H+-PPase pode funcionar como um sistema de conservação de energia ao manter os níveis citosólicos de ATP (Façanha & de Meis, 1998). Rea & Poole (1993) já tinham salientado a importância fisiológica da V-H+-PPase na manutenção do gradiente protónico em condições de fornecimento reduzido de ATP, tendo os trabalhos de Carystinos et al. (1995) e de Darley et al. (1995) mostrado que em situações de baixa produção de ATP, como acontece na sequência da exposição de plantas a baixas temperaturas ou de anóxia, a V-H+-PPase pode substituir a V-H+-ATPase na acidificação do vacúolo, um aspeto que foi mais tarde confirmado por Martinoia et al. (2007). Contudo, em situações de salinidade tem-se verificado que a V-H+-ATPase é a enzima que mais contribui para a energização do sistema de antiporte Na+/H+ e, consequentemente, para a tolerância salina de várias plantas. Assim aconteceu nas plântulas de Vigna unguiculata em que o stress salino induziu a expressão da V-H+-ATPase e o aumento da sua atividade (Otoch et al., 2001), bem como na halófita S. salsa sujeita a elevada salinidade (Wang et

al., 2001; Qiu et al., 2007). Do mesmo modo, nas células em suspensão de P. euphratica a

quantidade de proteína e a atividade da V-H+-ATPase aumentaram com a exposição ao NaCl, tendo a atividade da V-H+-PPase decrescido (Ma et al., 2002). Foi proposto que a V- H+-PPase pode ser diretamente inibida pelo sal devido à semelhança do Na+ com o K+, um dos cofatores da enzima (Rea & Poole, 1993). Mais tarde, Silva et al. (2010) confirmaram em vesículas de tonoplasto de P. euphratica que a atividade de bombeamento da V-H+- PPase foi reduzida pelo NaCl adicionado ao meio de reação.

Apesar da discrepância nos resultados entre os vários estudos, é notória a importância das duas bombas de H+ para a tolerância salina, sobressaindo ainda que a atividade de ambas é regulada pelo sal, embora de um modo diferente, sabendo-se que a resposta da V- H+-PPase pode ser também modulada pela fase de desenvolvimento em que a planta se encontra ou por fatores inerentes ao tecido em estudo (Maeshima, 2001).