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3 SEGURANÇA PÚBLICA, REFORMA POLICIAL E POLÍCIA COMUNITÁRIA

3.4 Polícia Comunitária e o conceito de comunidade

3.4.2 Comunidade: as concepções pós-modernas de Bauman e Maffesoli

Frente às realidades pré-modernas, nos dias atuais houve uma multiplicidade dos contatos, emergindo o convívio de uma grande quantidade de pessoas na vida urbana. Houve também o aumento da impessoalidade nas relações entre os indivíduos. O contato é realizado sem o vínculo afetivo. Há, portanto, o individualismo nos objetivos, com menos influência dos pensamentos coletivos, até então existentes nas comunidades pré-modernas. Acrescenta- se, ainda, a perda do sentido de espaço geográfico e de tempo, sobretudo devido à evolução tecnológica na área da comunicação e do transporte, onde não há “uma demarcação clara dos limites de uma comunidade, de certa forma, dificultando a localização das relações e sua

durabilidade ao longo do tempo” (MOCELLIM, 2011, p. 107).

Há uma clara oposição entre o processo de individualização das sociedades modernas e a valorização da coletividade da vida tradicional. O fato da pessoalidade da comunidade ir perdendo espaço para a impessoalidade da metrópole tornou as pessoas carentes por afeto compartilhado, ou, segundo aponta Mocellim (2011, p. 108), de “uma vida orientada por códigos morais específicos e bem delimitados, típicos da comunidade”. Para Bauman (2003), comunidade transmite a sensação de aconchego e segurança, onde há pessoas amigáveis e bem intencionadas nas quais é possível confiar, oposto a todas as incertezas e inseguranças trazidas pelo mundo de fora.

Enquanto na sociologia clássica havia uma clara preocupação com as consequências da modernidade para a vida comunitária tradicional (naquela sociedade até então orientada pelas tradições), na sociologia contemporânea, há um maior distanciamento cronológico dessas questões, pois na pós-modernidade, busca-se responder “de que forma os grupos se formam e como oferecem - e se oferecem - um sentido partilhado, mesmo diante de um processo ampliado de diferenciação e individualização” (MOCELLIM, 2011, p. 126). Depois de profundas e evidentes mudanças no modo de viver, com radicais transformações na sociedade, os sociólogos e acadêmicos de forma geral questionavam se a vida comunitária ainda seria possível, se sua existência seria apenas um acidente ou, caso fosse impossível, no que se transformou e onde estaria.

Para Bauman (2003), embora comunidade fosse desejada, era também um sonho impossível de ser alcançado, pois a realidade da vida é completamente oposta da comunidade imaginada. A busca pela configuração de comunidade, para o autor, é também a busca por segurança. A segurança assume um sentido mais amplo, além de física e geográfica, também

está ligada à segurança emocional, pois no mundo moderno líquido, o capitalismo transformara a vida humana numa busca incessante por objetivos líquidos, sem forma, meio a incerteza e a possibilidades efêmeras, onde frequentemente impera o mal estar e a ansiedade.

[...] a palavra “comunidade” soa como música aos nossos ouvidos. O que essa palavra evoca é tudo aquilo de que sentimos falta e de que precisamos para viver seguros e confiantes. [...] é o tipo de mundo que não está, lamentavelmente, ao nosso alcance [mas] buscamos febrilmente os caminhos que podem levar-nos até lá (BAUMAN, 2003, p. 9).

Há um preço a pagar pelo privilégio de 'viver em comunidade' - e ele é pequeno e até invisível só enquanto a comunidade for um sonho. O preço é pago em forma de liberdade, também chamada 'autonomia', 'direito à autoafirmação' e 'à identidade'. [...] A segurança e a liberdade são dois valores igualmente preciosos e desejados que podem ser bem ou mal equilibrados, mas nunca inteiramente ajustados e sem atrito. [...] jamais encontraremos em qualquer comunidade autoproclamada os prazeres que imaginamos em nossos sonhos (BAUMAN, 2003, p. 10).

A partir do conceito de modernidade líquida, Zygmunt Bauman descreve o mundo pós-moderno, repleto de incertezas, sem forma, diferente daquele moderno no qual se gerava certezas repletas de verdades (BAUMAN, 2001). A liquidez que o autor identifica em suas obras (BAUMAN, 2001, 2003, 2006, 2009, 2013) atinge principalmente valores que, na modernidade, estavam vinculados ao Estado, à escola, à Igreja/religiões, à família e até mesmo pela polícia. Essas instituições sociais ofereciam regras mais claras que geravam pressões externas exercidas sobre o indivíduo. Na pós-modernidade, esses valores e regras deixaram de existir, dando origem a uma sociedade em que a própria noção de regulação da ética está em colapso, em que as relações entre os indivíduos tendem a ser menos frequentes e menos duradouras; e o indivíduo, apesar de cercado por inúmeras outras pessoas em sua vida cotidiana urbana, é amedrontado também pela solidão.

Esse autor deixa claro que o termo comunidade é uma realidade imaginária do passado, e buscada no presente. A comunidade precede o indivíduo, aquela não foi criada por este. O sujeito nasce em uma comunidade, onde há laços humanos (BAUMAN, 2003). Na sociedade atual, pelo contrário, há redes de relacionamento, criada e mantida pelos indivíduos por duas atividades: conectar e desconectar. Nessa perspectiva, é fácil ter amigos - um relacionamento com outro sujeito - porém também é fácil desconectar dele, diferentemente dos laços humanos de uma comunidade, onde é mais difícil rompê-los, pois as conexões são reais e verdadeiras (BAUMAN, 2003). Os rompimentos neste caso são sempre traumáticos.

A vida na pós-modernidade é caracterizada pela ambivalência. Portanto, se a “‘comunidade realmente existente’, se nos achássemos a seu alcance, exigiria rigorosa

obediência em troca dos serviços que presta ou promete prestar” (BAUMAN, 2003, p. 9-10). Estar em uma verdadeira comunidade, é sempre uma benção e maldição ao mesmo tempo. Os laços humanos são sempre prazerosos, pois há em quem confiar. É também uma maldição, pois, quando se entra no laço, dificilmente o rompe. Assim como em um casamento, na constituição de uma família, faz-se um juramento, empenhando-se o futuro e ignorando todas as outras possíveis oportunidades, que até então são impossíveis de prever. Essas oportunidades serão então perdidas, pois o indivíduo estará preso aos compromissos que fez no passado: a maldição de se estar em uma comunidade.

Bauman (2003) analisa uma espécie de trade-off da vida humana. Há dois valores essenciais que são absolutamente indispensáveis para uma vida satisfatória e feliz: liberdade e segurança. Não é possível ter uma vida digna na ausência de um deles. Segurança sem liberdade é escravidão e liberdade sem segurança é um completo caos, dada a incapacidade de planejamento, de realização e do sonho. O problema é que é impossível ter a combinação perfeita. Sempre haverá a falta de um deles, sempre se quer os dois e nunca se terá o suficiente. Para Bauman (2003), quando se busca mais segurança, entrega-se um pouco de liberdade, e vice-versa. Não há alternativa.

[...] A tensão entre a segurança e a liberdade e, portanto, entre a comunidade e a individualidade, provavelmente nunca será resolvida e assim continuará por muito tempo; não achar a solução correta e ficar frustrado com a solução adotada não nos levará a abandonar a busca - mas a continuar tentando. [...] Não seremos humanos sem segurança ou sem liberdade; mas não podemos ter as duas ao mesmo tempo e ambas na quantidade que quisermos. Isso não é razão para que deixemos de tentar [...] O melhor pode ser inimigo do bom, mas certamente o “perfeito” é um inimigo mortal dos dois. [...] Uma boa coisa a fazer, contudo, é avaliar as chances e perigos das soluções já propostas e tentadas (BAUMAN, 2003, p. 10-11).

A sociologia clássica de Tonnies nutria a visão de que comunidade necessitaria de um entendimento partilhado entre seus membros (MOCELLIM, 2011), já para Bauman (2003), na modernidade líquida, o entendimento partilhado não é mais possível, pois o aparente entendimento teria sido substituído pelo consenso; e, consenso não significa partilha, são apenas negociações em meio a divergências. Ou seja, o entendimento, que antes estava disponível a toda comunidade de forma natural e pré-existente, hoje, em sua transição para a sociedade, teria sido substituído pelo consenso, negociável e almejado, embora geralmente efêmero e nem sempre alcançado.

É impossível a existência da verdadeira comunidade no momento atual, apenas imaginada e desejada, pois o entendimento na comunidade tornou-se autoconsciente e não

partilhado, por isso “a comunidade só pode estar dormente - ou morta” (BAUMAN, 2003, p. 17). Algumas considerações são possíveis: (a) na comunidade é tudo dado antecipadamente, sem motivação para reflexão, crítica ou experimentação; (b) a comunidade é fiel a sua natureza, sem ambiguidade cognitiva ou ambivalência comportamental; (c) se distingue de outros agrupamentos humanos, há distinção entre nós e eles; (d) a comunidade é autossustentável, revigora-se e protege a todos seus membros contra as inseguranças do mundo exterior; (e) na comunidade há segurança, porque ela é pequena e autossuficiente. Dada sua impossibilidade, o autor também discorre sobre algumas considerações mais realistas de uma comunidade realmente existente: (a) unidade artificialmente construída, por meio da negociação e adesão racional; (b) a segurança também é reconstruída artificialmente; (c) o entendimento é substituído pelo consenso, sem a garantia duradoura, podendo ser desfeito (BAUMAN, 2003).

A vida comunitária, portanto, se torna insustentável, principalmente pela impossibilidade de manter o que Bauman chamou de mesmidade, importante para mantê-la coesa, pequena, autossuficiente e homogênea. Isso é impossível no mundo atual porque houve uma ampliação dos canais de comunicação e de transporte, relativizando as distâncias entre todos os agrupamentos humanos, o que impossibilita a “distinção entre ‘nós’ e ‘eles’ [...] a comunicação entre os de dentro e o mundo exterior se intensifica e passa a ter mais peso que as trocas mútuas internas. [...] a fronteira entre o ‘dentro’ e o ‘fora’ não pode mais ser estabelecida e muito menos mantida” (BAUMAN, 2003, p. 19).

As pessoas que acreditam que não há nada a fazer [...] para exorcizar o espectro da insegurança, se ocupam em comprar alarmes contra ladrões e arame farpado. O que eles procuram é o equivalente do abrigo nuclear pessoal; o abrigo que procuram chamam de “comunidade”. A “comunidade” que procuram é um “ambiente seguro” sem ladrões e à prova de intrusos. “Comunidade” quer dizer isolamento, separação, muros protetores e portões vigiados (BAUMAN, 2003, p. 103).

Essa busca pela verdadeira comunidade, mesmo que impossível seu alcance de forma plena, trouxe uma autoproclamação de comunidades, as comunidades realmente existentes. Isso trouxe consequências, como os muros e os alarmes, a distinção entre nós e eles, o isolamento e o desejo ansioso pela liberdade, dada sua falta:

Não ter comunidade significa não ter proteção; alcançar a comunidade, se isto ocorrer, poderá em breve significar perder a liberdade. A segurança e a liberdade são dois valores igualmente preciosos e desejados que podem ser bem ou mal equilibrados, mas nunca inteiramente ajustados e sem atrito. [...] O problema é que a receita a partir da qual as “comunidades realmente existentes” foram feitas torna a contradição entre segurança e liberdade mais visível e mais difícil de consertar (BAUMAN, 2003, p. 10).

As comunidades cercadas, pesadamente guardadas com muros altos e vigiadas eletronicamente, são controladas e compradas pelas pessoas que Bauman chama de bem- sucedidas, que as “compram no momento em que têm dinheiro ou crédito suficiente para manter distância da ‘confusa intimidade’ da vida comum da cidade” (BAUMAN, 2003, p. 52). Para o autor, essas ditas comunidades não são capazes de reconstruir uma experiência de entendimento como visto nas comunidades da sociologia clássica de Tönnies, por exemplo. Essas pessoas estariam buscando a segurança e a manutenção da intimidade de seus moradores, refugiando-se de intrusos, com os quais não se pode ter confiança por serem oriundos de um mundo de incertezas.

Por esse motivo, Bauman (2003) sugere que identidade seja a substituta contemporânea da comunidade, permanecendo ainda a ideia de um pertencimento, embora temporário, revogável e precário. Nas comunidades pré-modernas, a identidade era fixa, porém, com a realidade contemporânea, a identidade será sempre flexível, sujeita a mudanças de acordo com os enfrentamentos do cotidiano. A identidade deve ser “vestida” para cada situação e enquanto for necessária.

Por isso, o conceito de identidade não é capaz de trazer a segurança que a comunidade traz, pois, a construção de identidade nunca será fixa ou determinada como a comunidade dos sonhos pretende ser, porque são transitórias. Bauman não sugere que o termo comunidade se extinga, mas que se transforme perante a realidade contemporânea, permanecendo a verdadeira comunidade apenas no imaginário. A busca incessante pela identidade favorece a emergência de um novo tipo de comunidade, chamada por Bauman (2003) como comunidade estética.

Diferentemente das comunidades éticas, que seriam aquelas descritas por Tönnies, orientadas por normas, tradições e destinos partilhados (MOCELLIM, 2011), as comunidades estéticas, criadas em consonância com as novas identidades, são flexíveis e mutáveis, sem uma orientação moral duradoura, nem um destino partilhado. As comunidades estéticas permanecem, portanto, sob o risco constante de sua dissolução, e são estabelecidas em conformidade com as novas identidades, reunidas em torno de ídolos, celebridades e do entretenimento do mundo contemporâneo (BAUMAN, 2003). “Há um deslocamento da ética para a estética, no qual as autoridades não são mais os líderes morais, mas o exemplo das celebridades e a liberdade que representam” (MOCELLIM, 2011, p. 120).

Uma coisa que a comunidade estética definitivamente não faz é tecer entre seus membros uma rede de responsabilidades éticas e, portanto, de compromissos a longo prazo. Quaisquer que sejam os laços estabelecidos na explosiva e breve vida da comunidade estética, eles não vinculam verdadeiramente: eles são literalmente “vínculos sem consequências” (BAUMAN, 2003, p. 67).

Também discorrendo sobre a sociedade pós-moderna, Maffesoli (2014) trabalha com o conceito de “tribalismo”. Ele também avalia que existe um movimento do conceito de comunidade para identidade. Porém diferentemente de Bauman e sua ênfase no individualismo e na impessoalidade, Maffesoli (2014) acredita que a vivência efêmera do momento presente, em conjunto, leve a uma nova forma de integração social, o neotribalismo, com uma ruptura do individualismo moderno e a impessoalidade da vida cotidiana das cidades. Para o autor, no pós-modernismo, ocorre um hibridismo de estilos de vida, há um retorno da vivencia comunitária, ainda que a pós-modernidade seja marcada pela ambiguidade. Considerando que o “comportamento tribal tende a predominar”, os membros da tribo passam a “guardar para si” e “para os próximos” (parentes ou grupo ampliado) o “monopólio do poder e o seu exercício”, num processo de tribalização do político (MAFFESOLI, 1997, p. 69).

[...] a ambiguidade que operava nas sociedades tradicionais tende a voltar a ocupar a boca do palco da pós-modernidade. Nesse sentido também a ambiguidade é um índice dos mais seguros anunciando o fim de uma visão dominada pela política projetiva, pela administração planificadora e racional e pela economia puramente contábil e utilitária. A ambiguidade indica, por oposição, que a vida comum é animada em profundidade por diversas correntes, contraditórias, opostas, e que se responsabilizar por ela implica consequências imprevisíveis (MAFFESOLI, 1997, p. 79).

Há de fato uma “potência” na massa que ultrapassa cada indivíduo, fazendo-o membro de um “genius” coletivo, gênio que, a exemplo da deidade, cria a sociedade no seu meio natural e social. É possível que exista na massa pós-moderna uma energia criadora, tendo por fonte uma força vital indiferenciada, reatando assim como o substrato arcaico, fundamento de todo estar-junto. (MAFFESOLI, 1997, p. 209).

[...] o indivíduo é uma realidade relativa, nos dois sentidos do termo; realidade relativizada por outros e que põe em relação com outros, pressuposto de uma realidade arcaica, no sentido etimológico do termo, uma realidade que serve de suporte (MAFFESOLI, 1997, p. 210).

Na tentativa de explicar as diversas formas de agregação social que ocorriam e o declínio do individualismo nas sociedades de massa, Maffesoli (2014) considerou que fatores como sentimento, mitologia, ideologia e emoção poderiam proporcionar a sensibilidade coletiva, de maneira a superar o individualismo moderno. Embora difusamente, as neotribos sejam uma reconstrução da vida comunitária, pois conferem um sentido comum aos seus membros, embora sejam (os membros e seus próprios grupos) passageiros. Para ele, a

proximidade (por força de circunstâncias), a partilha do mesmo território (real ou simbólico) e o desenvolvimento de rituais (exprime o retorno do mesmo) são elementos que asseguram “a perdurância” do grupo, um “sentimento coletivo” e a “ideia comunitária” (MAFFESOLI, 2014, p. 29-30).

Podemos nos interrogar sobre a comunidade, sobre a nostalgia que lhe serve de fundamento, ou sobre as utilizações políticas que dela foram feitas. De minha parte, repito, trata-se de uma “forma” no sentido que dei a esse termo, que ela tenha existido ou não, tanto faz. Basta que essa ideia, como um pano de fundo, permita ressaltar tal ou tal realização social, que pode ser imperfeita, até mesmo pontual, mas que nem por isso deixa de exprimir a cristalização particular de sentimentos comuns. Nessa perspectiva “formista”, a comunidade vai se caracterizar menos por um projeto (pro-jectum) voltado para o futuro do que pela efetuação in actu da pulsão de estar-junto. Observando expressões da vida cotidiana, tais como calor humano, cerrar fileiras, fazer uma corrente para frente, podemos pensar que talvez esteja aí o fundamento mais simples da ética comunitária (MAFFESOLI, 2014, p. 28-29).

As tribos urbanas de Maffesoli seriam então múltiplas e variadas, com seus diferentes códigos, dando diferentes sentidos às suas ações e orientando as identidades de seus membros. Os membros da tribo não possuem uma identidade individual, mas uma identidade partilhada, comum à tribo a que pertence. Nesse novo tribalismo, os indivíduos apesar de não terem uma identidade individual, possuem inúmeras identidades também partilhadas, pois participam de outras tribos, com o hibridismo de identidades. A identidade individual, portanto, passa a ser configurada pela junção de todas as outras identidades que um mesmo indivíduo possui. Cada pessoa poderá viver, então, sua pluralidade de tribos e de identidades, mesmo que conflituosamente.

A heterogeneidade presente na sociedade urbana permite que as pessoas se deparem com uma infinidade de grupos. Esses grupos estão impossibilitados de se isolarem em seus próprios valores e estilos de vida, pois são feitos de indivíduos que integram vários outros grupos simultaneamente. O neotribalismo permite o reconhecimento individual sem levar ao atomismo, recepciona indivíduos com uma multiplicidade de identidades, sem, contudo, comprometer a identidade partilhada do grupo, atestando que o modo de vida contemporâneo não é puramente individualista (MAFFESOLI, 2014; MOCELLIM, 2011).

[...] pode-se ser levado a acreditar que, em uma sociedade onde a diferenciação é maior, a identidade torna-se mais relevante e que, mesmo que a integração em torno de ideias e valores comuns esteja presente nas comunidades estéticas e nas neotribos, elas não oferecem uma orientação moral ou uma norma de conduta que caracterizam a comunidade. A identidade é a comunidade individualizada, a substituta moderna da comunidade (MOCELLIM, 2011, p. 126).

Segundo Bauman (2003, p. 19), o mais próximo do entendimento comum (consenso) só seria alcançado, apesar de sua efemeridade, por meio da longa e tortuosa negociação, pois “de agora em diante, toda homogeneidade deve ser ‘pinçada’ de uma massa confusa e variada por via de seleção, separação e exclusão; toda unidade precisa ser construída; o acordo ‘artificialmente produzido’ é a única forma disponível de unidade”. Mesmo que o acordo comum seja alcançado, nunca estará livre da memória de suas negociações, e das inúmeras outras opções “todas atraindo a atenção e cada uma delas prometendo uma variedade melhor (mais correta, mais eficaz ou mais agradável) [...] para os problemas da vida” (BAUMAN, 2003, p. 19). Por esse motivo, por mais firme que seja esse acordo, não poderá ser tão natural como nas comunidades de Tonnies. Para Bauman (2003), esses acordos são mais parecidos com um acordo preliminar, marcado por uma constante reflexão e contestação. Essas negociações seriam sempre pouco evidentes e, também, sempre passíveis de rompimento.

Por esse motivo, Bauman (2003, p. 21) utiliza a metáfora da “comunidade cabide”, ao afirmar que as comunidades estéticas são apenas comunidades passageiras, cujo objetivo é muito mais a composição de uma identidade individual do que a construção de uma coletividade, evidenciando uma fase de maior individualização nas sociedades modernas. Para o autor, realmente é impossível, nas sociedades contemporâneas, extremamente integradas e globais, onde não mais se determinam as ações e os pensamentos, ser recriado um modo de vida comunitário, em seu sentido tradicional, mesmo que as pessoas se esforcem para isso.

Essa metáfora refere-se a essa nova configuração de comunidade como cabide porque (a) são vestidas pelas pessoas como se fossem roupas, utilizando-as em diversas situações, podendo ser deixadas quando saem da moda ou quando a situação não mais as exige; e, (b) são consideradas cabides também porque são onde os medos e as preocupações enfrentados pelas pessoas são pendurados temporariamente, deixados de lado em nome de uma identidade vivida em conjunto, porém, por tempo específico, apenas enquanto duram os espetáculos que evocam uma identidade partilhada. Assim, “é discutível se essas ‘comunidades-cabide’ oferecem o que se espera que ofereçam - um seguro coletivo contra incertezas individualmente enfrentadas” (BAUMAN, 2003, p. 21).

Em tempos remotos, a sociedade, também sinônimo de comunidade, era considerada como algo a que se poderia recorrer na busca por ajuda em caso de problemas; apesar de rigorosa, existia uma relação paternalista. Atualmente, a sociedade oferece insegurança e perspectivas incertas, deixando o conceito de comunidade distante e oposto à sociedade,

apesar de comunidade ser sempre objeto de desejo na busca por um lar seguro. Ou seja, vista sempre como uma entidade imaginária, a sociedade contemporânea é hoje composta por indivíduos que buscam por uma referência, pela segurança da vida em comunidade (BAUMAN, 2003). O endereço ou a certidão de nascimento dá ao indivíduo uma sensação de seguro coletivo contra o infortúnio individual da sociedade contemporânea, valorizando-se, portanto, o lugar:

Entre as totalidades imaginárias a que as pessoas acreditavam pertencer e aonde acreditavam poder procurar (e eventualmente encontrar) abrigo, um vazio boceja no lugar outrora ocupado pela “sociedade”. Esse termo já representou o Estado, armado