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Comunidade de Inserção para sem abrigo: bases e influências

PARTE I: ENQUADRAMENTO TEÓRICO

Capítulo 3: Modelos de Intervenção em estruturas residenciais para Sem Abrigo 1 A opinião pública acerca dos sem abrigo

3. Comunidade de Inserção para sem abrigo: bases e influências

Postulamos serem duas as linhas de pensamento que confluem no trabalho realizado pelas Comunidades de Inserção (CI): por um lado constituírem-se como um modelo substituto da sociedade e por outro como modelo hierárquico da família. Em traços gerais, estas estruturas adoptam uma intervenção centrada na pessoa, na perspectiva de preparar os indivíduos para a reintegração na sociedade mais ampla. Alguns residentes referem-se à comunidade como a sua “família” ou o lugar onde “cresceram” e aos funcionários como os pais que nunca tiveram, Bratter, Bratter e Radda, (1986). Outros sentirão a instituição como uma micro-sociedade. Com a proibição do uso de substâncias e do comportamento anti-social, a instituição assemelha-se à sociedade mais ampla: uma rotina diária de trabalho e educação, as relações sociais e a progressão individual pela hierarquia de funções das tarefas quotidianas, compara-se bastante ao percurso do “mundo real”. O vivenciar das muitas funções ao nível das tarefas rotineiras e dinâmica da casa proporciona o necessário treino de diversos papéis, de modo a readquirir capacidades dispersas no processo de exclusão. A mais valia da CI é a aprendizagem por tentativas e erros, permitindo que se possa fracassar num ambiente de segurança. Isso contrasta com o mundo exterior em que existe um maior risco de perdas, humilhações e punições decorrentes deste fracasso. Por isso, a CI é considerada uma microssociedade que prepara o indivíduo para uma participação activa na definição do seu lugar na macrossociedade do “mundo real”, permitindo a emergência do sentimento de competência e pertença ao nível da organização social. O período de estadia na CI é um período relativamente breve da vida do indivíduo, apesar disso, o seu impacto é suposto contrapor-se aos anos de influências negativas anteriores e posteriores ao projecto. Por esse motivo, as influências externas insalubres são minimizadas até que o indivíduo esteja melhor preparado para lidar com elas. Estas estruturas pressupõem que o indivíduo permaneça durante aproximadamente um ano, contrariando o carácter transitório de grande parte das instituições para sem abrigo. A permanência de curta duração faz com que o interesse e o vínculo estabelecidos sejam breves e superficiais, quando acreditamos ser necessário, justamente, construir vínculos mais duradouros que lhes permitam (re)elaborar a sua história e reparar padrões prévios de vinculação inseguros.

As estruturas interpessoais, tais como as formas de interacção na casa, estão alicerçadas sob três características: reciprocidade, equilíbrio de poder e estabilidade na relação afectiva (Bronfenbrenner, 1979/1996). Estas características ajudam o indivíduo a manter-se estruturado a

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fim de permitir o desenvolvimento saudável. A reciprocidade está centrada no processo de aproximação que ocorre entre duas ou mais pessoas. Com o seu feedback mútuo, ela gera um momento próprio que os motiva a investir na relação e a vincularem-se a padrões de interacção subsequentemente mais complexos (Bronfenbrenner, 1979/1996). Assim, é preciso incentivar as relações recíprocas nas estruturas de acolhimento, visto que incrementam os processos de proximidade. Entretanto, mesmo havendo reciprocidade, um dos integrantes da relação pode ser mais influente do que o outro.

O equilíbrio de poder refere-se à distribuição deste poder na relação. É importante o estabelecimento do equilíbrio de poder de forma a ajudar a pessoa na aprendizagem e no desenvolvimento da capacidade de lidar com relações de poder diferenciadas, sendo que o poder é gradualmente conquistado pelos residentes (Bronfenbrenner, 1979/1996). No ambiente institucional, os técnicos e os monitores devem possuir mais poder do que os residentes, embora esta distribuição possa ser alterada gradativamente com o amadurecimento destes últimos. A relação afectiva estável é estabelecida no envolvimento em interacções diádicas, possibilitando o desenvolvimento de sentimentos recíprocos, podendo ser positivos, negativos ou ambivalentes (Bronfenbrenner, 1979/1996). Na medida em que a estrutura permite a criação de relações afectivas estáveis, positivas e recíprocas, torna-se mais provável incrementar o ritmo e a ocorrência dos processos desenvolvimentais. Desta forma, as instituições de acolhimento devem considerar o afecto presente nas relações entre os seus membros. A dimensão afectiva é parte inerente das relações humanas, não devendo ser excluída enquanto elemento propiciador de desenvolvimento e integração. Assim, a instituição consiste num ambiente ecológico de extrema importância, um microssistema onde os residentes realizam um grande número de actividades, funções e interacções, como também um meio potenciador do desenvolvimento de relações recíprocas, de equilíbrio de poder e de afecto. Um dos pilares do trabalho em

comunidade de inserção é o próprio grupo de residentes. O

grupo é o espaço de elaboração da identidade pessoal e social, no qual cada um se vê confrontado com limites e possibilidades que devem ser reflectidos e processados. Isso leva o indivíduo a compreender-se no conjunto, construindo referências importantes para adquirir uma auto-imagem favorável e confiança nas relações estabelecidas. Todos precisam de se sentir membros importantes de um grupo no qual encontrem apoio e aceitação. Trabalhar em grupo implica aceitar um processo comunicativo de cooperação de diferentes ideias, críticas e julgamentos que podem emergir. O respeito à opinião e ao contexto do Outro deve

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traduzir-se numa acção colectiva solidária e recíproca, reconhecendo e valorizando as diferenças que podem contribuir para o colectivo. Os residentes formarão os seus sub-grupos conforme o interesses e a receptividade ou a aceitação que percebam entre os demais.

É o grupo que desenvolve o sentimento de pertença e segurança, porém, há situações em que a sua constituição deve ser acompanhada e mediada pelos técnicos, para não prevalecer a imposição da vontade dos mais fortes ou agressivos sobre os mais frágeis. Sem esta orientação, podem surgir tentativas de uso da força e submissão de alguns aos demais, com o risco de provocar humilhação e violência, atitudes e comportamentos desviantes, perpetuando as vivências anteriores de rua, causando prejuízos ao desenvolvimento sócio-emocional.

O grupo pode constituir-se como uma estratégia privilegiada de promoção da ajuda mútua, da compreensão da diversidade e de fortalecimento da amizade e do companheirismo. De acordo com a ênfase dada pela Teoria Ecológica aos processos proximais ocorridos em contextos de desenvolvimento (Bronfenbrenner, 1979/1996; Bronfenbrenner & Morris, 1998), e sobretudo, de acordo com a importância do afecto mútuo e recíproco das relações interpessoais, torna-se crucial investir em interacções mais estáveis e afectuosas no ambiente institucional, tanto nas relações dos funcionários com os residentes, como nas relações entre pares. Independentemente da sua história prévia, das causas e da vivência da condição de sem abrigo, o objectivo último permanece o mesmo para todos os residentes - autonomização - embora a definição desse processo, suas estratégias e áreas de intervenção tenham um carácter individual.