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PARTE I: ENQUADRAMENTO TEÓRICO

Capítulo 1: Desenvolvimento e Relações de Vinculação 1 Conceito de vinculação

6. Transmissão intergeracional

No decurso da sua prática clínica Bowlby, refere que as informações relativas às experiências afectivas podem ser armazenadas a dois níveis: nível episódico e nível semântico. A memória episódica refere-se a recordações, tanto factuais como emocionais, sobre acontecimentos específicos da vida do indivíduo. Por sua vez, a memória semântica refere-se às generalizações que o indivíduo faz a partir do conjunto das suas experiências ou, de outras fontes para além do que é de facto vivido, em particular, de outrem. Ao contrário do que acontece na memória episódica, o indivíduo é capaz de se consciencializar desta memória através da verbalização e da reflexão.

Uma vez que o modelo de funcionamento permanece relacionado com o estabelecido com as primeiras figuras de vinculação, a capacidade para se ajustar e responder de forma adequada às solicitações do outro, é limitada. Esta insensibilidade não intencional conduz à repetição de atitudes pouco tranquilizadoras, levando a criança a confrontar-se com o mesmo tipo de afectos e a desenvolver o mesmo tipo de defesas que outrora o seu progenitor desenvolveu. Este fenómeno é denominado por transmissão intergeracional.

A impermeabilidade relacional explica, em grande medida, o porquê dos indivíduos replicarem os modos de interacção vividos anteriormente, nas novas relações que estabelecem, quer amorosas, quer parentais. Contudo, esta transmissão não tem um carácter determinista, havendo a possibilidade, desde que reunidos os condicionantes necessários (interesse do próprio, ambiente estável e tranquilizador, relação de segurança, entre outros) para uma revisão dos modelos internos.

Capítulo 1: Desenvolvimento e Relações de Vinculação

Há evidências empíricas de que a dinâmica de relacionamento estabelecida com os cuidadores numa geração é geralmente recriada na próxima (Kretchmar e Jacobvitz, 2002). Mulheres que tiveram um relacionamento caracterizado por proximidade e suporte à sua autonomização, parecem recriar este tipo de relação com os seus próprios filhos.

Na comparação intergeracional fica evidenciado um papel de maior destaque da figura materna na contribuição da educação dos filhos, sugerindo que a função da mãe seja mais sólida e próxima do que a do pai (Vitali, 2004; Monteiro & Pereira, 2008).

Investigadores identificaram que o suporte do companheiro é um dos factores que contribui para que as mães reestruturem os padrões disfuncionais aprendidos com a sua família (Egeland & Sroufe, 1981). Identificam igualmente que a capacidade de reinterpretar a sua história relacional familiar pode contribuir para identificar e reparar os padrões disfuncionais.

Num estudo desenvolvido por Capaldi e Clarck (1998) concluiu-se que a agressividade pode ser um dos padrões passíveis de ser transmitidos de geração para geração. Resultados semelhantes foram encontrados por Ehrensaft e Cohen (2003), ao seguirem durante vinte anos uma geração de crianças. Concluíram que as crianças expostas à violência entre os pais durante a infância têm mais riscos de se tornarem adultos agressivos.

Belsky e Fearon (2002), chamaram a atenção para a importância dos primeiros relacionamentos de vinculação como organizadores de um possível padrão de vinculação. Estes estudos sublinham que uma vez alcançada a segurança, está longe qualquer garantia de mantê-la, e também fomentam a ideia de que a sensibilidade medeia a transmissão intergeracional da vinculação. A maior parte destes resultados foram confirmados no estudo do Instituto Nacional de Saúde Infantil e Desenvolvimento Humano (NICHD, 2003), no qual a sensibilidade materna foi o preditor mais forte de todos os resultados. Quando as mães apresentavam maior sensibilidade com os seus bebés, estes demonstram maior competência social e menos comportamentos problemáticos.

A análise dos estudos revelou que intervir ao nível dos padrões de vinculação é uma tarefa difícil e que as intervenções apenas provocam mudanças relativamente moderadas (BakermansKranenburg et al., 2003). Além disso, os autores postularam que a sensibilidade não está directamente dependente da intervenção oferecida aos pais e mães.

Sagi e colaboradores (1997) constataram que a transmissão da vinculação ao longo das gerações não é de forma alguma um "fenómeno universal", mas sim fruto da criação de mecanismos específicos. Analogamente, Tienary e colaboradores (1994) desenvolveram uma

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investigação numa grande amostra de crianças adoptadas na Finlândia, com crianças com mães biológicas esquizofrénicas. Os resultados mostraram que as crianças em risco foram mais susceptíveis de desenvolver problemas psiquiátricos, mas apenas quando o seu ambiente foi disfuncional (Bohman, 1996, encontrou resultados semelhantes quanto a comportamentos criminosos). Assim, há um ambiente dinâmico e de interacção entre factores genéticos e ambientais. Todos estes estudos demonstraram que a genética é um factor a ter em conta, mas por si só, não tem um carácter determinista.

Dixon e colaboradores (2005) revelaram a presença de três principais factores de risco envolvidos na transmissão intergeracional, a saber: parentalidade antes de 21 anos, história de doença mental ou depressão, e residência com um adulto violento. Dixon e colaboradores (2005) verificaram também que os três factores de risco acrescido de um novo elemento, o estilo parental, explicaram 62% do total do efeito e, como tal, foram incapazes de fornecer uma plena relação de causalidade da transmissão intergeracional.

Um grande número de investigadores discutiu o processo de transmissão do comportamento das mães em relação a seus filhos (Perris & Andersson, 2000; vanIjzendoorn, 1996; Belsky, 2002). Ao estudarem a transmissão intergeracional, concluíram que há correlação entre os valores experienciados e os que são passados a futuras gerações. No entanto, esta situação nem sempre se verifica, podendo mesmo ocorrer transformação dos padrões entre gerações.

Com base neste pressuposto Kochanska (1995, 1997) centrou o seu âmbito de intervenção na aplicação de um programa de desenvolvimento da consciência em crianças jovens. Constatou que com as crianças tímidas, receosas e as crianças com temperamento reactivo, uma atitude de poder paternal assertiva não parece promover a consciência. Mas para as crianças ansiosas, a firmeza é a prática mais eficaz de lidar com o desenvolvimento de um estreito vínculo emocional da criança e a responsividade materna. Isso significa que as crianças ansiosas são mais propensas à socialização, mais capazes de obedecer e sentem mais desconforto interno quando transgridem (Kochanska, 1997).

Monteiro e Pereira (2008) apresentam um estudo que defende a importância de estabelecer relações afectivas privilegiadas na adolescência. Uma vinculação segura (aos pares e aos pais) parece actuar como factor de protecção para a emergência de psicopatologia, sugerindo que se intervenha terapêuticamente em jovens com padrões de vinculação inseguros. Trabalhando aspectos como a análise e avaliação das representações disfuncionais de si próprios e dos outros, perspectivam que a relação terapêutica actue como uma experiência desconfirmatória, podendo

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intervir no sentido da reelaboração dos modelos internos dinâmicos e da reestruturação dos esquemas interpessoais, contribuindo para a ruptura de ciclos transgeracionais negativos (Safran & Segal, 1990, Guidano, 1991).

Tendo em conta que o desenvolvimento vinculativo é um factor determinante, que pode actuar como factor de protecção para a emergência de psicopatologia, ou pelo contrário, predispor para esta, apresentamos de forma mais detalhada a relação entre vinculação e psicopatologia.