• Nenhum resultado encontrado

Modelos de compreensão da toxicodependência

PARTE I: ENQUADRAMENTO TEÓRICO

Capítulo 4- Saúde Mental e Sem Abrigo 1 A pobreza e a saúde mental

4. Patologia Dual

5.1 Modelos de compreensão da toxicodependência

Chamamos a atenção para que a relação com as drogas não deixa de ser uma forma de relação. É importante que os técnicos que trabalham na área da toxicodependência detenham competências relacionais mobilizadoras da capacidade de estabelecer relação. É com o estabelecimento desta relação terapêutica que podemos “substituir” as drogas. Um dos muitos livros escritos por Eric Berne intitula-se significativamente "O que diz você depois de dizer

Capítulo 4:Saúde Mental e Sem Abrigo

olá?" De facto, "olá" é a unidade mínima de estimulação que as pessoas podem trocar entre si. Tratar a pessoa pelo nome próprio vale bem mais do que um simples "olá". E um abraço sentido vale ainda mais (Abreu, 2000).

Vamos então tentar perceber o processo das dependências. De acordo com Claude Olivenstein (1990) e outros autores já clássicos que abordaram as questões relativas ao (ab)uso de drogas (Bergeret, 1982; Nowlis, 1989), definem a toxicomania como o encontro entre uma personalidade, um produto, e um momento sociocultural. Partimos da concepção básica e relativamente consensual entre os especialistas, da tripolaridade constatada em qualquer processo de uso de drogas. Um dos pólos diz respeito ao produto; outro refere -se à personalidade do utilizador, constructo resultante dos processos de interacção estabelecidos pelo sujeito com os seus contextos de socialização; e o outro pólo consiste exactamente nesses contextos de socialização, ou seja, nos ambientes socioculturais que interagem no processo existencial do sujeito (Cruz, M., 2000: 111).

O conceito de dependência e as explicações para a sua formação têm, como já referimos, evoluído ao longo dos tempos. Benjamim Rush distingue três fases na sua história. São elas, a fase unifactorial, a fase bifactorial, e a fase biopsicossocial, correspondentes a três concepções ligadas a modelos explicativos diferentes, os quais surgem também em contextos históricos distintos. Tal como a nocividade atribuída a uma substância psicoactiva e os contornos da definição de "droga" assentam mais na história e na tradição do que na psicofarmacologia, estando mesmo alguns conceitos e preconceitos condicionados pelo quadro socio-legal vigente, a conceptualização da toxicodependência acaba também por sofrer as influências dominantes da época. Mesmo que a nível clínico a dependência física esteja perfeitamente definida, a crescente utilização e valorização da dependência psicológica na concepção das toxicodependências acaba por introduzir um alto grau de subjectividade ao conceito lato de dependência, dando desse modo poder à sociedade para atribuir, de forma arbitrária, a classificação de comportamento dependente aos comportamentos recorrentes que são desviantes da norma dominante.

Vejamos então, ainda que sumariamente, a forma como a toxicodependência tem sido compreendida por cada um destes modelos.

Pode considerar-se que o momento que inaugura a fase unifactorial, é o livro Inquiry into the effects of ardent spirits upon human body and mind, publicado no final do século XVIII, por Benjamim Rush, por sinal defensor das teses proibicionistas. Neste texto, o autor expressa a ideia de que a da dependência do álcool deriva apenas do seu consumo.

Capítulo 4:Saúde Mental e Sem Abrigo

Figura 2: Processo de desenvolvimento da dependência: modelo unifactorial

Reforço positivo

Substância Toxicodependência

Reforço negativo

Este foi o conceito que as teorias comportamentalistas adoptaram e foi também o modelo que inspirou o movimento da temperança e os movimentos proibicionistas do início do século. Nesta concepção a dependência é gerada por via de mecanismos de aprendizagem cujas respostas associadas ao uso vão ter um efeito de reforço positivo (sensações de bem estar) e de reforço negativo (evitar o mau estar). Assim certos toxicodependentes recorrem cada vez mais a uma (das) droga(s) para compensar a ausência de recompensa, de satisfação que não são capazes de receber da vida até que, num dado momento, acabam por encontrar na droga a sua recompensa principal (Morel, A.; Hervé, F.; Fontaine, B., 1998:175).

Mais concretamente podemos dizer que o reforço positivo consiste, fundamentalmente na procura de sensações agradáveis experimentadas com o uso de drogas, sem que isto implique a existência de um mau estar prévio. Existe uma teoria que explica os efeitos agradáveis das drogas por alterações aos mecanismos de acção da dopamina, verificados especialmente numa área primitiva do cérebro denominada área tegmental ventral. O reforço negativo consiste, fundamentalmente, no recurso às drogas para eliminar um mau estar físico ou psicológico, decorrente do uso de drogas ou de alguma patologia prévia que potencie a auto- medicação. Como sabemos, as substâncias tóxicas podem gerar dois tipos de dependência: a psicológica e a física. A dependência psicológica, ligada fundamentalmente aos mecanismos de reforço positivo, consiste na sensação experimentada pelo consumidor de que necessita da substância para atingir um melhor nível de actividade ou uma sensação de bem estar superior, recorrendo por isso de forma quase sistemática ao seu consumo.

Capítulo 4:Saúde Mental e Sem Abrigo

Mais visível em termos sociais, e causadora de maiores danos, a dependência física está ligada fundamentalmente aos mecanismo de reforço negativo: surge quando o organismo se adaptou fisiologicamente ao consumo habitual da substância, verificando-se, com a interrupção ou diminuição acentuada do consumo os sintomas característicos do síndroma de abstinência específicos da substância em causa. No desenvolvimento destes dois tipos de dependência é ainda necessário ter em consideração não só as propriedades específicas da substância como o carácter e o estado emocional do consumidor e o contexto em que o mesmo está integrado: estes podem surgir como factores de risco ou protectores face ao desenvolvimento de um comportamento abusivo.

De uma forma geral, no percurso dos toxicodependentes, podemos distinguir três etapas associadas à maior ou menor participação deste dois mecanismos. A primeira fase é vulgarmente designada por lua de mel e é caracterizada pela percepção dos efeitos positivos das drogas e pela ausência quase total de efeitos negativos. Nesta fase funciona fundamentalmente o mecanismo de reforço positivo: os consumos são ocasionais ou pouco regulares pelo que os efeitos negativos ou estão ausentes ou não são muito significativos. Muitos dos consumidores de drogas estão nesta fase, não sendo obrigatório que evoluam para as outras fases, especialmente no caso dos consumidores de cannabis. A segunda fase pode já estar associada à dependência física. Se bem que os mecanismos de reforço positivo sejam predominantes, e quase exclusivos no caso da dependência psicológica da cannabis, noutras drogas, como o álcool e a heroína, começam já a ser importantes os mecanismos de reforço negativo. Assim, os consumos, além de proporcionarem ainda algum prazer, começam a ser também uma necessidade para mitigar o sofrimento, tornando-se cada vez mais regular e imperioso o uso das substâncias para contrariar os seus efeitos negativos. Na terceira fase, fundamentalmente associada à dependência física, os mecanismos de reforço positivo são quase anulados, existindo uma predominância quase total dos mecanismos de reforço negativo. A transição para esta fase é muito reduzida ou mesmo inexistente no caso dos consumidores de cannabis, mas muito mais frequente nos heroinómanos e nos alcoólicos, devido à severidade dos sintomas de abstinência que estas substâncias produzem. Nesta fase, os consumidores, que atingem uma visibilidade social muito grande pelo seu aspecto e comportamentos assumidos, observada especialmente em alguns heroinómanos pelo seu recurso à criminalidade aquisitiva, buscam essencialmente o restabelecimento da sua normalidade e a angústia provocada pela abstinência exige ser mitigada de imediato. Está instalado o círculo da dependência característico dos sistemas que reagem de forma compulsiva aos efeitos negativos.

Capítulo 4:Saúde Mental e Sem Abrigo

O modelo unifactorial surgiu, como vínhamos dizendo, no final do século XVIII e foi predominante até ao início do século XX, mais concretamente até meados dos anos 30 deste século. Se bem que cientificamente ultrapassado, serve ainda hoje de base ao discurso político -jurídico- mediático e está provavelmente enraizado na generalidade da população. Esta concepção pode ser sintetizada na frase: "a droga faz o drogado que faz o crime".

Durante os anos 30, os alcoólicos anónimos, ainda inspirados pela teoria de Rush, lançaram um movimento de entre ajuda, afirmando que o alcoolismo não reside na bebida mas no homem e que este é um doente que sofre de uma patologia cujo sintoma principal é a necessidade compulsiva do produto. Neste modelo, a dependência surge como resultado de dois factores, o homem e a substância, estando a ênfase colocada no primeiro (figura 5).

Figura 3: Processo de desenvolvimento da dependência: modelo bifactorial

Indivíduo Substância Toxicodependência

No entanto, este modelo, quando aplicado às drogas ilícitas, não toma o consumidor por um doente mas sim por um delinquente. Assim, em associação com a ideia de que a "droga" provoca o crime, é de algum modo a base da construção jurídica que procurou e procura legitimar a criminalização do consumo. No final dos anos 30, o consumo de certas substâncias por parte de minorias étnicas - o ópio pelos chineses, a cannabis ou marijuana por mexicanos e a cocaína por negros - é diabolizado por uma elite dominante branca, protestante, anglo-saxónica, altamente puritana e racista. A penalização de algumas das características distintivas daqueles grupos, também chamados dangerous classes, proporcionou um fértil caminho para a associação das drogas “ilícitas” ao crime. Visto sobre este prisma a ênfase posta num indivíduo que para consumir uma substância tem de violar a lei e praticar um delito, quando poderia escolher não o fazer, transforma o toxicodependente num delinquente que tenta escapar à norma social imposta pela legislação. Esta fase prolonga-se até meados dos anos setenta e foi durante este período que a racionalidade punitiva do consumo foi aplicada em Portugal. Data desta época a campanha "Droga - Loucura-Morte" que surge associada à expansão do consumo de drogas ilícitas em Portugal e que é

Capítulo 4:Saúde Mental e Sem Abrigo

até mesmo referida como promotora dessa expansão. Esta produção legislativa antecede o aparecimento de uma nova lógica na defesa das teses proibicionistas que constitui uma espécie de regresso ao modelo unifactorial e que se torna dominante no discurso político-jurídico, marcando o início de um afastamento entre esse discurso e as teorias científicas dominantes em matéria de drogas e toxicodependências.

Por esta altura, nos Estados Unidos, o consumo de drogas ilícitas tinha extravasado o limite das dangerous classes associadas à delinquência e ao crime, e era frequente entre a população branca anglo-saxónica não desviante, nomeadamente entre os membros das elites dominantes. Este alastramento às populações com bons valores morais vai contribuir para uma mudança de postura, pois atingiram-se assim os impecáveis (isentos de pecado). O consumidor, até então indubitavelmente delinquente, vai passar cada vez mais a ser observado como um doente que recorre ao crime devido à sua doença. Por outro lado, o saber científico também evoluiu no sentido de recorrer a outros factores para conseguir explicar a toxicodependência.

Surge nesta fase um novo modelo que começou a ser amplamente divulgado no início dos anos oitenta e que constitui hoje, a posição consensualmente admitida nos meios científicos: ele conceptualiza as toxicodependências como uma doença causada por vários factores de ordem biológica, psíquica e social. É o chamado modelo biopsicossocial.

Figura 4: Processo de desenvolvimento da dependência: modelo biopsicossocial

Indivíduo

Substância Toxicodependência

Contexto

Mas se a toxicodependência é cientificamente conceptualizada desta forma, no que se refere aos efeitos sociais que surgem por via dos comportamentos das populações consumidoras, o poder político e o legislador, de modo a escamotearem os efeitos negativos da legislação continuam a tomar como base o modelo unifactorial postulando uma concepção de causalidade linear segundo a qual as drogas causam problemas de comportamento nos consumidores, que por sua vez, causam problemas sociais.

Capítulo 4:Saúde Mental e Sem Abrigo

Figura 5: O papel do toxicodependente no desenvolvimento de problemas de comportamento (discurso político-jurídico)

Indivíduo

Substância Comportamento Problema

Pelo contrário à luz da concepção biopsicossocial dos comportamentos dependentes, é impossível compreender o papel do sujeito descontextualizando-o do encontro “perigoso” entre ele próprio, a substância e o meio envolvente (figura 8).

Figura 6: O papel do toxicodependente no desenvolvimento de problemas de comportamento (modelo biopsicossocial)

Indivíduo

Substância Comportamento Problema

Contexto

Como diz Michel Reinald (1984, cit in Nowlis, op. Cit. Pág.27):

“...o problema das toxicomanias...é considerá-lo como um encontro entre o produto, uma personalidade e um contexto sócio-cultural”.

Helen Nowlis (1989) definiu 4 maneiras fundamentais de encarar a utilização da droga tendo em conta os seus componentes interactivos - a substância, o contexto e o utilizador: o modelo jurídico moral, o modelo médico ou de saúde pública, o modelo psicossocial e o modelo sócio- cultural, não esquecendo que qualquer um destes são um exemplo da diversidade de hipóteses formuladas em torno da toxicodependência. Sintetizamos, então, os seus aspectos básicos.

No modelo Jurídico Moral a droga é o elemento mais importante. Os produtos classificam-se em duas categorias: inofensivos ou perigosos, sendo estes últimos proibidos jurídica e socialmente. O objectivo principal deste modelo é, pois, a retirada do produto do alcance do público, visto como a principal vítima da existência deste fenómeno. As medidas coercivas e policiais baseiam-se no medo quanto à posse ou venda de substância. Pelo contrário, a droga inofensiva é

Capítulo 4:Saúde Mental e Sem Abrigo

aquela que não é social ou juridicamente interdita. E as drogas perigosas são todas as outras. As principais fórmulas de travar o aumento da utilização das drogas potenciam-se através “...o controlo do seu preço, da punição ou ameaça de punição e da divulgação de advertências quanto aos riscos físicos, psicológicos ou sociais, implicados no seu uso” (Nowlis, 1989:7). Tal como as drogas são dicotomicamente divididas em legais ou ilegais, da mesma forma os indivíduos são considerados como utilizadores ou não utilizadores, consoante consomem ou não drogas. Por momentos, este modelo fez-me lembrar o slot “droga, loucura e morte”, de que tanto se falou e em que houve um crescimento dos consumos. Ele supõe uma educação feita pelo medo, pela repressão, que penso não ser a solução para a sociedade em que nos encontramos, em que o “fruto proibido é o mais apetecido”, como diz o ditado popular. O modelo Jurídico Moral focaliza- se“...na(s) substância(s) e não no indivíduo que a(s) utiliza(m) não considerando os factores emocionais e afectivos responsáveis pela iniciação e/ou manutenção de certos padrões de consumo de drogas” Carvalho Negreiros (1991:139). Penso, no entanto, que a realidade é muito mais complexa não se podendo ter uma visão simplista como esta. A substância é importante mas há outros aspectos a ter em conta. Existe neste modelo uma clivagem da sociedade em bons e maus cidadãos, o que acarreta, simultaneamente, a sua desresponsabilização. O modelo médico ou de saúde pública tende, cada vez mais, a substituir o modelo Jurídico Moral: “...a droga, o indivíduo e o contexto são considerados respectivamente como o agente, o hospedeiro e o meio ambiente, numa transposição do esquema do modelo de uma doença infecciosa” (Nowlis, 1989: 7). À semelhança desse modelo, o hospedeiro é o indivíduo vulnerável, ou não, infectado ou infeccioso. Os utilizadores devem, então, ser tratados e curados como se tratasse de um problema médico. Os programas educacionais orientados para a prevenção salientam os aspectos pessoais e sociais causados pela dependência. Neste modelo a droga assume ainda o papel mais importante, sendo considerada como geradora de dependência, e não simplesmente como uma substância perigosa. No entanto, tanto neste como no modelo anterior, o papel principal é atribuído à substância. Só que o modelo médico não introduz qualquer diferença entre a legalidade ou ilegalidade da substância, daí incluir frequentemente o álcool, a nicotina e a cafeína como geradoras de dependência, embora as distinga de outras substâncias. Para diminuir o seu uso e controlar a facilidade de obtenção há que diminuir a aceitação social e aumentar o preço das substâncias que levam à dependência. Por outro lado, e na sequência da sua assimilação ao modelo da doença infecciosa, surgem “...acções de vacinação, que incluem uma grande série de medidas, desde a absorção de antinarcóticos, até à criação de programas

Capítulo 4:Saúde Mental e Sem Abrigo

educacionais” (Nowlis, 1989:8). Sintetizando, podemos dizer que este modelo trata a problemática da toxicodependência unicamente do ponto de vista médico, tendo em conta apenas o sintoma. No entanto, “...não é evidente que os utilizadores de produtos legais ou ilegais dos quais depend am devam ser tratados como se tivessem um problema exclusivamente médico” (Bergeret 1997: 36).

O modelo sócio-cultural refere-se às atribuições que a sociedade faz relativamente ao uso da droga, aos seus utilizadores e aos modos de reacção. As substâncias ganham importância e relevo, não tanto pelas suas propriedades farmacológicas, mas pela forma como os utilizadores a elas reagem e pela forma como a sociedade define o seu uso. A droga é vista na óptica de um comportamento desviante, que varia de cultura para cultura, existindo inclusive culturas em que nem desviante é. As condições de habitação, a ausência de oportunidades, a industrialização e a urbanização, são tudo factores que jogam um papel relevante na perspectiva sócio-cultural. São acentuados não só os elementos sociais e psicológicos mas também as condições económicas e o ambiente em que vive o indivíduo. Há, pois, um deslocamento da causalidade do indivíduo para as instituições e sistemas sociais. Segundo Nowlis, este modelo tem em conta a variação do factor contexto, na complexa equação droga, indivíduo, contexto. O elemento droga, tem um valor relativo, pelo que “O uso de drogas socialmente proibidas é visto aqui em primeiro lugar como um comportamento que se desvia do normal, comportamento que deve ser encarado e tratado como qualquer outro comportamento desviante ou, se excessivo, destrutivo”(Nowlis, 1989:9-10). Neste modelo, interessa, pois o conjunto de condutas do indivíduo que são consideradas desviantes, em que os danos causados podem ser fruto do próprio comportamento ou da reacção da sociedade. Os aspectos valorizados pela sociedade (competição, sucesso, conformismo) são de igual forma reconhecidos como potencialmente geradores de comportamentos desviantes.

No modelo psicossocial a utilização de drogas é considerada um comportamento como qualquer outro, que persiste apenas enquanto desempenhar uma função para o indivíduo. Fuente (1983: 84) diz mesmo que “se não existisse uma procura de drogas a oferta não faria sentido”. A toxicodependência é encarada de um ponto de vista contínuo em que o indivíduo é o agente activo: “O uso da droga e o seu utilizador são considerados, dentro deste ponto de vista, como um factor complexo, dinâmico, tornando-se assim o ponto central das acções de intervenção...”. (Nowlis, 1989:9). De acordo com esta perspectiva procura-se perceber qual o significado e função que o utilizador dá à droga, isto é, qual a importância que ela tem na sua vida. A droga em si não tem valor, o indivíduo é que lhe dá uma funcionalidade. O contexto, neste modelo, tem um papel importante não só no uso da droga como nas reacções a esse mesmo uso.

Capítulo 4:Saúde Mental e Sem Abrigo

A inovação, ao nível dos programas educativos, é a recomendação de soluções e medidas não especificamente relacionadas com a droga mas que se demostrem igualmente aplicáveis a outros comportamentos destrutivos, ou que se desviem da normalidade. Deixa-se assim de lado o papel principal da substância, relativizando a questão e pondo em relevo o indivíduo e o meio no qual ele está inserido. Não há assim uma resposta única, sendo favorecida a intervenção exterior a nível da reabilitação do sujeito e da sua reinserção social.

Procurando escutar o diálogo que o toxicodependente tem com a droga, apercebemo-nos que ele vive constantemente no dilema entre a abstinência e o consumo, entre a dificuldade de se ver agarrado e amarrado, nomeadamente à sua heroína que idolatra, mitifica, venera, mas que também o destrói e o mata sem piedade, e a liberdade de viver, um dia após o outro, sem amarras, sem dependências, numa conquista sofrida de autonomia e auto-estima. Mas é tão difícil viver sabendo que existe algo que alivia rapidamente os sintomas e nos faz feliz, nem que seja por alguns minutos!... Muitos são os autores que contextualizam a problemática da toxicodependência nas dificuldades de separação-individuação experienciadas tanto pelo toxicómano quanto pela sua família. Stierlin (1971) é um dos autores que teoricamente mais contribuiu para acentuar o papel activo e dinâmico dos pais neste processo. Para este autor, a separação-individuação na família deve levar a uma independência relativa, garantindo a individualidade, reconhecendo as necessidades, os sentimentos e pensamentos próprios de cada indivíduo mas permitindo também as trocas entre os membros do sistema e os conflitos. O autor conceptualiza dois modelos de separação: o modelo centrípeto e o modelo centrífugo. Ambos descrevem dinâmicas familiares que sem serem obrigatoriamente patogénicas, podem agir negativamente na recíproca individuação, dependendo da altura em que ocorrem e da forma como se combinam. O modelo