• Nenhum resultado encontrado

A Desinstitucionalização Hospitalar

PARTE I: ENQUADRAMENTO TEÓRICO

Capítulo 4- Saúde Mental e Sem Abrigo 1 A pobreza e a saúde mental

2. A Desinstitucionalização Hospitalar

Pinel, em 1873, foi o primeiro a considerar o isolamento como uma necessidade para observar e descrever a sucessão de sintomas. Em meados da década de 50, as críticas ao carácter fechado, asilar e autoritário do hospital psiquiátrico tornaram-se intensas, realçando os efeitos negativos da hospitalização, tais como a apatia, a perda de capacidade de trabalhar, o deficit de competências sociais, a perda de autonomia, (Bandeira, 1991). Por outro lado, a evolução dos recursos farmacológicos permitiram o controlo da sintomatologia positiva numa grande maioria dos doentes.

Nas décadas de 50 e 60 surgem vários trabalhos científicos e políticos que defendem os tratamentos comunitários na saúde mental, tendo como principais argumentos a satisfação de viver em liberdade, exercício da cidadania, socialização, reinserção social e familiar, aumento da qualidade de vida, entre outros. No Quebéc este movimento de desinstitucionalização ocorreu a par de outros movimentos sociais, naquela que foi chamada de “revolução tranquila”, (Bandeira,1991).

O factor financeiro, especialmente nos EUA, incentivou a opção pelos tratamentos comunitários. Os custos com os hospitais psiquiátricos eram elevados e tornou-se imperioso dar respostas às necessidades dos doentes, de forma menos onerosa para o estado (Shadish, 1984; Shepper-Hughues, 1988), assintindo-se, entre 1955-1990, nos EUA, a uma quebra de 85% nos internamentos psiquiátricos (Lamb, 1993). No processo de desinstitucionalização, foram criados 600 centros regionais de saúde mental comunitária, até 1980.

Capítulo 4:Saúde Mental e Sem Abrigo

Cada centro comunitário estava destinado a servir uma população de 75.000 a 200.000 pessoas, sendo composto por equipas multidisciplinares com uma média de quatro psiquiatras e oito psicólogos. Foram igualmente criadas pequenas unidades psiquiátricas nos hospitais gerais para internamentos de curta duração (Bender, 1978). O governo americano, na tentativa de facilitar o processo de reinserção dos doentes, propõe o conceito de “case management” (Bandeira, 1998); consistindo num sistema de coordenação e integração de serviços, sob um responsável por cada caso psiquiátrico que se pretenda integrar na comunidade.

Para além deste modelo o governo norte-americano recorreu a outros modelos mais abrangentes, tais como o PACT, Program for Assertive Community Treatment, de Madison, e o Programa de Bridge, de Chicago. Nestes modelos, os pacientes recebem um acompanhamento individualizado e diário, por uma equipa multidisciplinar, continuamente e por um período ilimitado. Os estudos avaliativos destes programas mostram resultados mais positivos do que os do “case management”.

O Canadá foi outro dos países a adoptar a política de desinstitucionalização. A partir de 1962 os doentes internados em hospitais asilares foram transferidos para hospitais gerais. Entre 1962 e 1977 houve uma queda de 78% no número dos internamentos. Paralelamente expandiram-se as unidades psiquiátricas nos hospitais gerais. Embora ilusoriamente existisse a sensação de se estar a substituir com sucesso o tratamento asilar pelo hospitalar, constatou-se que os casos mais graves não estavam a ter qualquer acompanhamento, ficando ao cuidado das famílias ou em situação de sem abrigo. Na tentativa de colmatar esta lacuna, em 1976 são implementados os programas comunitários de saúde mental, contando-se 400 em 1990, (Morgado & Lima, 1994). Estes autores defendem que os programas comunitários previnem 80 a 90% das hospitalizações e os serviços hospitalares do Canadá ficam reservados para os pacientes que apresentem recaídas e requerem hospitalizações de curta duração. Em Inglaterra o processo de desinstitucionalização iniciou-se em meados de 1955 e em 1959 foi legalizado, conferindo às autoridades locais a responsabilidade de fornecer assistência aos doentes mentais. A legislação obrigava à existência de garantias de acompanhamento dos doentes para que se pudessem encerrar os hospitais psiquiátricos. Observou-se a diminuição de 28% de casos clínicos hospitalizados entre 1954 e 1971 e os serviços comunitários proporcionados pelas autoridades locais cresceram de 115 mil em 1960 para 140 mil em 1963 (Bandeira, 1991).

Capítulo 4:Saúde Mental e Sem Abrigo

Dados de uma recente investigação de Priebe e Col. (2003), de seis diferentes países europeus com diferentes tradições de organização dos cuidados de saúde mental e que experimentaram todos um processo de desinstitucionalização a partir dos anos 70 (Inglaterra, Alemanha, Itália, Holanda, Espanha e Suécia), revelaram o seguinte: o número de camas forenses e de lugares em apartamentos protegidos aumentaram em todos esses países, ao mesmo tempo que o número de camas para a psiquiatria em hospitais reduziu em 5 dos 6 países. Claro que são possíveis várias explicações para estes dados. Desde logo, o facto de se poder tratar de um processo de re-institucionalização compensatória, mas também o facto de poder ser consequência de uma maior frequência da doença mental, da sua gravidade ou de ambas, eventualmente influenciadas pelo aumento do uso de drogas ilegais. Mas uma hipótese que não pode ser descartada de maneira nenhuma tem que ver com a possibilidade da perda da capacidade de suporte social para doentes mentais graves em famílias tradicionais, (Teixeira, 2006).

Vários estudos (Braun et al, 1981;Test & Stein, 1980; Knapp, 1994; Kiesler, 1982; Wiersma et al, 1995), indicam que o tratamento comunitário é, na maioria das vezes, tão ou mais eficaz que o tratamento hospitalar, no sentido em que proporciona aos indivíduos com psicopatologia a integração no mercado laboral e a recuperação do seu lugar na comunidade, reduzindo ainda a necessidade de medicação e o recurso a serviços médicos. Braun e colaboradores (1981) ressaltam que uma desinstitucionalização satisfatória depende da disponibilidade de programas apropriados para o tratamento na comunidade. As experiências internacionais de desinstitucionalização psiquiátrica são ainda bastante controversas nos seus resultados, mantendo uma discussão acesa quanto aos factores negativos e positivos de tal experiência. Uma das limitações apontadas e comum aos países referidos anteriormente diz respeito à insuficiência dos serviços comunitários criados para dar resposta aos doentes psiquiátricos, quer a nível de número, quer a nível da capacidade para suprir as necessidades clínicas, sociais, ocupacionais e assegurar uma integração social dos pacientes (Bandeira et al, 1998).

Outra dificuldade verificada nos países em que a processo de desinstitucionalização está já numa fase mais avançada, é a nova geração de doentes mentais crónicos que não são admitidos em internamentos de longa duração nos hospitais, nem tão pouco se adaptam às exigências da vida comunitária. Segundo Lamb, (1993), grande parte dos sem abrigo dos EUA provém desta nova geração de doentes mentais, que acrescentam às limitações descritas a resistência à administração dos fármacos, o abuso de álcool e outras substâncias psicoactivas, o abandono da família, culminando na incapacidade para lidar com toda a

Capítulo 4:Saúde Mental e Sem Abrigo

burocracia envolvida no acesso aos serviços comunitários. Uma série de factores no âmbito do planeamento, execução e financiamento destes programas (e.g. falta de apoio financeiro suficiente e contínuo, má distribuição de recursos que não acompanham a reintegração dos doentes, incoerência governamental que promove a desinstitucionalização ao mesmo tempo que aprova mais verbas para a hospitalização, falta de formação dos técnicos, ausência de preparação e envolvimento da comunidade no acolhimento ao doente mental, falta de apoio às famílias, dificuldade de coordenação dos serviços envolvidos, falta de profissionais em relação ao número de pacientes, deficiente articulação entre o serviço hospitalar e comunitário, etc.) (Bandeira, 1991; Bandeira et al, 1998). Como consequência a qualidade de vida dos doentes desinsticucionalizados tem sido posta em causa.

O perfil do doente mental coincide, na maioria dos casos, com situações de pobreza, desemprego ou exploração laboral, falta de instrução e isolamento social. No entanto, com a constante discussão dos fracassos da desinstitucionalização, corre-se o risco de obscurecer os benefícios do tratamento comunitário para muitos doentes mentais com longos períodos de internamento. Lamb (1993) propõe que os novos serviços comunitários para doentes mentais passem a contemplar: a) um adequado número e vastas opções de alojamentos comunitários supervisionados e estruturados segundo o grau de autonomia dos pacientes e sua evolução; b) serviços psiquiátricos e de reabilitação adequados, amplos e acessíveis, fornecidos de forma assertiva e directiva; c) serviços de contenção de crises disponíveis e acessíveis; d) um esquema de responsabilização pelo doente crónico que vive em comunidade, que garanta que cada indivíduo tenha um profissional ou uma equipa multidisciplinar responsável pelos tratamentos psiquiátrico e medicamentoso por tempo ilimitado (estruturando, em conjunto com o doente, um plano de reabilitação, incluindo a própria medicação, monitorizando e garantindo-lhe assistência na procura de emprego ou na articulação com outros agentes sociais).

O sistema de saúde mental comunitário requer uma boa coordenação entre os diferentes sectores da rede de serviços, o que nem sempre se atinge. A realidade tem demonstrado dificuldade de coordenação entre os sectores e ainda lutas de poder entre os diferentes interventores e profissionais dos diversos serviços (Wallot, 1988).

A humanização do sistema de assistência comunitária descentraliza os recursos e torna a comunidade no lugar natural e privilegiado da intervenção, (Lancetti, 1989). Assiste - se, desta forma, a um processo de devolução dos doentes às comunidades e à necessidade

Capítulo 4:Saúde Mental e Sem Abrigo

destas se organizarem, no sentido de atribuir respostas que até então eram assumidas exclusivamente pelo estado.