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3 A INVALIDADE DOS NEGÓCIOS JURÍDICOS CONTRATUAIS POR

4.1 A SOCIEDADE EMPRESÁRIA ENQUANTO PESSOA JURÍDICA

4.1.1 Conceito e natureza jurídica do instituto pessoa jurídica

A personalidade jurídica é a aptidão conferida às pessoas para adquirirem direitos e contraírem obrigações349, um atributo que lhes é reconhecido pelo ordenamento jurídico pátrio. Este conceito engloba tanto as pessoas naturais, quanto as pessoas jurídicas.

No caso das pessoas jurídicas, Wilges Ariana Bruscato destaca como característica comum a existência do patrimônio próprio, tenham elas intuito lucrativo ou não. Aduz a autora que, para “atuar no mundo jurídico e real, é preciso que ela se torne sujeito de direito, que lhe seja atribuída personalidade jurídica”350.

A personalidade conferida às pessoas jurídicas é objeto de discussões doutrinárias, o que acarretou na formulação de diversas teorias acerca deste instituto jurídico. As teorias formuladas acerca da personalidade jurídica conferida às pessoas jurídicas são as seguintes: individualista, da ficção, da vontade, da instituição, da realidade objetiva ou orgânica e da realidade técnica351.

A primeira a ser analisada é teoria individualista. Ela prevê que a personalidade jurídica seria conferida, em verdade, aos próprios sócios, e não à pessoa jurídica em si, à sociedade352.

Em uma primeira análise, é possível observar que não foi esta teoria acolhida pela Codificação Civil brasileira. Clóvis Beviláqua destaca que tal teoria não oferece efeitos práticos às pessoas jurídicas e ao seu funcionamento, tendo em vista que os membros de uma sociedade não podem, em nome próprio, pleitear aqueles direitos que sejam privativos desta353.

Em segundo lugar, a teoria da ficção prevê que a personalidade jurídica, diferentemente da personalidade natural, seria uma criação da lei, uma ficção. Parte da doutrina entende ser ela de tão pouca utilidade quanto a primeira analisada. Entretanto, em oposição ao quanto previsto nesta teoria, entende-se neste estudo que o Estado não cria as pessoas jurídicas, mas as reconhece354, enquanto um conceito simplificador de um complexo de relações, como se passará a expor.

Caio Mário da Silva Pereira se posiciona contrário à teoria ora em análise, explicitando que o seu reconhecimento enfraqueceria o próprio Estado e as leis que dele emanam, nos seguintes termos:

349 PEREIRA, 2004, v. 1, p. 213.

350 BRUSCATO, Wilges Ariana. Empresário individual de responsabilidade limitada. São Paulo: Quartier

Latin do Brasil, 2005, p. 141.

351 Ibidem, p. 147. 352 Ibidem, p. 147.

353 BEVILÁQUA, 2001, p. 174. 354 Ibidem, p. 170.

[...] a lei cria a pessoa jurídica como ente fictício; mas a lei emana do Estado, que é uma ficção; e, se à criação da pessoa jurídica deve preceder a vontade da lei, fica sem explicação a personalidade do Estado, que sendo fictício dependeria da preexistência de algo que a reconhecesse.355

A teoria da vontade atribui personalidade jurídica à vontade, sendo esta aquela que emana dos sujeitos membros deste novo ente. A crítica quanto a esta teoria e a sua inaplicabilidade é no sentido de que se estaria atribuindo autonomia à vontade, o que não possui qualquer fundamento legal ou teórico. Assim, nada resolve356. Ademais, observando-se as construções e conclusões observadas no capítulo sobre a vontade, restaria contraditório afirma que a personalidade jurídica é conferida a um dos elementos essenciais do negócio jurídico.

A teoria da instituição, sem aplicabilidade no ordenamento jurídico vigente, estabelece que a personalidade jurídica pode ser atribuída às organizações, ou seja, às instituições que se destinem a atender demandas sociais. Segundo Caio Mário da Silva Pereira, esta teoria não oferece um critério justificativo, excluindo do seu conceito aquelas sociedades que não tenham fins sociais357.

A partir deste ponto, passam a serem apresentadas as teorias realistas acerca das pessoas jurídicas. O mesmo doutrinador supramencionado destaca que tanto a teoria organicista quanto a teoria da realidade técnica são realistas, pois ambas consideram a pessoa jurídica uma realidade, com órgãos e vontades próprias358. Este aspecto é o que distingue tais teorias daquelas

citadas.

A teoria orgânica é primeiro formulada em relação à técnica e corresponde a um estágio mais próximo do que atualmente se concebe quanto às pessoas jurídicas, surge em um período posterior ao “Século do Contrato” com o intuito de solucionar a questão da irresponsabilidade dos entes coletivos359. Para a teoria organicista, a pessoa jurídica seria um organismo real, com vontade própria.

Clóvis Beviláqua aponta Gierke e Endemann como os principais autores desta teoria, sendo que o primeiro, de modo mais extremado, chega a atribuir inteligência às pessoas jurídicas360. Wilges Ariana Bruscato se posiciona no sentido de que esta teoria seria a mais

355 PEREIRA, 2004, v. 1, p. 303-304. 356 BEVILÁQUA, 2001, p. 178. 357 PEREIRA, op. cit., p. 307. 358 Ibidem, p. 308.

359 LOPES, Giovana L. Peluso; SILVA, Denis Franco. O conceito de pessoa: em busca da abstração legal. In:

FIÚZA, César Augusto de Castro; SILVA, Rafael Petefii da; RODRIGUES JÚNIOR, Otávio. Direito civil. Florianópolis: CONPEDI, 2014, p. 31-52. Disponível em: <http://www.publicadireito.com.br/artigos/ ?cod=370666e2a8735a18>. Acesso em: 24 ago. 2014.

adequada ao direito societário, justamente pela construção teórica acerca da vontade própria das sociedades361.

Na sequência, surge a teoria da realidade objetiva, a qual admite que as pessoas jurídicas existam como seres dotados de uma vida própria. Esta é indicada como a teoria atualmente mais aceita pelos estudiosos e reconhecida pelos ordenamentos jurídicos362.

Caio Mário da Silva Pereira, neste sentido, critica aqueles que são contrários a tal teoria, demonstrando que a própria personalidade jurídica das pessoas naturais também é reconhecida apenas quando a ordem legal assim determina, exemplificando com o fato de os escravos terem a sua personalidade jurídica negada no passado. Assim, refutando a ideia de que apenas o homem pode ser sujeito de direito, o renomado autor inclui neste conceito as pessoas jurídicas, detentoras de patrimônio, personalidade e vontade próprias363.

As teorias realistas são aquelas que mais se aproximam do que é admitido pelos ordenamentos jurídicos e, portanto, são as que melhor poderiam explicar o instituto jurídico que é a pessoa jurídica. Contudo, é importante apresentar o entendimento de Hans Kelsen quanto ao instituto, bem como a teorias italianas nominalistas. Estas construções teóricas sugerem uma nova forma de encarar a pessoa jurídica.

Hans Kelsen apresenta a pessoa jurídica enquanto uma construção da ciência jurídica. Aquilo que o autor denomina por corporação seria, portanto, o instrumento de simplificação de uma situação complexa traduzida através da instituição pela ordem jurídica de direitos e deveres cujo conteúdo será a conduta dos indivíduos que fazem parte dos órgãos da pessoa jurídica364. A pessoa jurídica, nesta concepção, se afastaria das teorias realistas e seria uma construção simplificadora e auxiliar do Direito.

Sérgio Marcos Carvalho de Ávila Negri, ao propor um estudo acerca do signo da pessoa jurídica, verifica que as formulações de Hans Kelsen negariam todas as teorias realistas acima indicadas e sugeriria que a pessoa jurídica é um conceito auxiliar do Direito, um instrumento linguístico. Este entendimento se aproximaria daquele defendido por Tulio Ascarelli, que também encarava o instituto como uma expressão de determinado complexo de normas365.

361 BRUSCATO, 2005, p. 148. 362 Ibidem, p. 148.

363 PEREIRA, 2004, v. 1, p. 309-310.

364 KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. São Paulo: Martins Fontes, 1999, p. 133.

365 NEGRI, Sérgio Marcos Carvalho de Ávila. A (des)naturalização teórica da pessoa jurídica. In: LOPES,

Christian Sahb Batista; OLIVEIRA, José Sebastião de; BOSCO, Maria Goretti Dal. (Coord.). Direito civil

contemporâneo. Florianópolis: CONPEDI, 2015, p. 143-144. Disponível em:

<http://www.conpedi.org.br/publicacoes/66fsl345/852e718s/N77F8P63Qm4546a1.pdf>. Acesso em: 12 dez. 2016.

O movimento denominado nominalismo, que surge na Itália, retoma esse questionamento acerca do significado da pessoa jurídica. Sérgio Marcos Carvalho de Ávila Negri apresenta o estudo formulado por Floriano D’Alessandro que, sob a influência do pensamento de Hans Kelsen, sugere uma nova forma de se conceber a pessoa jurídica, no momento em que indica ser esta um símbolo, uma expressão linguística, que deveria ser estudada com base no seu uso, ou seja, na sua dinâmica e em relação com outros conceitos366.

Em seu estudo, o autor revela que o nominalismo italiano recorreu à teoria dos símbolos incompletos, no intuito de explicar o que seria a pessoa jurídica inserida em um ordenamento jurídico. Os símbolos incompletos seriam aqueles cuja análise não pode ser feita de forma isolada e não haveria como se checar a sua essência apartada de um determinado contexto. A análise dos símbolos incompletos dependeria, portanto, da sua interação com outros elementos linguísticos e é esta concepção que se sugere para as pessoas jurídicas367.

Sérgio Marcos Carvalho de Ávila Negri constata que as teorias nominalistas se aproximam daquelas reducionistas, de modo que chegariam a sugerir o abandono do conceito de pessoa jurídica, ao constatarem que este termo poderia ser substituído por diversos outros signos, sem que houvesse uma alteração no significado final da construção de proposições368.

O referido autor, mesmo reconhecendo a importância desta teoria e a sua contribuição para uma nova forma de se compreender a pessoa jurídica, demonstra que não há a necessidade de ser dispensada a referida terminologia. Pelo contrário, defende a sua importância na medida em que permite a simplificação de um complexo de relações jurídicas, o que seria demasiadamente trabalhoso se tivesse que ser estruturado utilizando-se cada pessoa natural que compõe a pessoa jurídica.

Sérgio Marcos Carvalho de Ávila Negri sugere, então, que seja compreendida a maior importância sintática do termo da pessoa jurídica, do que a semântica, ao destacar que a busca pela identificação do seu objeto é inócua. Isto porque, conforme apresentado, o instituto da pessoa jurídica representa um símbolo incompleto, que deve ser compreendido a partir da sua relação com outros signos, e não de forma isolada369.

A importância instrumental da pessoa jurídica já era verificada por Sylvio Marcondes Machado, ao destacar que se trata de instituto jurídico criado para agrupar interesses individuais. O autor leciona que as pessoas jurídicas seriam o meio para alcançar “os fins,

366 NEGRI, 2015, p. 145.

367 Ibidem, p. 146. 368 Ibidem, p. 149. 369 Ibidem, p. 152.

sempre humanos, que excedam a esfera individual, para abranger a coletividade de todo gênero”370, revelando que estes entes têm o importante papel de amalgamar interesses variados,

mas que buscam atingir objetivos convergentes, conforme fora apresentado quando se tratou dos negócios jurídicos plurilaterais.

Neste mesmo sentido, Fábio Konder Comparato e Calixto Salomão Filho elucidam que as pessoas jurídicas não seriam os meros suportes de tais direitos e deveres, posto que eles são parte da sua estrutura, como a árvore que não teria galhos, mas seria galhos e todos os demais elementos que a compõem. Os autores então concluem que pessoa “é o ponto de referência de um conjunto de normas jurídicas”371, o que reflete esta compreensão da pessoa jurídica

enquanto signo que simplifica a visualização desta rede de relações jurídicas construídas no seu entorno.

O objetivo de trazer esta discussão para dentro desta pesquisa é sugerir uma nova forma de encarar a pessoa jurídica, para que se possa tentar compreender qual a função da criação do referido signo dentro do ordenamento jurídico, ainda que seja um símbolo incompleto. É a partir deste entendimento acerca do fim do instituto que se poderá verificar o que seriam situações anômalas e que o descaracterizam, a exemplo do recurso à instituição das pessoas jurídicas para a simulação de outros negócios jurídicos, ideias estas que também serão desenvolvidas no tópico que abordará a crise da pessoa jurídica.