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2 O REGRAMENTO DA VONTADE E O TRATAMENTO DOS NEGÓCIOS

2.2 TEORIA DOS FATOS JURÍDICOS

2.2.4 Atos jurídicos lícitos

2.2.4.1. O regramento do negócio jurídico no Código Civil de 2002

Os negócios jurídicos estão inseridos no conceito de ato jurídico, sendo aqueles em que há emanação de vontade para a sua conformação e com poder de regular os efeitos jurídicos daquela categoria jurídica em que se pretende enquadrá-lo. Cumpre inicialmente apresentar o seu conceito e, em seguida, preenchê-lo com as intenções principiológicas acima expostas.

A concepção clássica do negócio jurídico tem inspiração no Estado Liberal, em que se concebia que a vontade seria a liberdade de escolha, de autorregramento. Além disso, sob influência da teoria formulada por Hans Kelsen, ainda neste período de ápice do individualismo, atingiu-se a compreensão de que os negócios jurídicos, a partir da autonomia da vontade, criaria normas jurídicas individuais122.

O negócio jurídico é o instrumento próprio que viabiliza a concretização da autodeterminação da vontade das partes, a qual advém da autonomia privada. Por ser fato jurídico, é apto a criar, modificar ou extinguir direitos, mas no caso específico dos negócios jurídicos, esta aptidão está diretamente relacionada à intenção do declarante da vontade, desde que esta esteja de acordo com a lei123.

121 MELLO, 2014, p. 132.

122 Ibidem, p. 140.

Francisco Amaral124 segue esta mesma linha de compreensão, ao buscar evidenciar o caráter privado e a legalidade dos negócios jurídicos. O referido autor apresenta o conceito de negócio jurídico como atrelado à declaração de uma vontade ou vontades privadas, as quais estão voltadas para a produção de determinados efeitos jurídicos, que vinculam obrigatoriamente as partes. Neste âmbito destaca que não basta o querer do agente quanto aos efeitos, mas o seu reconhecimento pelo direito.

Segundo Orlando Gomes125, será simples todo o negócio jurídico que necessita apenas da emanação da vontade para se constituir e ingressar no mundo jurídico, enquanto que será complexo todo o negócio jurídico que apresente em seu suporte fático outros elementos e requisitos, a exemplo da conjugação de duas vontades, ou da necessária concretização de outros atos.

Verifica-se, ao enfrentar as teorias mais recentes da vontade e dos fatos jurídicos, que já não se confere mais à vontade o poder de ser a única fonte do negócio jurídico, mas sem se negar que se trata de elemento essencial. Isto porque não há fato jurídico sem norma jurídica anterior que determine o seu suporte fático. Desse modo, a vontade não pode ser o próprio negócio jurídico126.

Marcos Bernardes de Mello127, então, propõe um conceito de negócio jurídico atual e útil ao direito, apresentando-o como sendo:

[...] o fato jurídico cujo elemento nuclear do suporte fáctico consiste em manifestação ou declaração consciente de vontade, em relação à qual o sistema jurídico faculta às pessoas, dentro de limites predeterminados e de amplitude vária, o poder de escolha de categoria jurídica e de estruturação do conteúdo eficacial das relações jurídicas respectivas, quanto ao seu surgimento, permanência e intensidade no mundo jurídico.

Ainda sobre uma concepção mais atualizada dos negócios jurídicos, não se pode deixar de considerar a constitucionalização do direito privado e a sua interferência neste fato jurídico. Segundo Marcos Jorge Catalán128, o artigo da Carta Magna de 1988 que representa um marco para a atividade privada negocial é o 170, ao conferir-lhe diretrizes sociais, sendo estas verdadeiras balizas à liberdade de iniciativa.

Compreende-se nesta pesquisa que esta teoria mais recente, além de estar condizente com a ordem legal, viabiliza a aplicação direta dos princípios constitucionais presentes e que

124 AMARAL, 2014, p. 409. 125 GOMES, O., 2016, p. 214. 126 MELLO, 2014, p. 142. 127 Ibidem, p. 155. 128 CATALAN, 2003/2004, p. 375.

incidem no Código Civil de 2002, bem como mantém a segurança jurídica das relações privadas.

Outro aspecto dos negócios jurídicos debatido na doutrina é a amplitude do seu conceito, de modo que os autores passaram a buscar uma finalidade em tal situação. Orlando Gomes129 destaca que esta construção teórica, de modo didático, permite agrupar diversos dogmas jurídicos que tenham elementos comuns entre si, o que justificaria a sua abstração.

Francisco Amaral130 segue o mesmo entendimento e reforça que “como figura abstrata que é, reúne os princípios comuns às várias espécies de manifestações de vontade com que as pessoas dispõem juridicamente de seus interesses”.

O Código Civil de 2002 é distinto daquele de 1916, pois traz de forma expressa regras referentes aos negócios jurídicos, cujas disposições gerais estão alocadas através de onze artigos no título I do capítulo destinado aos fatos jurídicos. O enfoque dado aos negócios jurídicos neste diploma legal é de tal forma voltado para a regulação da vontade que será também aplicável aos demais atos jurídicos que não se enquadrem no seu conceito131.

Francisco Amaral apresenta este mesmo entendimento ao destacar que, na acepção da Lei Civil de 2002, o negócio jurídico figura como uma categoria geral dos fatos jurídicos em que há emanação de vontade para produção de efeitos jurídicos132. Nesta compreensão, renova- se a utilidade em ser o negócio jurídico um conceito abstrato, abarcando diversas situações em que há emanação de vontade.

Conforme já elucidado quando se tratou dos princípios que regem os negócios jurídicos, sabe-se que os artigos 110, 112 e 113133, do Código Civil de 2002, estabelecem regras de interpretação e determinam que estes devem ser regidos de acordo com a boa-fé das partes. Reitera-se a importância da teoria da confiança, através da qual tem posição de destaque a intenção das partes nos negócios jurídicos celebrados, desde que esta possa ser extraída da declaração ou do conjunto de declarações de vontade.

Os demais dispositivos definem as disposições gerais dos negócios jurídicos. O artigo 104, da Lei Civil, determina os seus pressupostos de validade. Os subsequentes artigos, 105 a 111, apresentam regras que explicam e regulamentam os pressupostos de validade de forma

129 GOMES, O., 2016. p. 214. 130 AMARAL, 2014, p. 412.

131 “Art. 185. Aos atos jurídicos lícitos, que não sejam negócios jurídicos, aplicam-se, no que couber, as disposições

do Título anterior.” Cf. BRASIL, 2002.

132 AMARAL, op. cit., p. 410.

133 “Art. 110. A manifestação de vontade subsiste ainda que o seu autor haja feito a reserva mental de não querer

o que manifestou, salvo se dela o destinatário tinha conhecimento. [...] Art. 112. Nas declarações de vontade se atenderá mais à intenção nelas consubstanciada do que ao sentido literal da linguagem. Art. 113. Os negócios jurídicos devem ser interpretados conforme a boa-fé e os usos do lugar de sua celebração.” Cf. BRASIL, 2002.

mais específica, ao tratarem, por exemplo, da impossibilidade inicial do objeto ou da validade da declaração de vontade. Constata-se que há a intenção de perpetuação do negócio jurídico, e não a sua anulação ou mesmo verificação de inexistência por eventuais equívocos. Caso seja possível, opta-se pela manutenção do negócio jurídico.

As técnicas de interpretação do negócio jurídico, como já ressaltado, devem primar pela boa-fé e pelos usos locais. O princípio da boa-fé negocial está traduzido de forma expressa no referido artigo 113, do Código Civil, de modo a vincular o intérprete e as próprias partes na consecução do negócio jurídico celebrado.

Outras regras específicas referentes a cada tipo de negócio jurídico estarão elencadas em capítulos ou títulos específicos da referida Lei Civil, como é o caso do contrato social, instrumento pelo qual são constituídas pessoas jurídicas empresárias. Os requisitos mínimos para este negócio jurídico constitutivo de pessoas jurídicas empresárias estão elencadas no artigo 997, do Código Civil vigente, que será adiante exposto.