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Conceituação de Metáfora

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O uso da metáfora nesta pesquisa acompanha o trabalho do filósofo Paul Ricoeur.82 A questão central do estudo de Ricoeur está no problema hermenêutico da interpretação e do sentido. A partir dos anos 1970, motivado pela pesquisa acerca da polissemia do símbo- lo83 e da teoria narrativa84, Ricoeur percebeu a importância da metáfora para os estudos da filosofia e da teologia.

Gosto muito da ideia de que a filosofia se dirige a determinados problemas, a embaraços de pensamento muito delimitados. Assim, a metáfora é, antes de mais, uma figura de estilo; a narrativa é, em primeiro lugar, um gênero literário. Os meus livros tiveram sempre um caráter limitado; nunca abordo questões maciças do tipo ‘O que é a filosofia?’. Trato de problemas parti- culares: a questão da metáfora não é a da narrativa, embora observe que, de uma à outra, há a continuidade de inovação semântica.85

Metáfora e narrativa ocupam ligares privilegiados na obra de Ricoeur, de modo que a metáfora é situada na inovação semântica. Desenvolvida principalmente no capítulo seis do livro A Metáfora Viva86, Ricoeur retoma Aristóteles, no assunto da argumentação do dis- curso retórico e o discurso poético, para explicitar a inovação semântica da metáfora. O dis- curso retórico pretende o convencimento, enquanto o discurso poético pretende a verdade. Para Ricoeur, a força da metáfora reside na união do discurso retórico com o poético.87 Se-

gundo ele, nesta dinâmica, a metáfora acompanha o trabalho dos símbolos e os prolonga por conter um excedente de significação.88 Trata-se de um estágio criativo da linguagem que vai além do símbolo e no qual introduz-se um desvio que faz dizer algo novo.

82 Paul Ricoeur (1913-2005) foi um filósofo francês que trabalhou, sobretudo, com fenomenologia e hermenêuti- ca. Inserido na mesma tradição de Martin Heidegger e Hans-Georg Gadamer, Ricoeur explorou e ampliou o método fenomenológico ao trabalhar com os estudos da teoria narrativa, crítica textual, o sentido dos mitos, a exegese bíblica e a metáfora. Dentre os seus principais trabalhos destaque para Tempo e Narrativa e A Metá- fora Viva. Cf. MONGIN, Olivier. Paul Ricoeur. Paris: Éditions du Seuil, 1998, p. 13-16.

83 Cf. RICOEUR, Paul. A Simbólica do Mal. Lisboa: Edições 70, 2013. 84 Cf. RICOEUR, Paul. Tempo e Narrativa. São Paulo: Martins Fontes, 2010.

85RICOEUR, Paul. A Crítica e a Convicção: Conversas com François Azouvi e Mard de Launay. Lisboa: Edi-

ções 70, 2009. p. 132.

86 RICOEUR, Paul. A metáfora viva. São Paulo: Edições Loyola, 2005.

87 Cf. RICOEUR, Paul. A metáfora viva. São Paulo: Edições Loyola, 2005. p. 42-48.

A metáfora é um momento teórico decisivo que permite à linguística e aos estudos literários uma concentração capaz de enriquecer o trabalho dos símbolos e a compreensão do ser humano.

Melhor do que o símbolo, de fato, a metáfora é, como dissemos, uma enti- dade linguística cuja existência chama ao compromisso interpretativo de seus leitores, o intérprete carregado, ao invés de destacar um sentido que já está lá, embora não aparente, menor do que o explícito, como inventor, correndo o risco de trair.89

A entrada do conceito de metáfora é dupla. Há uma ambiguidade no próprio termo da metáfora, conforme observado em sua condição de convencimento e pretensão à verdade. Trata-se de um aspecto transgressivo ou transformativo implícito na dinâmica da metáfora. Segundo David Pellauer, um dos grandes especialistas de Ricoeur e tradutor de seus obras ao inglês, “este aspecto transgressivo ou transformativo da metáfora é o que a torna capaz de criar novo significado ao perturbar a ordem da lógica existente, ao mesmo t empo que o gera sob nova forma”90. Para a filosofia ricoeuriana, a hermenêutica tem no símbolo uma

reflexão autêntica de abordagem filosófica. A saber, símbolos são interpretações criadoras de sentidos e promovem reflexões que possibilitam o pensar de uma vida. O produto her- menêutico do símbolo na linguagem inaugura a metáfora. “O ser se dá ao homem mediante sequências simbólicas, de tal forma que toda cisão do ser, toda existência como relação ao ser, já é uma hermenêutica”.91 Pelo símbolo o ser humano é introduzido no estado nascente

da metáfora, que, por sua vez, introduz a inovação semântica da linguagem.92 A metáfora

revela sentidos profundos na intenção de transmitir a relação do ser humano com aquilo que o constitui. Em suma, a metáfora promove a inovação semântica que posteriormente possi- bilita a articulação filosófica e científica dos conceitos. A metáfora carrega uma inovação semântica que evidencia os diferentes modos do ser, de modo que o itinerário filosófico pressupõe a experiência simbólica e metafórica na compreensão do mundo dos conceitos.93

Deste modo, para além da experiência de palavras e de conceitos, a metáfora situa o ser em sentidos profundos de interpretação capazes de revelar aspectos ontológicos. Dito de outra

Lisboa: Edições 70, 2009. p. 45-69.

89 “Mieux que le symbole, en effet, la métaphore est, comme nous l’avons rappelé, une entité langagière dont l’existance appelle l’engagement interprétatif de son lecteur, l’interprète étant chargé, moins de surligner un sens déjà là, bien que peu apparent, moins de l'expliciter, que d'inventer, au risque de trahir”. VINCENT, Gilbert. La religion de Ricoeur. Les Éditions de l’Atelier/Éditions Ouvrières: Paris, 2008, p. 54.

90 PELLAUER, David. Compreender Ricoeur. Petrópolis: Vozes, 2009, p. 95.

91 JAPIASSU, Hilton. “Paul Ricoeur: o filósofo do sentido”, In: RICOEUR, Paul. Interpretação e ideologias. RJ: Francisco Alves, 1990, p. 3.

92 Cf. MONGIN, Olivier. Paul Ricoeur. Paris: Éditions du Seuil, 1998, p. 145. 93 Cf. RICOEUR, Paul. A Crítica e a Convicção, 2009, p. 223.

forma, o processo metafórico, original e a anterior à semiótica dos conceitos, é a relação do ser humano com aquilo que o constitui.94

Importante destacar, para esta dissertação, o aspecto ontológico no plano semântico da metáfora. A metáfora opera como uma espécie de manifestação do ser, a qual pretende a, conforme já notado, ao invés de uma simples relação de correspondência ou alegoria. “Não há outra maneira de fazer justiça à noção de verdade metafórica”, escreve Ricoeur, “do que incluir a incisão crítica do ‘não é’ (literal) na veemência ontológica do que ‘é’ (metafóri- co)”95. A filosofia deve compreender os limites do discurso conceitual para explorar um

novo nível da linguagem no discurso figurativo e ontológico da metáfora.96 Conforme Ke- vin Vanhoozer, outro especialista na teoria narrativa ricoeuriana, a metáfora é a forma mais original e primeira do ser humano se inserir no mundo.97 A fenomenologia hermenêutica que trabalha com a metáfora torna-se fundamental para a análise da manifestação do ser na linguagem. O aspecto ontológico da metáfora não esconde a diversidade de maneiras de falar do ser. Esta característica ambígua da metáfora é produtiva, pois diz respeito à própria condição do ser humano na atribuição referencial de sentidos.

Ricoeur é talentoso em fazer compatíveis ou mutuamente dependentes po- sições que eram aparentemente opostas. Este “trazer próximo” (meta- pherein=“trans-ferir”) é também a essência da metáfora, um “ver junto”, que associa domínios aparentemente distintos em sentidos os dispõem em uso criativo. (...) Ricoeur não poupa esforços para trazer o mundo da Bíblia “próximo” ao indivíduo do século vinte ao criar “aproximações” filosóficas das ideias teológicas. Ao fazer isso, Ricoeur espera ajudar aqueles que es- tão cegos da graça para “ver” novamente. É justo, então, que a forma favo- rita de linguagem do Ricoeur, a metáfora, deve caracterizar o espírito da hermenêutica filosófica de Ricoeur. A mediação de Ricoeur é metafórica.98

94 Cf. MONGIN, Olivier. Paul Ricoeur. Paris: Éditions du Seuil, 1998, p. 145.

95 RICOEUR, Paul. The Rule of Metaphor, apud PELLAUER, David. Compreender Ricoeur. Petrópolis: Vozes, 2009, p. 98.

96 RICOEUR, Paul. A metáfora viva. São Paulo: Edições Loyola, 2005. p. 465-469.

97 Cf. VANHOOZER, Kevin J. Biblical narrative in the philosophy of Paul Ricoeur: A study in hermeneutics and theology. Cambridge University Press: Cambridge, 1990. p. 8.

98 “Ricoeur is particularly gifted in making positions which at first blush seem mutually exclusive to appear compatible and even mutually dependent. This ‘bringing near’ (meta-pherein=‘trans-fer’) is also the es- sence of metaphor, a ‘seeing together’, which associates seemingly disparate realms of meaning and puts them to creative use. (...) Ricoeur ultimately strives to bring the world of the Bible "near" to the denizen of the twentieth century by creating philosophical ‘approximations’ of theological ideas. By so doing, Ric- oeur hopes to enable those who are blind to grace to ‘see’ again. It is only fitting, then, that Ricoeur’s fa- vorite form of language, the metaphor, should itself characterize the spirit of Ricoeur’s hermeneutic phi- losophy. Ricoeur’s mediation is metaphorical.” VANHOOZER, Kevin J. Biblical narrative in the philoso- phy of Paul Ricoeur: A study in hermeneutics and theology. Cambridge University Press: Cambridge, 1990. p. 5.

A metáfora trata-se, portanto, da raiz filosófica ricoeuriana, a essência metafórica do “ver junto”, que associa domínios aparentemente distintos no uso criativo e aponta para a possibilidade do ser. A metáfora, segundo a proposta ontológica de Ricoeur, opera, portan- to, no conflito de interpretações e variações de sentidos, cujo movimento encontra pontos distintos e coloca na linguagem a descrição que não cabe em conceitos, mitos ou símbolos. Para o processo metafórico a mediação nunca é total ou completa. A metáfora assume a in- completude do ser e tem seu efeito na esfera do que é possível. Em suma, em termos semân- ticos e ontológicos, a metáfora é a celebração da linguagem em si mesma. E é nesta acepção que se entende o conceito de metáfora nesta dissertação, concepção que será recorrentemen- te utilizada.

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