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Regimento Secular ou Reino dos Homens

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ÉTICA E POLÍTICA NA REFORMA

2.3 Dois Reinos ou Dois Regimentos

2.3.3 Regimento Secular ou Reino dos Homens

Após ser abordada a importância do regimento espiritual, também é importante des- tacar a função da autoridade secular: “a primeira tarefa é seguramente a manutenção da paz, ao mesmo tempo no plano interior (polícia) e no plano exterior (exército). Ao lado dessa tarefa, a autoridade secular deve velar pelo direito, que evidentemente condiciona as rela- ções sociais.”255 E também está dentro do escopo dele a preocupação com o todo da vida

social, seja na área econômica, ou mesmo cultural.

Realmente apesar de toda a dignidade que Lutero concede a este reino, ele sempre faz a ressalva que este só se faz necessário porque os seres humanos são maus, e são muitas as pessoas que não são verdadeiramente cristãs, não apenas no aspecto de se denominarem pertencentes ao cristianismo, mas que de fato vivem e expressam os valores do evangelho em suas vivências, uma vez que:

“Ao reino do mundo ou sob a lei pertencem todos os não-cristãos. Pois, visto que são poucos os crentes e somente a minoria age como cristãos, não resistindo ao mal, ou até não fazendo ela própria o mal, Deus criou para es- ses, ao lado do estado cristão e do reino de Deus, outro regimento (Regi-

ment) e os submeteu à espada, a fim de que, ainda que o queiram, não pos-

São Leopoldo; Porto Alegre: Sinodal; Concórdia. 1996. p. 71.

254 DUCHROW, Ulrich. Os Dois Reinos: Uso e abuso de um conceito teológico luterano. Tradução de Getúlio Bertelli. São Leopoldo: Sinodal, 1987. p. 11.

255 LIENHARD, Marc. Martim Lutero: tempo, vida, mensagem. Tradução Walter Altmann e Roberto H. Pich. São Leopoldo: Sinodal, 1998. p. 218.

sam praticar sua maldade e, caso a pratiquem, não possam fazer sem tre- mor e em paz e felicidade.”256

Esta é a definição de Reino do mundo, ou dos homens, para Lutero. Onde fica evi- denciado a posição do reformador que ele considera válido, e oriundo de Deus a punição, que é expressa pela palavra ‘espada’, que aparece recorrentemente em sua formulações so- bre a política e a ética. “O governo secular (...) se estende às coisas externas. Deve manter a paz, o direito e a vida em proveito do bem comum. Aqui domina a razão, que pode reconhe- cer os mandamentos de Deus e a justiça externa”257 Sendo que todo egoísmo humano, que

gera falta de escrúpulos deve ser controlado com o poder da espada, dos líderes do governo secular.

Em diversos escritos o teólogo alemão endereça para lideranças de seu país que, em geral, já tinha se associado aos princípios da Reforma Protestante. Na interpretação sobre o

Magnificat Dreher ratifica que o reformador espera “orientar, admoestar e alertar o duque e

a todos os governantes, pois Deus quer incutir nas autoridades temor a ele, para que não confiem em si próprios. (...) O poder só existe como serviço em favor das pessoas que estão confiadas ao que exerce poder.”258 Isto é, o governante deve entender que sua função é do-

tada de tanta dignidade quanto de um líder religioso, posto que ambos efetuam um propósito divino na terra. Nesta obra Lutero admoesta o príncipe João Frederico259 da importância de

sua função, pois dela “depende o bem estar de muita gente, quando ele, subtraído a si mes- mo, é governado pela graça de Deus (...) com isso Deus quer inculcar seu nos grandes se- nhores, para que aprendam que não podem propor-se senão o que Deus lhes inspira especi- almente.”260 Ou seja, se o governante busca ser guiado por atributos da bondade e justiça

divina, não só ele será beneficiado, mas uma grande quantidade pessoas será igualmente favorecida.

256 LUTERO, Martinho. Da Autoridade Secular, até que ponto se lhe deve obediência. In: LUTERO, Martinho. Obras Selecionadas. Volume 6: Ética: Fundamentações da Ética Política – Governo – Guerra dos Campone- ses – Guerra contra os Turcos – Paz social. São Leopoldo; Porto Alegre: Sinodal; Concórdia. 1996. p. 86. 257 JUNGHANS, Helmar. Temas da teologia de Lutero. Tradução Ilson Kayser, Ricardo W. Rieth, Luís M. San-

der e Leticia Schach. São Leopoldo: Sinodal, 2001. p. 50.

258 DREHER, Martin N.. Introdução – Fundamentações da Ética Política. In: LUTERO, Martinho. Obras Seleci- onadas. Volume 6: Ética: Fundamentações da Ética Política – Governo – Guerra dos Camponeses – Guerra contra os Turcos – Paz social. São Leopoldo; Porto Alegre: Sinodal; Concórdia. 1996. p. 17.

259 Príncipe João Frederico I da Saxônia (1503-1554), duque da Saxônia, Landgrave da Turíngia e Margrave de Meissen. Destacou-se como um dos líderes da Liga da Esmalcalda, aliança defensiva de príncipes protestan- tes do Sacro Império Romano Germânico criada em 1531.

260 LUTERO, Martinho. O Magnificat. In: LUTERO, Martinho. Obras Selecionadas. Volume 6: Ética: Funda- mentações da Ética Política – Governo – Guerra dos Camponeses – Guerra contra os Turcos – Paz social. São Leopoldo; Porto Alegre: Sinodal; Concórdia. 1996. p. 21.

E o teólogo do século 16 continua em sua explanação sobre o Magnificat, mostrando como detalhes desse texto, devem ser usado pelos príncipes para norteá-los a um melhor e mais justo governo. “Por isso não diz: ‘eu enalteço a Deus’, mas ‘minha alma’, como se quisesse dizer: minha vida com todas as minhas faculdades se move no amor de Deus, em louvor e grande alegria, de modo que, deixando de ser dona de mim mesma.”261 Lutero faz

uma comparação entre a expressão dita por Maria a como deve ser a vida e o pensamento executado pelos príncipes, eles devem ser humildes e buscar sabedoria, luz e direção em Deus para que saibam guiar com equidade e justiça seus respectivos territórios.

Dentro desta mesma perspectiva, ele ressalta que uma das principais características que um líder do regimento secular deve ter é a humildade, já que o reformador diz: “traduzi a palavra humilitas com ‘nulidade’ ou ser ‘insignificante’. Portanto, Maria quer dizer o se- guinte: Deus contemplou a mim, pobre, desprezada, e insignificante moça. (...) Laçou, po- rém, seu olhar sobre mim por pura bondade.”262 Maria é, mais uma vez, exemplo para os

príncipes pois ela é uma mulher que tem consciência de sua própria pequeneza, posto que é Deus quem opera tudo, por meio e devido sua bondade e graça para com os seres humanos. Este deve ser o espírito que os líderes e príncipes devem ter frente a si próprios, de que exe- cutam e lideram não porque são merecedores das mais altas honras, mas porque são agraci- ados por Deus para por meio de seus governos exaltarem ao Criador.

Desta maneira, o poder secular deve proteger os habitantes sob seu governo contra perigos, é por esta causa que ele “carrega a espada: para impor temor aos que não se sujei- tam a este ensinamento divino e deixam os demais em paz e sossego. Nisto também não procura seu próprio proveito, mas o proveito do próximo e a honra de Deus.”263 Enfim,

marcando o caráter que esta interpretação do Cântico de Maria tem em auxiliar o príncipe João Frederico na condução de seu governo, Lutero diz no final desta obra qual foi o objeti- vo de escrevê-lo acerca dessa temática: “para que vossa alteza principesca tenha um exem- plo para este sermão e crie uma consoladora confiança na graça de Deus, a fim de que per-

261 LUTERO, Martinho. O Magnificat. In: LUTERO, Martinho. Obras Selecionadas. Volume 6: Ética: Funda- mentações da Ética Política – Governo – Guerra dos Camponeses – Guerra contra os Turcos – Paz social. São Leopoldo; Porto Alegre: Sinodal; Concórdia. 1996. p. 26.

262 LUTERO, Martinho. O Magnificat. In: LUTERO, Martinho. Obras Selecionadas. Volume 6: Ética: Funda- mentações da Ética Política – Governo – Guerra dos Camponeses – Guerra contra os Turcos – Paz social. São Leopoldo; Porto Alegre: Sinodal; Concórdia. 1996. p. 37.

263 LUTERO, Martinho. O Magnificat. In: LUTERO, Martinho. Obras Selecionadas. Volume 6: Ética: Funda- mentações da Ética Política – Governo – Guerra dos Camponeses – Guerra contra os Turcos – Paz social. São Leopoldo; Porto Alegre: Sinodal; Concórdia. 1996. p. 59.

maneçam as duas coisas: o temor e a sua misericórdia (...) que seja encomendada a Deus para um bom governo.”264

A argumentação do reformador, entretanto, a favor do direito que os governantes do poder secular têm em usar a força, não fica restrita apenas a este comentário sobre o texto mariano. Ele se encontra em várias outras obras, sendo que o dito no Da Autoridade Secular merece especial destaque, pois ele fundamenta que as autoridades têm “o direito e a espada secular para que ninguém duvide que ela existe no mundo por vontade de Deus. As pal avras que as fundamental são Romanos 13,1-2: ‘toda alma esteja submissa ao poder e à autorida- de; pois não há poder que não seja de Deus’.”265 Este texto paulino da epístola de Romanos

é um dos mais recorrentemente utilizados pelo teólogo alemão para sustentar a necessidade e o íntegro uso que a ‘espada’ secular pode ter.

Neste mesmo escrito reafirma que o líder secular, não deve se considerar acima do bem e do mal, mas, por outro lado, deve se perceber dependente e constantemente buscar orientação divina sobre como deve conduzir sua função, “um príncipe também deveria por- tar-se cristãmente em relação a Deus, isto é, deve submeter-se a ele em total confiança e pedir-lhe sabedoria para bem governar, como o fez Salomão.”266 E evoca o clássico exem-

plo bíblico do rei Salomão para embasar sua argumentação.

Lutero mantém também, em grande medida, a ideia medieval de cristandade. O que ele discorda é do fato de se identificar esta realidade com alguma instituição na história, isso porque aquelas pessoas “que vivem a verdadeira fé, daqueles que, crendo nas mesmas ver- dades, encontram-se unidos (...) por laços íntimos e secretos que tecem, de coração a cora- ção, de espírito a espírito, uma comunhão profunda dentro das alegrias espirituais.” 267 Con-

sequentemente, a igreja invisível, que se identificaria com o Reino de Deus, diferencia-se em grande medida da Igreja visível, que pode ser identificada com o papa. Em outras pala- vras, é a comunhão entre os santos que tece esta concepção de igreja. Devido a esta e outras

264 LUTERO, Martinho. O Magnificat. In: LUTERO, Martinho. Obras Selecionadas. Volume 6: Ética: Funda- mentações da Ética Política – Governo – Guerra dos Camponeses – Guerra contra os Turcos – Paz social. São Leopoldo; Porto Alegre: Sinodal; Concórdia. 1996. p. 77-78.

265 LUTERO, Martinho. Da Autoridade Secular, até que ponto se lhe deve obediência. In: LUTERO, Martinho. Obras Selecionadas. Volume 6: Ética: Fundamentações da Ética Política – Governo – Guerra dos Campone- ses – Guerra contra os Turcos – Paz social. São Leopoldo; Porto Alegre: Sinodal; Concórdia. 1996. p. 82 266 LUTERO, Martinho. Da Autoridade Secular, até que ponto se lhe deve obediência. In: LUTERO, Martinho.

Obras Selecionadas. Volume 6: Ética: Fundamentações da Ética Política – Governo – Guerra dos Campone- ses – Guerra contra os Turcos – Paz social. São Leopoldo; Porto Alegre: Sinodal; Concórdia. 1996. p. 112. 267 FEBVRE, Lucien. Martinho Lutero, um destino. Tradução de Dorothée de Bruchard. São Paulo: Três Estre-

elaborações, que Lutero combate com veemência a posição corrente em seu período de que era necessária uma cega submissão ao papado. Isso porque nenhuma igreja pode ser consi- derada absoluta e infalível.268

À vista disso, é necessário fazer a ressalva que para o reformador alemão, não era problemática a relação entre igreja e Estado, como aconteceu após o advento do Iluminis- mo:

“Lutero nunca abandona o mundo político à autoadministração autônoma; em vez disso, ele constantemente se esforça contra a autoglorificação dos príncipes e o mau uso do governo secular. Ele adverte fortemente dizendo que as consciências dos políticos devem estar em conformidade com a von- tade de Deus. A emancipação dos governos políticos de qualquer preocu- pação moral religiosa não tem a sua fonte na Martinho Lutero, mas no Re- nascimento.” 269

Pode-se dizer que o teólogo nunca pretendeu criar uma autonomia entre igreja e Es- tado, pois como já foi dito anteriormente, ele se insere dentro da lógica de pensamento ainda medieval de cristandade. O que o autor propõe é que os Dois Reinos deveriam atuar de for- ma a se complementar, um ajudando ao outro. Esta é a visão do teólogo luterano contempo- râneo Walter Altmann, que escreveu um livro intitulado Lutero e Libertação no qual ele busca conciliar as ideias de Lutero com a possibilidade de transformação social defendida pela teologia latino-americana. À vista disso, é construída a ideia de que os escritos lutera- nos que remetem a doutrina dos Dois Reinos não remetem, necessariamente, a alienação. Pelo contrário, eles podem remeter a práticas libertadoras, caso sejam lidos de forma atenta, cito: “cabia à autoridade política efetuar reformas políticas, econômicas e sociais que afe- tassem também a igreja. E competia a esta confrontar as autoridades políticas com a vontade de Deus. Pois os assim chamados ‘dois reinos’ se distinguem em atribuição e meios, mas se cobrem em espaço.”270

268 Cf. FEBVRE, Lucien. Martinho Lutero, um destino. Tradução de Dorothée de Bruchard. São Paulo: Três Estrelas. 2012. p. 186.

269 “Luther never abandons the political world to autonomous self-administration; rather, he constantly strug- gles against the self-glorification of the princes and their misuse of the secular government. He clearly admonishes the consciences of politicians to conform to the will of God. The emancipation of political governments from any moral concern does not have its source in Martin L uther but in the Renaissance.” ALTHAUS, Paul. The Ethics of Martin Luther. Translated by Robert C. Schultz. St. Louis; Philadelphia: Concordia; Fortress, 1972. p. 82.

270 ALTMANN, Walter. Lutero e Libertação: Releitura de Lutero em perspectiva latino-americana. São Leopol- do: Editora Sinodal; São Paulo: Editora Ática. 1994. p. 161.

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