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Concepção, planejamento e avaliação do trabalho na PMSP

8. DISCUSSÃO

8.1. Concepção, planejamento e avaliação do trabalho na PMSP

Para a ergonomia, é diante da variabilidade de condições e situações de trabalho, na atividade real, que os trabalhadores se mobilizam e usam o seu saber e diversos processos psíquicos para garantir que o trabalho aconteça. Nesse contexto, lançam mão de uma série representações mentais, de estratégias operatórias e de suas competências (Vidal, 1995; Abrahão et al., 2009).

Na construção de estratégias operatórias, segundo a ergonomia, estão envolvidos o uso de mecanismos cognitivos e de competências para responder às exigências da tarefa e aos limites pessoais do trabalhador na resolução de problemas (Montmollin, 199078, apud Abrahão et al., 2009; Abrahão et al., 2009). Essa competência para realizar as ações de trabalho, em cada momento e situação imposta, depende da potencialidade da pessoa, ou seja, dos seus conhecimentos, habilidades e experiência (Abrahão et al., 2009).

Com os profissionais atuantes nas VST, na PMSP, isso não vem sendo reconhecido ou considerado. Faltam, nessa instituição, mecanismos e critérios claros de avaliação que reflitam de fato a complexidade do trabalho de VST e os obstáculos encontrados para realizá-lo. O que existe é a cobrança de produtividade diante da meta pactuada pelo município de investigar 100% dos acidentes de trabalho graves, fatais e em menores de 18 anos (São Paulo, Cidade, 2009d), mas sem que haja

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suporte institucional ou qualquer forma de investimento nos trabalhadores e nos próprios serviços de Saúde do Trabalhador.

O número insuficiente de autoridades sanitárias para atender à demanda de cada região tem levado a um acúmulo de casos de acidente de trabalho a serem investigados. A forma desordenada como vem sendo acolhida essa demanda compromete a qualidade e capacidade efetiva das ações de VST. A escolha entre investigar apenas o acidente de trabalho ou toda a empresa não deveria pesar sobre os profissionais de VST e suas chefias imediatas. Falta, contudo, uma proposta clara da instituição que considere os aspectos envolvidos nessa escolha estratégica e que norteie as ações dos serviços de VST. Os entrevistados se veem pressionados pela volumosa demanda e pelas metas a serem cumpridas, a despeito das condições concretas para realizá-las.

Lancman et al. (2007b) afirmam que, apesar da produtividade esperada no setor público não ser comparável a do setor privado, a lógica dos modelos organizacionais das empresas privadas vem sendo aplicada às instituições públicas, manifestando-se no enxugamento das equipes e no aumento da demanda, sem que seja considerada a capacidade dos serviços.

Assim, consideramos que é preciso criar indicadores capazes de avaliar o impacto das ações de VST e realizar análises periódicas dos resultados e dos próprios indicadores utilizados. Precisam ser construídas metodologias de análise, de divulgação dos resultados e de ajustes periódicos de forma a promover ações que sejam eficazes e que possam ser assim percebidas pelos profissionais da VST no seu dia a dia.

Sem avaliações sistemáticas sobre o impacto das ações em VST, tanto na transformação das situações de trabalho, quanto na saúde dos trabalhadores, resta aos profissionais atuantes nessa área a incerteza quanto ao valor das atividades que desempenham, quanto ao valor de seu trabalho.

Além disso, temos que considerar as próprias características do trabalho na área de serviços, onde a relação entre o prestador de serviço (no caso as autoridades sanitárias) e o usuário (no caso, os trabalhadores e os representantes das empresas) é bastante complexa, sempre demandando certa negociação entre os envolvidos. Nesse

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tipo de atividade, é difícil antecipar os possíveis problemas, conflitos, incidentes e intercorrências que possam ocorrer durante o desenvolvimento das ações (Salerno, 2001; Zarifian, 2001; Sznelwar et al., 2004; Gonçalvez, 2009).

Para que seu trabalho se estabeleça, é exigido das autoridades sanitárias um investimento pessoal, tanto emocional quanto cognitivo, no enfrentamento da imensa variabilidade de situações e relações interpessoais com os quais convive no seu dia a dia.

A forma como se dá a interlocução com os responsáveis da empresa e com os trabalhadores é estratégica e determinante dos resultados obtidos nas VST, havendo aí um caráter mediador e intermediador de conflitos, que é inerente à atividade de autoridade sanitária. Em cada empresa, são variáveis as dinâmicas relacionais encontradas e as possibilidades ou não de contato e diálogo com os trabalhadores.

Entre os membros das equipes que realizam as vigilâncias há uma série de trocas de informações, opiniões e experiência invisíveis. A intersecção entre as competências de cada membro das equipes de VST permite coordenar ações conjuntas, por meio de elementos que favorecem a comunicação e a transmissão de informações entre eles, bem como a antecipação de ações e disfunções que possam surgir. A ergonomia denomina esse processo de “cognição compartilhada” (Abrahão et al., 2009).

A variabilidade de tempo, de espaço, de atores envolvidos e os aspectos intersubjetivos desse processo, de suma importância para que a vigilância aconteça, não estão previstos no trabalho prescrito das autoridades sanitárias nem considerados na concepção, planejamento e avaliação de suas ações. O caráter essencial das manobras e estratégias por eles utilizadas para garantir a realização de seu trabalho é desconsiderado.

O trabalho de VST é também repleto de variabilidades relacionadas às empresas investigadas, como: os diferentes processos produtivos, o ramo de atividade, o porte das empresas, sua inserção no mercado, as características da região da cidade onde ela está instalada, entre outras.

As próprias características dos profissionais de saúde que compõe as equipes de VST e de suas chefias imediatas podem ser consideradas variabilidades que

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interferem no trabalho de VST e nas condutas adotadas em cada nova situação que se apresenta.

No trabalho de VST, é complexo conciliar os objetivos de preservar o trabalhador da exposição a penalidades a ele impostas pelo empregador, em função da ação de vigilância e, simultaneamente, obter dele uma resposta positiva em direção à preservação de sua saúde (Santorum, 2006). Aparece, aqui, o conflito entre a prática realizada e os referenciais conceituais que movem os profissionais de VST para as suas ações, os quais têm como princípio a participação dos trabalhadores das empresas em todo o processo de intervenção. O constrangimento é maior quando as autoridades sanitárias são designadas para a investigação de um acidente de trabalho, em especial nas empresas de menor porte e nas que empregam trabalhadores com idade inferior a 18 anos.

Esse tipo de situação está além da esfera da Saúde do Trabalhador, envolve questões sociais, políticas e econômicas que fogem ao controle dos profissionais que realizam as VST, interferem diretamente sobre seu trabalho, são fontes de sofrimento e implicam em grande esforço na estruturação de estratégias operativas que viabilizem o seu trabalho, sem expor os trabalhadores das empresas.

Nas situações reais de trabalho dos entrevistados, tudo isso, somado à conjuntura sociopolítica e econômica, faz com que tenham que se defrontar com situações e adversidades que lhes solicitam flexibilidade nas posturas e condutas adotadas, capacidade para lidar com conflitos, criação de estratégias operatórias e habilidade adaptativa.

Para a ergonomia, o objetivo não é suprimir as variabilidades, mas sim, compreender como os trabalhadores enfrentam a diversidade e as variações das situações de trabalho e como esse processo interfere em sua saúde e no resultado de suas ações (Abrahão et al., 2009). Na PMSP essa compreensão fica truncada pela ausência de planejamento e por avaliações que não consideram a variabilidade dos indivíduos, das condições e dos processos de trabalho nas VST.

Na avaliação do trabalho, a psicodinâmica do trabalho propõe que sejam considerados aspectos menos visíveis, como: “mecanismos de cooperação, visibilidade e reconhecimento, sofrimento psíquico, mobilização da inteligência,

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vontade e motivação que se desenvolvem a partir das situações de trabalho” (Lancman et al., 2007, p; 84). Assim, torna-se possível compreender aspectos psíquicos e subjetivos, que são mobilizados no sujeito a partir das ações e relações estabelecidas no trabalho, da organização do mesmo e das suas ações propriamente ditas.

Sem a mobilização das inteligências dos trabalhadores, individual e coletivamente, o trabalho não funciona, e essa mobilização tem sido desconsiderada no contexto da PMSP (Dejours, 1999). A cooperação entre os trabalhadores exige relações de confiança entre os indivíduos e é essencial para que o trabalho aconteça. Para o autor, sem ela, poderíamos pensar em situações equivalentes às de uma “operação padrão”, ou seja, sem a cooperação, a atividade de trabalho não acontece. Ela é uma forma de “contribuição específica e insubstituível dos trabalhadores na concepção, nos ajustes e na gestão da organização do trabalho” (Dejours, 2004b, p.70).

Nas entrevistas, a cooperação entre os pares aparece como um aspecto positivo e até gratificante do trabalho. Para Dejours (2004b, p.67), a cooperação se traduz na “vontade das pessoas de trabalharem juntas e de superarem coletivamente as contradições que surgem da própria natureza ou da essência da organização do trabalho”.

Em contrapartida a essa contribuição, dada por meio da colaboração entre os pares, os profissionais naturalmente esperam certa retribuição. Para Dejours (1999b79, p. 29, apud Lancman e Uchida, 2003, p.84) “a forma específica da retribuição é o reconhecimento no sentido duplo do termo: reconhecimento no sentido de admitir essa contribuição da pessoa e reconhecimento no sentido de

gratidão” (itálicos do autor).

Os processos de avaliação são essenciais para que se concretizem os processos de reconhecimento fundamentais no mundo do trabalho. Sem clareza sobre o valor do trabalho realizado e do investimento pessoal e coletivo nele contido, não há reconhecimento.

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