1 SENTIDOS DE AUTORIA: novos questionamentos e novas perspectivas
1.1 Novas leituras, novos sentidos
1.1.3 Concepções de autoria
Tendo apresentado como as pesquisas que identificamos trabalham com o conceito de autoria
no viés de objeto, sujeito e referenciais teóricos, foi possível criar uma categorização de
acordo com as concepções de autoria mobilizadas. Há de se considerar que um trabalho
expressa mais de uma característica sobre a autoria, de acordo com os diferentes diálogos
teóricos que estabelecem. Ou seja, esses sentidos não estão isolados e fixos, mas são híbridos
e interligados de diferentes formas.
Assim, ordenei as noções de autoria evidenciadas nos trabalhos da seguinte forma: a)
princípio de organização textual, b) lugar de produção de sentidos, c) intervenção editorial, d)
conceito mutável, e) criador de efeitos de originalidade, f) princípio de responsabilidade e
legitimidade e g) constituição a partir da experiência do indivíduo.
a) A autoria é uma função no discurso que tem como princípio a organização textual
A concepção do autor como princípio de agrupamento do discurso vem de uma linha teórica
foucaultiana (FOUCALT, 2012a) que se tornou a base da maioria dos trabalhos aqui
analisados. Essa perspectiva aborda diversos aspectos sobre a autoria que precisam ser mais
detalhados, mas podemos partir como princípio geral de que o autor, no discurso, exerce uma
função que é de selecionar, reunir, organizar e dar um sentido de unidade aos textos diversos e
dispersos que compõem o discurso. Mais adiante essa questão será retomada.
Esse ato de dar um sentido de unidade aos textos caracteriza uma situação relacional entre os
discursos produzidos anteriormente e o autor, que se torna responsável por articular as
posições heterogêneas. Essa interferência do autor não é entendida de forma neutra já que esse
sujeito é constituído discursivamente, trazendo em sua fala diferentes influências. Isso faz
com que os sentidos que produz e direciona possuam um efeito de autenticidade,
responsabilidade e originalidade.
Alguns dos trabalhos analisados apresentam a característica da ausência do autor nos
discursos, conversando com a teoria de Barthes sobre a “morte” do autor. Os que seguem a
perspectiva foucaultiana, consideram isso como uma estratégia para ressaltar o discurso, mas
isso não quer dizer que o autor deixe de existir. Basta buscar uma responsabilização pelo
enunciado emitido que a “função-autor” é evidenciada.
Stock (2011) e Stock e Janzen (2013), apesar de não trabalharem em nenhum momento com a
perspectiva teórica de Foucault, também expressam esse sentido de autoria como uma função
que busca articular diversos discursos caracterizados como “os outros”, representados pelas
políticas públicas como o PNLD e outros saberes da cultura escolar. A função do autor se
caracteriza por se aproximar e compreender esses universos distintos e realizar, a partir disso,
deslocamentos culturais como um sujeito que possui um olhar de fora, dando suporte ao livro
didático. Essa perspectiva teórica é desenvolvida pelas teorias bakhtinianas, o que permite
estabelecer um diálogo com Foucault, porém indo além, ao considerar as marcas de
subjetividade estabelecidas pelo autor.
O trabalho de Bornatto (2014), por outro lado, apesar de abordar o princípio de autoria como
uma organização textual, este é reduzido somente ao ato de selecionar textos de acordo com a
conjuntura histórica em que está inserido, neste caso, o cenário de censura imposto no período
da intervenção militar no Brasil a partir de 1964, atribuindo pouca autonomia para esse
sujeito-autor.
b) A autoria é um lugar em que se produz sentidos
A relação da autoria com os sentidos também é uma posição bastante presente nos trabalhos
analisados. Quando um sujeito realiza suas escolhas, seleciona textos, ideias e as unifica,
dando a esse discurso um só formato, ele está produzindo sentidos.
Esses sentidos só são expressos, de acordo com a linha teórica de Pêuchex, quando há um ato
de interpretação realizado pelo sujeito24. O fato de selecionar e unir textos para atribuí-los um
24
Identificamos, em nossos estudos, que nessa questão de como o sujeito-autor lida com os discursos há uma
diferença significativa entre as teorizações de Pêcheux e Foucault. Enquanto aquele defende que o sujeito
sentido em meio à sua heterogeneidade, significa que o sujeito está se apropriando desses
discursos anteriores e os ressignificando para fins próprios. Por exemplo, ao produzir um livro
didático, um autor mobiliza discursos de diversos meios: as produções da historiografia, as
prescrições curriculares e as demandas sociais que não são construídos propriamente para
serem utilizados no meio educacional. No momento da escrita do texto didático, esses
diversos saberes não são unidos como uma “colcha de retalhos”, retratando o autor como um
artesão. Eles são lidos e compreendidos para que se possam estabelecer relações entre eles e
expressá-los de forma lógica, ou seja, o autor precisa interpretar esses diversos tipos de
conhecimento para que possa dar um sentido próprio para o ensino. Esse processo pode
ocorrer de forma inconsciente ou não.
Foi possível verificar duas formas de estabelecer a relação entre o autor e os sentidos nesses
trabalhos: uma em que o autor é um direcionador de sentidos e outra em que é formador de
sentidos. Compreendemos essas posições como resultado de posicionamentos teóricos
distintos já que a primeira, defendida por Ferraro (2011) e Chartier (2014), coloca o autor
como um portador capaz de coletar os diversos sentidos postos no universo discursivo e que,
ao selecionar um ou outro, ele monta um “quebra-cabeças” organizando algo que estava
disperso e tornando visível seu sentido quando organizados da forma correta. Dessa forma,
parece que os discursos podem ser naturalmente correspondidos, como se houvesse um
encaixe pronto. Basta juntá-los de forma correta para tornar os sentidos visíveis. E quem
consegue fazer isso é o autor.
A segunda forma de compreender a relação entre autoria e os sentidos é considerando o autor
como produtor deles. Neste caso, o sujeito é entendido como criador ao mobilizar esses
sentidos a partir da subjetividade que o constitui, provocando novos entendimentos que não
estavam naturalmente dispostos. Esse ato de produção de novos sentidos é chamado de
deslizamentos, para os que seguem a linha teórica de Pêcheux como Pavan (2016) e Mittman
(2016). Essa ideia se contrapõe à anterior, entendendo a possibilidade de criação ou efeitos de
originalidade25.
interpreta discursos e, dessa forma, cria significados (PAVAN, 2016; PASSINI, 2016; HENGE, 2016;
FERNANDES, 2016), Foucault compreende que a função do autor é de agrupar e modificar os discursos a partir
daquilo que é dito (FOUCAULT, 2001, 2012a).
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Em nossos estudos teóricos seguindo a teoria de Foucault, constatamos que o filósofo não utiliza o significante
“produção” ou “criação”, mas considera que o escritor, no jogo das diferenças discursivas, modifica os sentidos
(FOUCAULT, 2012a, p. 27), o que, ao nosso entender, se aproxima com a concepção de produção de sentidos
com o qual operamos. Assim, quando utilizamos nesta tese os significantes “produção” ou “invenção”, estamos
nos referindo ao sentido de modificação de discursos de Foucault.
Mas é importante salientar, como demonstram Andrade (2003) e Passini (2016), que esses
sentidos são meios de direcionar o leitor, mas não constituem um sentido final porque não há
como controlar as formas de leituras do público sobre o que foi transmitido. O lugar do leitor
é um novo lugar de produção de sentidos, se tornando um novo autor, “matando” o autor do
sentido originalmente criado – o escritor, como defende Barthes.
c) A autoria é marcada pela intervenção editorial
A intervenção das editoras é um fator bastante presente quando se trata de produção de livros
didáticos. Alguns trabalhos dão maior destaque para essa relação entre autor e editor, mas
todos que citam a presença das editoras reconhecem sua marca nesse processo de produção. A
relação entre autor e editor se apresenta de duas diferentes formas como foi exposto
anteriormente: uma considera que a autoria acontece junto às editoras e outra, que é o que
segue a linha teórica de Chartier, coloca a autoria como um ato que acontece na editoração,
ganhando maior poder no processo criativo.
Essa relação da intervenção das editoras na produção de livros didáticos tem se intensificado
nos últimos tempos. As condições sócio-históricas têm exigido mais do trabalho dos autores
através do estabelecimento de regras e prazos, proporcionando uma maior inserção das
editoras no processo a fim de acelerar a produção do livro e melhorar sua qualidade
cumprindo as prescrições das políticas públicas. Teixeira (2012) destaca que essa
interferência das editoras tem ganhado cada vez mais o lugar que pertencia ao autor-escritor,
tomando decisões para atender demandas mercadológicas, públicas e privadas, além de
instituir parâmetros pedagógicos.
d) A autoria é um conceito mutável
Um fator que torna esta investigação mais complexa é que o conceito de autor não é
entendido de forma única, espontânea e fixa. Não há a possibilidade de definirmos com
fronteiras o que está dentro e o que está fora do lugar de autoria. Isso porque a autoria possui
sentidos ambíguos, o que não nos permite estabelecer até onde vai o poder do autor e onde
começa o poder das editoras ou dos leitores sobre a obra.
Apesar de Soares (2007) propor uma investigação sobre a existência de uma provável
identidade autoral26, a pesquisadora chega à conclusão de que o autor é socialmente
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