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2 O LUGAR DE AUTORIA

2.1 O conceito de lugar

2.1.3 O lugar no currículo: as comunidades disciplinares e epistêmicas

No campo do currículo, compreendo que é possível dialogar com duas perspectivas teóricas

que conversam entre si e nos ajudam a entender o lugar de autoria na produção de políticas

curriculares. Primeiramente, busco na teorização de Goodson (1997) sobre as comunidades

disciplinares estabelecer uma relação de até que ponto existem disputas pela produção do

conhecimento histórico escolar expresso nos livros didáticos. Em um segundo momento,

utilizo o conceito de comunidades epistêmicas de Ball (2001) para destacar o reconhecimento

da autoridade dos sujeitos presentes no lugar de autoria.

Ivor Goodson é um pesquisador da área do currículo reconhecido pelos seus estudos na

reforma educacional, a história social das disciplinas e problematizando as propostas de

reorganização curricular enfatizando a ideia do currículo como narração. Para a ocasião desta

pesquisa, enfatizamos o conceito de comunidades disciplinares (GOODSON, 1997), descrito

como um movimento ou grupos sociais que assumem estudos de determinados conhecimentos

e disputam regimes de verdade dentro de uma determinada área disciplinar.

Essas comunidades são representadas por indivíduos, grupos, segmentos ou facções, ou seja,

podem se manifestar de forma individual ou coletiva, posicionados de forma contingencial e

assimétrica, mas dependentes de fontes externas para obter recursos e apoio ideológico. Nesta

comunidade, valores e interesses comuns sobre qualidade de ensino são compartilhados a fim

de estabilizar determinados sentidos por meio de textos oficiais (GOODSON, 1997).

Porém, esses grupos não são homogêneos por fazerem parte de um movimento social em que

acontecem disputas pela produção de sentidos sobre currículo, recursos, recrutamento, ensino

e docência e por valores de “verdade” dos conhecimentos disciplinarizados (FERREIRA,

2015; GABRIEL; FERREIRA, 2012). Assim, quando as perspectivas não são partilhadas

entre os diferentes sujeitos que compõem esse lugar, existem embates e acordos que nunca se

fecham, mas são constantemente reiterados (GOODSON, 1997, p. 44). Assim, os currículos

não são fixos, mas artefatos sociais e históricos sujeitos a mudanças e flutuações.

Essa comunidade disciplinar tem o poder, legitimado publicamente, de definir a natureza da

educação por meio de escolhas apropriadas e associadas a retóricas plausíveis de justificação,

limitando o campo educativo. Ao mesmo tempo em que regras são estabelecidas neste lugar,

existem critérios externos de natureza institucional e organizacional que devem ser

respeitados como autoridades que decidem o que é inoportuno e ilegítimo (ibidem, pp. 27-28).

Não entendemos que o lugar de autoria se constitui como uma comunidade disciplinar,

porque não se trata de um poder de definição tão ampla que é a disciplina e também porque

entendo que os sujeitos que ocupam o lugar de autoria não são tão heterogêneos em

concepções ideológicas. Mas ainda assim, existem disputas e legitimação de “verdades” no

conhecimento histórico escolar expressos nos livros didáticos, envolvendo os conceitos de

conteúdos, metodologias e perspectivas de ensino-aprendizagem. Na produção de livros

didáticos, acredito, acontecem mais processos de conciliação e mobilização das relações de

poder e dos interesses sociais do que embates por definição de currículo. Isso acontece porque

a função autor (FOUCAULT, 2001) implica muito mais em uma unidade de discursos do que

processos de mudança. Mas isso não impede que aconteçam choques de interesses entre as

políticas públicas, interesses econômicos, demandas sociais no lugar de autoria.

Araújo (2016) estabelece uma relação entre as teorias de Goodson com as teorias de ciclo de

políticas e comunidade epistêmica de Stephen Ball:

“Entendo que tal perspectiva [de Goodson] pode dialogar com a abordagem do ciclo

de políticas (MAINARDES, 2006), que pensa a produção das mesmas nos diferentes

contextos. Nela, as políticas de currículo são percebidas como produção cultural,

não sendo possível desprezar o papel dos sujeitos no embate sobre “concepções de

conhecimento, formas de ver, entender e construir o mundo” (LOPES, 2005, p. 51).

Ao incorporar a produção dos sujeitos e dos grupos sociais nas análises sobre as

políticas curriculares, ampliamos os espaços de produção e circulação de propostas

nas quais estão presentes processos de negociação e conflitos. Afinal, Ball, Bowe &

Gold (1992) consideram que os textos e os discursos curriculares são produzidos em

contextos distintos, configurados por distintas arenas de ação onde circulam diversos

discursos sobre concepções e finalidades das políticas curriculares. Goodson (1999,

p. 111), embora não opere com o ciclo de políticas, nos ajuda a entender esse

cenário de disputas, negociações e conflitos ao destacar que, na perspectiva

construcionista social, não devemos ser ingênuos quando pensamos nas articulações

entre a macroestrutura e a ação dos sujeitos.” (ARAÚJO, 2016, p. 47)

Em outra perspectiva curricular, Stephen Ball utiliza o conceito de ciclo de políticas (2001) a

fim de compreender a formulação e implementação de políticas em diferentes contextos. Com

o foco sobre a política educacional, o autor busca mostrar sua natureza complexa e os

processos micropolíticos e ações de profissionais que se articulam de forma macro e micro

(MAINARDES, 2006). Esse tipo de abordagem nos permite compreender que a produção

curricular está relacionada com as relações de poder e conhecimento de forma contínua e em

contextos.

Esse processo contínuo de formação de políticas educacionais, se desenvolvem, segundo Ball,

em três contextos no âmbito público e privado: o contexto de influência, o contexto de

produção e o contexto da prática. Esses contextos são inter-relacionados, não possuindo uma

dimensão temporal, sequencial ou linear, se apresentando em arenas (lugares de discussão e

disputas) e grupos de interesses que desejam influenciar as políticas (ibidem).

O contexto de influência representa o lugar em que as políticas públicas são formuladas e

discursos construídos, onde acontecem disputas por definições de finalidades da educação. O

contexto de produção se refere ao momento que essas influências, de natureza mais

ideológica, ganham expressividade através de textos e orientações de poder mais central e

determinado, porém, articulados com a linguagem do interesse público mais geral. Uma forma

que podemos interpretar neste contexto da pesquisa, são as políticas implementadas pelo

PNLD através de seus editais que expressam concepções sobre o ensino que são anteriores a

ele. Por fim, o contexto da prática é entendido como o momento em que essas definições

curriculares são interpretadas e materializadas de formas diferentes e variadas. Os atores

envolvidos possuem controle sobre o processo, não sendo considerados como somente

implementadores das políticas do contexto de produção (ALVES, 2011; ARAÚJO, 2016).

Assim, podemos considerar os livros didáticos como definições curriculares do contexto de

prática em que os sujeitos envolvidos – autores e equipe editorial - interpretam e recriam a

partir das políticas curriculares, podendo provocar mudanças e transformações (e não

reproduções) da política original de acordo com o interesse de um público mais geral – alunos

e professores. A prática do texto, enquanto livro didático, é resultado de disputas e acordos

estabelecidos em uma arena - o lugar de autoria.

Dentro dessa discussão do ciclo de políticas, Ball tece o conceito de comunidade epistêmica

para analisar a ação de sujeitos e grupos sociais de reconhecida autoridade na produção de

políticas educacionais (ARAÚJO, 2016, p. 36), o que pode ser relacionado com o conceito de

comunidade disciplinar de Goodson por representarem funções semelhantes de produção.

Porém, entendo que o conceito de comunidade defendido por Goodson parece contemplar

somente o contexto de produção, enquanto a ideia que Ball quer expressar por comunidades

epistêmicas refere-se a sujeitos que ocupam diferentes lugares de poder nos contextos da

produção de políticas, organizando e propagando os discursos curriculares.

A potencialidade do uso desse referencial teórico se refere na percepção de que esses

contextos não se realizam de formas isoladas e lineares. Como um ciclo, há a ideia de

continuidade e reflexão sobre a produção e um provável retorno ao contexto de influência.

Dessa forma, o livro didático pode ser lido, interpretado e recriado quando chega às mãos do

professor e do aluno porque os mesmos possuem a liberdade reinventar uma vez que suas

experiências, valores e interesses são diversos.

Esse tipo de raciocínio teórico, proporcionado por Ball, nos permite compreender que o livro

didático faz parte das políticas curriculares como resultado de inter-relações de discursos de

variados sujeitos e grupos sociais oriundos de diversos lugares e contextos, demonstrando o

quão complexo é a produção de um objeto de valor político que irá circular nas nossas

escolas.