2 O LUGAR DE AUTORIA
2.1 O conceito de lugar
2.1.1 O lugar na operação historiográfica
Michel de Certeau é uma das principais referências utilizadas em pesquisas acadêmicas para
abordar o conceito de lugar. Em “A Escrita da História”, o historiador descreve a escrita da
História da seguinte forma:
“Encarar a história como uma operação será tentar, de maneira necessariamente
limitada, compreendê-la como a relação entre um lugar (um recrutamento, um meio,
uma profissão, etc.), procedimentos de análise (uma disciplina) e a construção de um
texto (uma literatura).” (CERTEAU, 1982, p. 66)
Esse olhar para o lugar de quem fala demonstra uma particularidade da produção
historiográfica que é organizada por leis silenciosas na forma de um texto. É assim que se
organiza a escrita historiográfica, em função de uma instituição que obedece a regras próprias,
mas que possui uma especificidade de seu contexto de produção (CERTEAU, 1982, p. 56).
Já a partir dessa primeira descrição, podemos fazer algumas observações sobre o lugar de
autoria que aqui procuramos construir. O que Certeau explica como procedimentos da escrita
da História pode ser interpretado, no caso dos livros didáticos, como um produto final de
determinada operação historiográfica escolar (PENNA, 2013) realizadas em um lugar –
representado pelo autor, pelos profissionais do meio editorial e outros sujeitos -, uma prática
regida por regras que disciplinam a produção (legislações, PNLD, regras editoriais, demandas
sociais e econômicas) e por uma escrita que é o próprio texto didático. Assim, esse lugar de
autoria não é composto por um autor isolado.
Em “A invenção do cotidiano”, Certeau (1998) estabelece uma diferença entre os conceitos de
“lugar” e “espaço” que nos é interessante para estabelecer a diferença entre lugar de autoria
como um lugar político de produção do conhecimento histórico escolar e o espaço que é
significado pelos autores entrevistados. Certeau significa esses conceitos de forma distinta das
explicações utilizadas pelo campo da antropologia no qual o espaço configura limites físicos
de análise e o lugar como uma construção social e cultural. O conceito de lugar é definido da
seguinte forma:
“Um lugar e a ordem (seja qual for) segundo a qual se distribuem elementos nas
relações de coexistência. Aí se acha portanto excluída a possiblidade, para duas
coisas, de ocuparem o mesmo lugar. Aí impera a lei do “próprio”: os elementos
considerados se acham uns ao lado dos outros, cada um situado num lugar “próprio”
e distinto que define. Um lugar é portanto uma configuração instantânea de
posições. Implica uma indicação de estabilidade.” (CERTEAU, 1998, p. 201, grifo
nosso)
Já o conceito de “espaço” é definido assim:
“Existe espaço sempre que se tomam em conta vetores de direção, quantidades de
velocidade e a variável tempo. O espaço é um cruzamento de móveis. É de certo
modo animado pelo conjunto dos movimentos que aí se desdobram. Espaço é o
efeito produzido pelas operações que o orientam, o circunstanciam, o temporalizam
e o levam a funcionar em unidade polivalente de programas conflituais ou de
proximidades contratuais. O espaço estaria para o lugar como a palavra quando
falada, isto é, quando é percebida na ambiguidade de uma efetuação, mudada em um
termo que depende de múltiplas convenções, colocada como o ato de um presente
(ou de um tempo), e modificado pelas transformações devidas a proximidades
sucessivas. Diversamente do lugar, não tem portanto nem a univocidade nem a
estabilidade de um „próprio‟.” (CERTEAU, 1998, p. 202, grifo do autor)
Defendemos manter o significante “lugar” na noção que estamos construindo por entender
que o lugar de autoria é uma representação política fixa, onde atuam determinados sujeitos de
forma desarticulada que exercem uma função no contexto das políticas curriculares e das
práticas escolares. Já o conceito de “espaço” nos é rico na construção da argumentação que
será desenvolvida no capítulo 4 para compreender como o que é narrado pelos autores
entrevistados não constitui propriamente o lugar de autoria, mas são práticas de
ressignificação desses sujeitos que mobilizam aspectos desse lócus e lhes atribuem sentidos.
Ou seja, só conseguimos entender a existência do lugar de autoria quando eles se tornam
espaços praticados pelos sujeitos que os ocupam.
Quando Certeau se atém a falar de uma “operação historiográfica”, ele está preocupado em
dizer que a História é uma produção e como tal, há um “lugar” em que essa prática é
realizada. Este lugar de produção é complexo e constituído de saberes que produzem um
discurso composto por regras de funcionamento do contexto de produção. Trata-se de um
espaço em que relações com um exterior são geradas, um ambiente constituído de poder e
querer próprios. Neste lugar de autoria se estabelecem estratégias de escrita caracterizadas
por um tempo e espaço histórico.
“Chamo de estratégia o cálculo (ou a manipulação) das relações de forças que se
torna possível a partir do momento em que um sujeito de querer e poder (...) pode
ser isolado. A estratégia postula um lugar suscetível de ser circunscrito como algo
próprio e ser a base de onde se podem gerir as relações com uma exterioridade de
alvos ou ameaças (...). Como na administração de empresas, toda racionalização
“estratégica” procura em primeiro lugar distinguir de um „ambiente‟ um „próprio‟,
isto é, o lugar do poder e do querer próprios.” (CERTEAU, 1998, p. 99)
Podemos compreender que o contexto de produção do lugar de autoria pode se estabelecer
entre “estratégias e práticas” desempenhadas pelos sujeitos diante das forças sociais que os
dominam. Por estratégia, entende-se como “ações que, graças ao lugar de poder, elaboram
lugares teóricos capazes de articular um conjunto de lugares físicos onde as forças se
distribuem” (CERTEAU, 1998, p. 102). Aproprio-me dessa definição para dizer que o lugar
de autoria se apresenta como um lugar de autoridade e poder capaz de articular e regular as
práticas escolares por meio dos livros didáticos.
Por outro lado, o conceito de táticas, é entendido como ações calculadas dentro do contexto de
jogos de forças ao qual sujeitos são submetidos (ibidem, p. 102). Essa definição também é
importante para dizer que o lugar de autoria, apesar de exercer um poder discursivo sobre as
práticas escolares, está submisso a uma estrutura já imposta por forças políticas, sociais e
econômicas. Dentro desse contexto, os sujeitos que ocupam esse lugar buscam estabelecer
formas de resistência aproveitando as ferramentas que lhes são dadas. Esta discussão sobre
“estratégias e táticas” será retomada no capítulo 4 para compreender como se dão as formas
de resistência dos sujeitos que estão no lugar de autoria.
Quando os saberes assumem essa função disciplinadora na prática produtiva, Certeau (1984,
p. 70) reconhece essa força como uma instituição. Esta não é apenas o que permite uma
estabilidade social porque seu funcionamento não se constitui pela relação causa-efeito. A
instituição se constitui no mesmo regime em que está inserida a sociedade de forma não
hierárquica. Compreendo neste quesito que há similaridades com o conceito de episteme35do
pensamento foucaultiano.
Neste lugar descrito por Certeau, existe o papel desempenhado por um autor na produção do
discurso, mas este autor não pode ser reduzido a um indivíduo ou um sujeito universal porque
existe a presença da instituição nesse lugar de produção. Assim, o conceito de autor é
entendido como um sujeito plural que “sustenta” o discurso por se apropriar devidamente da
linguagem como um locutor (CERTEAU, 1984, p. 71).
“Ao „nós‟ do autor corresponde aquele dos verdadeiros leitores. O público não é o
verdadeiro destinatário do livro de história, mesmo que seja o seu suporte financeiro
e moral. Como o aluno de outrora falava à classe tendo por detrás dele seu mestre,
uma obra é menos cotada por seus compradores do que por seus „pares‟ e seus
„colegas‟, que a apreciam segundo critérios científicos diferentes daqueles do
público e decisivos para o autor, desde que ele pretenda fazer uma obra
historiográfica. Existem as leis do meio. Elas circunscrevem possibilidades cujo
conteúdo varia, mas cujas imposições permanecem as mesmas. Elas organizam uma
„polícia‟ do trabalho. Não „recebido‟ pelo grupo, o livro cairá na categoria de
„vulgarização‟ que, considerada com maior ou menor simpatia, não poderia definir
um estudo como „historiográfico‟. Ser-lhe-á necessário o ser „acreditado‟ para
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Podemos considerar a episteme como um conjunto básico de regras que governam a produção de discursos
numa determinada época, estabelecendo condições, princípios, enunciados e regras que permitem compreender o
jogo das coações e das limitações que se impõe ao discurso (VEIGA-NETO, 2007; FISCHER, 2008).
aceder à enunciação historiográfica. „O estatuto dos indivíduos que tem – e somente
eles – o direito regulamentar ou tradicional, juridicamente definido ou
espontaneamente aceito, de proferir um discurso semelhante depende de uma
„agregação‟ que classifica o "eu" do escritor no „nós‟ de um trabalho coletivo, ou
que habilita um locutor a falar o discurso historiográfico. Este discurso – e o grupo
que o produz – faz o historiador, mesmo que a ideologia atomista de uma profissão
„liberal‟ mantenha a ficção do sujeito autor e deixe acreditar que a pesquisa
individual constrói a história.” (CERTEAU, 1984, p. 72, grifo nosso)
É interessante destacar que Certeau chama de “leis do meio” como um sistema – e não um
sujeito - de possibilidades de variação de um discurso, mas, ainda assim, dentro das regras
institucionais a que está submetido. Mais uma vez acreditamos que haja uma aproximação
com as ideias de Foucault que, ao criticar o sujeito moderno, constituído pela relação de saber
e poder, aponta para uma possível subjetivação em meio a esse sistema discursivo ao qual está
inserido. Ou seja, no meio dessas leis, é possível constituir-se de formas específicas.
Lembrando que essa subjetivação, para Foucault, não se trata de uma independência ou pensar
fora do que as relações de poder o permitem.
Assim, como alerta Certeau, é preciso que o discurso produzido, no caso interpreto como o
livro didático, seja legitimado pelos pares. Um livro didático não é aceito pela comunidade
escolar caso fuja às regras de funcionamento desse tipo específico de discurso. E nesse
contexto, as regras são majoritariamente definidas pelo PNLD, como aprofundaremos no
capítulo seguinte.
O livro didático, como discurso, é produto de um lugar. Este lugar, para Certeau, representa o
contexto de produção do discurso que torna possível que algumas coisas sejam ditas enquanto
interdita outras (CERTEAU, 1984, p. 77). Mas esses critérios de permissões e proibições só
são estabelecidos porque é configurado por um sistema social36. Neste lugar, ocorrem
práticas. Como o objeto de pesquisa de Certeau é a História como um discurso, há um foco
sobre a produção realizada pelos historiadores ao transformar o que é cultural em história.
Mas podemos estabelecer relações entre as práticas dos historiadores com as práticas dos
autores de livros didáticos que também fazem história ao produzir o conhecimento histórico
escolar. Certeau (ibidem, p. 81) define que uma das primeiras ações desse lugar de produção
do discurso é separar, reunir, transformar certos objetos em “documentos”. Novamente
encontramos um diálogo com as considerações de Foucault, neste caso com a função autor de
agrupar enunciados, como foi colocado no capítulo 1. Mas considero que Certeau se
diferencia do que o filósofo francês se propõe por considerar que, aos historiadores realizarem
esse trabalho, eles produzem documentos pelo simples fato de mudar os objetos, que chama
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