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Concepções sobre a relação entre saúde psíquica e trabalho e sobre o nexo entre trabalho e adoecimento

5. Saúde psíquica dos profissionais de saúde

5.5. Concepções sobre a relação entre saúde psíquica e trabalho e sobre o nexo entre trabalho e adoecimento

Uma evolução na feição legal da assistência à saúde do trabalhador está ressaltada no Protocolo de Procedimentos Médico-Periciais nº 5.1, que reconhece que o nexo causal de um agravo ocorre entre a doença e o trabalho. Logo, busca-se um ente nosológico. O mesmo protocolo recomenda ao médico perito buscar, além do exame clínico (físico e mental), e exames complementares, “os conhecimentos e as práticas de outros profissionais, sejam ou não da área de saúde” (Art. 2º da Resolução CFM 1488/98). Desta forma, abre-se o espaço não apenas para a constituição do nexo epidemiológico como também da intervenção de perspectivas como a psicossociologia do trabalho, permitindo a compreensão da relação do trabalhador com o seu contexto de trabalho e as repercussões disto no seu bem-estar.

Sobre esta temática, Jacques (2007) afirma que a investigação do nexo causal, algumas vezes, tem diminuído a responsabilização do trabalhador pelo seu próprio agravo, embora o modelo de investigação ainda se paute na patologia. Esta autora lembra com muita propriedade que a investigação do nexo deve se constituir numa demanda para a psicologia. Ademais, sendo o trabalho uma categoria central da vida humana, e o psicólogo um cientista do humano, não é possível entender o ser sem compreender seu trabalho, e tampouco ajudá-lo a reencontrar o bem-estar sem isto. É necessário se compreender o trabalho como uma atividade humana para que as relações entre este e a saúde psíquica se estabeleçam.

Algumas disciplinas se propõem a auxiliar nesta compreensão. Uma delas é a Ergonomia. Esta reporta ao trabalho ser uma atividade humana individual ou coletiva, finalística e organizada, realizada num contexto específico (Teiger, 1992; Tersac, 1995; Torres, 2001). A atividade humana, por sua vez, é formada por componentes físico, cognitivo e psíquico (Wisner, 1987; Abrahão, 1993). O componente físico diz respeito ao uso que o trabalhador faz do seu corpo para desempenhar suas atividades no trabalho. O componente

cognitivo diz respeito às funções perceptivas e mentais empregadas para que a atividade seja realizada. Isto envolve o processamento das informações recebidas, a tomada de decisão e a capacidade de resolução de problemas. (Abrahão, 1993). O componente psíquico “é relativo aos elementos afetivos, relacionais, psicológicos, psicossociológicos e sociológicos da atividade, variáveis comportamentais, motivacionais e psicopatológicas” (Torres, 2001, p.XXII).

Guérin, Laville, Daniellou, Durrafourg, e Kerguellen (1991) propõem um modelo integrador para que se compreenda a relação entre o trabalho realizado, o contexto de trabalho, os resultados do trabalho em termos de produção e de saúde do trabalhador. No modelo, a carga de trabalho, advinda da atividade, impacta sobre a saúde do trabalhador. Se a atividade é o próprio trabalho, no qual há um gênero, é este que vai explicar as condutas socialmente assumidas diante das questões que envolvem a saúde do trabalhador, tanto do ponto de vista destes quanto de quem tem a função de cuidar de sua saúde. Quando falamos de condutas socialmente assumidas tomamos como definição que as organizações são contextos sociais e que os trabalhadores, mesmo quando pensam estar atuando individualmente, fazem isto num dado contexto o que pode resultar em suporte social. A Figura 3 apresenta o modelo proposto por Guérin et al. (1991).

Fonte: Adaptado de Guérin et al (1991).

Figura 3 - Modelo integrador de saúde e trabalho

Discutindo o trabalho Bendassoli (2011) diz que “em um determinado grupo social, a representação de um objeto corresponde ao conjunto de informações, opiniões e de crenças a ele relacionadas.” (p. 79) O autor explica que essas informações não são construídas

aleatoriamente. São decorrentes das experiências pessoais e das relações interpessoais, passam a constituir a identidade do sujeito e ajudam a explicar a realidade. Podemos então compreender que as representações do trabalho para um indivíduo se constroem na relação deste com a coletividade. Esta coletividade lhe proporciona suporte social. Isto se assemelha ao conceito de gênero (Bakhtin, 2003; Clot, 2006) reportado como uma história coletiva de como trabalhadores realizam uma atividade. Neste entendimento do fazer coletivo o trabalhador encontra o suporte necessário para sua atividade individual.

Lima (2007, p. 101) afirma que “com a degenerescência do gênero, deixa de existir um coletivo para amparar o sujeito... O sujeito tende, então, a ficar isolado, impossibilitado de mobilizar o recurso genérico e sem o suporte do coletivo”. Este isolamento pode resultar em repercussões em sua saúde psíquica se assumimos que saúde é bem-estar e que este depende de bem-estar afetivo, competência pessoal, autonomia, aspiração e funcionamento integrado, como já discutido anteriormente.

Outro autor contribui para a compreensão do trabalho em sua relação com a saúde psíquica é Vasquez (1977). De acordo com o autor “toda ação verdadeiramente humana requer consciência de uma finalidade” (p. 187). Para o autor, a prática humana tem uma finalidade que se apoia no social e que implica em modalidades de atuação que retornam ao meio social e o modifica. Esta finalidade é que torna a categoria ontológica trabalho, ação teleológica, em que há uma negação consciente de um estado atual, almejando uma condição futura como propôs Marx (2008/1890). E que vai diferenciar a práxis da atividade posto é reflexo da interioridade do indivíduo.

Castro (2009) critica os autores como Leontiev (1978) por se limitar a análise da atividade, e Codo, Sampaio e Hitomi (1992) por não incorporarem o conceito de práxis ao analisar a relação entre saúde mental e trabalho. De acordo com Castro (2009), incorporar o conceito de práxis com suas consequências pode resultar “... numa nova orientação de homem e do objeto psicológico para superar as lacunas referidas no campo da saúde mental e trabalho” (p. 191). Para conhecer a práxis o método deve dar conta de dialogar com a teoria e não apenas ser uma aplicação desta e que os atores sociais devem estar implicados na elucidação de como sua saúde psíquica pode ser afetada pelo trabalho, considerando-se as condições em que este é realizado, as relações que se estabelecem e a organização do processo de trabalho. E á medida em que isto for feito, os próprios trabalhadores modificarão suas concepções sobre o trabalho e sua saúde psíquica.

Da discussão empreendida até aqui, compreende-se que os conceitos de práxis e de atividade implicam aceitar que o trabalho é uma construção coletiva e mantém relação

dialética com a saúde do trabalhador. No entanto, quando se adota o materialismo histórico como ponto de partida epistemológico e uma visão de mundo existencialista, o conceito de práxis é o que melhor se adéqua à compreensão dos atos do trabalhador, entendimento este suportado em abordagem teórico-metodológica advinda da psicossociologia do trabalho.

De acordo com Azevedo, Braga Neto & Sá (2002) “psicossociologia é uma vertente da Psicologia Social, que enfoca os grupos, organizações e comunidades em situações cotidianas, utilizando para tal a metodologia da pesquisação.” (p. 240). Esta abordagem pauta-se na interdisciplinaridade. Também possibilita a articulação de vários níveis de análise contemplando em cada um deles a participação dos atores sociais. Entre as vantagens da abordagem está a consideração do caráter sócio-histórico em que os fenômenos ocorrem. Isto resulta numa reflexão dialética da teoria e da prática psicossociológica. Desta forma é possível articular a aplicação do conhecimento gerado tanto na promoção, quanto na prevenção de agravos ou na assistência à saúde. A abordagem também permite a compreensão adequada do nexo entre saúde e trabalho.

Diante das questões que envolvem a saúde psíquica do trabalhador, em que há dificuldades objetivas em evidenciar-se o nexo diante de um agravo, os conhecimentos gerados pela psicossociologia permitem, por exemplo, o estabelecimento do nexo epidemiológico, como é o caso da síndrome de bournout.

Azevedo, Braga Neto e Sá (2002) evidenciam a necessidade de se compreender:

... o conflito entre o desejo de cada um dos indivíduos de ser reconhecido em sua originalidade e especificidade, de fazer-se aceito em sua diferença e, por outro lado, de ser igualmente reconhecido como um dos membros do grupo e da organização, portanto semelhante aos seus pares, formando um corpo social e não um aglomerado de indivíduos. (p. 241).

Isto permite entender os papéis assumidos por profissionais de saúde, que se refletem no modo como encaram suas próprias vidas. Socialmente, as profissões de saúde representam a luta incansável do homem sobre a morte e o adoecimento - logo, representam a vida - e, se nos reportamos às definições modernas de saúde, os lugares onde são exercidas essas profissões, como os hospitais, são locais onde se busca o reajustamento dos indivíduos ao seu meio social. Os profissionais que neles trabalham são vistos como abnegados, dedicados, devotados, que encontram gratificação em curar e aliviar o sofrimento alheio (Elias &

Navarro, 2006; Nogueira-Martins, 2003). Para darem conta destas tarefas, os profissionais de saúde em ambiente hospitalar muitas vezes negam a própria enfermidade.

É sabido por quem atua nos departamentos de Recursos Humanos e em outras funções de gestão em hospitais, que há um mascaramento dos quadros clínicos quando o cliente é o profissional de saúde, e que isto ocorre em especial, quando há um acometimento da saúde psíquica. Não são incomuns os atestados dados por colegas apresentando um C.I.D. diferente da patologia real (e geralmente referindo-se a um quadro físico específico, como uma virose) para não comprometer o papel do indivíduo doente perante o seu grupo de trabalho. Também não é incomum a troca de plantões e escalas de trabalho de maneira que o doente não seja percebido como tal. Tais estratégias parecem ser formas adotadas pelo coletivo de trabalho para proteger o indivíduo. Mas ao mesmo tempo a coletividade e o papel da instituição na sociedade são protegidos.

Parece haver nos profissionais de saúde uma necessidade de ocultar sua doença, sobretudo quando se trata de uma alteração psíquica. No contato com o contexto de pesquisa, durante a vida profissional da pesquisadora e antecedendo os estudos desta tese, observou-se que há um encobrimento natural das patologias, fruto da tentativa de manutenção do papel social do indivíduo, que não se permite colocar à parte do processo produtivo, que é o lugar do doente na sociedade capitalista.

Isto é reforçado por um sentimento de corpo dos profissionais de saúde, que se protegem mutuamente. Um dos sintomas pode ser o pequeno número de atestados e licenças médicas que chegam ao DAS diante do que se observa nos hospitais. Como resultado, doentes no papel de profissionais atendem outros doentes aumentando potencialmente a ocorrência de erros graves e de acidentes de trabalho.

Reconhecer que existe doença no grupo cuidador (dos profissionais de saúde) é reconhecer a falibilidade do papel de produtor de saúde que tem um hospital dentro do contexto socioeconômico e social. Não reconhecer é assumir ser produtor de doença justamente em quem, por papel social, deveria estar cuidando de doentes. Isto passa diretamente pela concepção de gênero. A negação é uma escolha existencial, mas é também uma escolha do gênero. Logo, a mudança deste quadro só é possível com a reflexão dos diversos atores sociais envolvidos. Porém para que haja reflexão e posterior mudança é necessário elucidar aquilo que não está claro no que um modelo de avaliação da saúde psíquica contribuirá.