• Nenhum resultado encontrado

2.1 ESTADO DA ARTE

2.2.2 Concepções sobre o ensino da língua escrita nos documentos

O Brasil não dispõe de um currículo nacional. O que se tem, são diretrizes que norteiam a prática pedagógica, por meio de conteúdos básicos, que precisam ser conhecidos de todos os que têm acesso ao sistema de ensino. A diversidade regional e cultural que permeia a vida dos sujeitos, também deve ser respeitada, conforme prevê a LDB (Lei nº 9394/1996). Ao se reconhecer que a EI é parte integrante da educação básica, passou a ser impossível não pensar nela enquanto nível de ensino que não mereça ser planejado. Ao

delinear as diretrizes do currículo da EI é preciso prevê a necessidade de atender a pluralidade e diversidade de um país de tamanho continental como o nosso, sem deixar de lado o conhecimento que deve ser comum a todos e em qualquer parte:

Os currículos da educação infantil, do ensino fundamental e do ensino médio devem ter base nacional comum, a ser complementada, em cada sistema de ensino e em cada estabelecimento escolar, por uma parte diversificada, exigida pelas características regionais e locais da sociedade, da cultura, da economia e dos educandos. (BRASIL, 1996, Art. 26)

Três documentos que pensam o currículo da EI foram elaborados ao longo dos últimos dezoito anos (1999-2017), sendo um deles apenas referências: Referenciais Curriculares Nacionais para a Educação Infantil (RCNEI, BRASIL/MEC 1998) e portanto, não obrigatório. Os outros dois documentos, Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Infantil (DCNEI, BRASIL/MEC 2010) e Base Nacional Comum Curricular (BNCC, BRASIL/MEC 2017) sim, possuem caráter normativo, com margem para a flexibilidade, em respeito à pluralidade cultural. Mesmo não sendo obrigatório, o RCNEI tem seu valor histórico e antecedeu quase a mesma polêmica da BNCC. Ambos revelaram a controvérsia entre perspectivas teóricas e metodológicas diferentes, que são reflexo da dicotomia teoria- prática, o ensino explícito e a aprendizagem espontânea para a EI.

O RCNEI nasceu de um contexto de discordância entre o que se vinha construindo na COEDI/MEC através de Ângela Barreto e a versão final do documento (CERISARA, 2002 p. 335), além do aligeiramento3 com que o documento foi implementado, antes mesmo inclusive, das DCNEIs. O documento foi considerado pelos seus críticos uma forma de aproximar a EI do que é o EF (CERISARA, 1999; KUHLMAN JR, 1999) por considerarem que a sua organização é escolarizante.

Já nos posicionamos contrariamente na introdução deste trabalho, em relação à visão de EI como um campo anti escolar, porque esse olhar a minimiza no plano político. Esta visão se deve a aversão ao termo currículo, quando se está falando de EI. Morais e Nascimento (2018, p. 5) reforçaram a importância da qualidade das experiências vivenciadas na EI, incluindo as experiências com a língua escrita, corroborando com Campos (et al 2011), que apresentou a qualidade estrutural e de ensino como fatores decisivos para redução do fracasso na alfabetização.

3

De modo semelhante ao RCNEI a BNCC foi construída de modo pouco democrático, com discussão sem muita variedade de interlocutores após o golpe que destituiu da presidência da república Dilma Roussef (MORAIS; NASCIMENTO 2018). Isso resultou em três diferentes versões do documento, entre os anos de 2015 até sua oficialização em 2017. A BNCC instituiu o currículo para os sistemas educacionais, sejam eles federais, estaduais ou municipais, de entidades públicas ou privadas, garantindo uma base de conhecimentos que seja comum a todos. Semelhantemente ao RCNEI, ela também foi ponto de contradições teórico-metodológicas.

De acordo com Morais e Nascimento (2018) destituir da EI o lugar do ensino da escrita alfabética (sem a necessidade de associação das correspondências som-grafia) e a não definição do que ensinar (conteúdos) serve apenas para manter o apartheid entre crianças das camadas populares e seus pares da classe média.

Contrários ao termo currículo ou áreas de conhecimento, os autores da versão inicial criaram o campo das experiências potencializadoras: “o eu, o outro e o nós”; “corpo, gestos e movimentos”; “traços, sons, cores e imagens”; “escuta, fala, linguagem e pensamento”; “espaços, tempos, quantidades, relações e transformações.” A segunda versão, baseada nos princípios éticos, políticos e estéticos da EI; apresentou cinco pontos para embasar as relações pedagógicas: “cuidar e educar”; “interações e brincadeiras”; “seleção de práticas, saberes e conhecimentos”; e “centralidade das crianças”.

Morais (2015) apontou algumas críticas em relação à versões iniciais da BNCC. Tais como: o reforço da dicotomia entre EI e EF, a ausência de explicitação d’o que ensinar, o lugar secundário atribuído a língua escrita, a falta de progressão dos campos de experiências - o mesmo que previram para bebês de um ano de idade não diferia para as crianças de cinco anos- a afirmação de embasamento na perspectiva interdisciplinar, no entanto, excluíram das experiências com outras linguagens a língua escrita. A segunda versão manteve os campos de experiências da primeira versão e avançou em relação a progressão das aprendizagens que a primeira não trouxe.

Um dos pontos polêmicos foi à questão dos diferentes tipos de linguagens. A primeira e segunda versões, que segmentou a BNCC para a EI em campos de experiência, criou o campo de experiência “Escuta, fala, pensamento e imaginação”. Para a terceira versão da BNCC, esse campo de experiência foi transformado em “Linguagem oral e escrita”. Como podemos ver, a língua escrita tornou-se ponto dissonante entre grupos de especialistas, justamente porque existem diferentes concepções sobre a criança, o professor, o ensino e a aprendizagem.

Tanto os RCNEIs (BRASIL/MEC 1998) quanto a BNCC (BRASIL/MEC 2017) chegaram as suas versões finais permeadas pelas complexas relações de poder. Como quase tudo que envolve a EI parece haver lados opostos, concordamos com os posicionamentos de Arce (2010) e Morais (2015) ao situar a EI como lugar para o ensino e a aprendizagem significativos, com direito ao acesso à língua escrita. De acordo com Arce (2010 p. 21) os RCNEIs favorecem apenas o espontaneísmo e de acordo com Morais (2015 p. 168) os RCNEIs não apresentaram uma clara proposta de ensino para a língua escrita.

O que pudemos inferir ao compararmos o volume I e III é que existe uma marcante diferença entre eles. Enquanto o volume I privilegiou o espontâneo, o volume III, pareceu ajustado aos debates e descobertas de pesquisas mais recentes, valorizou o trabalho com a escrita, estabeleceu metas de aprendizagem e sugeriu formas de trabalho para o professor. As DCNEIs sim, tratou a língua escrita de forma genérica, sem qualquer preocupação para com as orientações de como o professor devesse tratar esse objeto de ensino (GOMES, MORAIS 2014).

Extrairemos então dos três documentos (RCNEIs, DCNEIs, BNCC) que foram ou são importantes para a EI, as concepções de criança, de professor e de língua escrita neles presentes, por serem reveladoras da visão do que deva ser a criança, o professor e o tratamento que deva ser dado à linguagem/língua escrita.

Quadro 2- Documentos da EI: definições de criança, professor e língua escrita

RCNEI DCNEI BNCC

Criança Ser histórico e social, cuja concepção varia de sociedade para sociedade e também de acordo com o tempo e a classe social em que vive [...] “As crianças

possuem uma

natureza singular, que as caracteriza como seres que sentem e pensam o mundo de um jeito muito próprio” (V. I p. 21).

Sujeito histórico e de direitos que, nas interações, relações e práticas cotidianas que vivencia, constrói sua identidade pessoal e coletiva, brinca, imagina, fantasia, deseja, aprende, observa, experimenta, narra, questiona e constrói sentidos sobre a natureza e a sociedade, “Sujeito histórico e de direitos, que, nas interações, relações e práticas cotidianas que vivencia, constrói sua identidade pessoal e coletiva, brinca, imagina, fantasia, deseja, aprende, observa, experimenta,

narra, questiona e constrói sentidos sobre a natureza e a sociedade, produzindo cultura” (BRASIL, 2009).

produzindo cultura (p. 12).

Professor O trabalho direto com crianças pequenas exige que o professor tenha uma

competência

polivalente. [...] Este caráter polivalente demanda, por sua vez,

uma formação

bastante ampla do profissional que deve tornar-se, ele também,

um aprendiz,

refletindo

constantemente sobre sua prática, debatendo com seus pares, dialogando com as famílias e a comunidade [...] (V. I, p. 41). ---- [...] Parte do trabalho do educador é refletir, selecionar, organizar, planejar, mediar e monitorar o conjunto das práticas e interações, garantindo

a pluralidade de situações que promovam o desenvolvimento pleno das crianças [...] (p. 37). Linguagem/língua escrita A compreensão de um sistema de representação e não somente como a aquisição de um código de transcrição da fala; um aprendizado que coloca diversas questões de ordem conceitual, e não somente perceptivo- motoras, para a criança; um processo de construção de conhecimento pelas crianças por meio de práticas que têm como ponto de partida e de chegada o uso da linguagem e a participação nas diversas práticas sociais de escrita (V. III p. 122). Possibilitem às crianças experiências de narrativas, de apreciação e interação com a linguagem oral e escrita, e convívio com diferentes suportes e gêneros textuais orais e escritos; (p. 25). [...] o contato com histórias, contos, fábulas, poemas, cordéis etc. propicia

a familiaridade com livros, com diferentes gêneros literários, a diferenciação entre ilustrações e escrita, a aprendizagem da direção da escrita e as formas corretas de manipulação de livros [...] vão construindo hipóteses sobre a escrita [...] rabiscos e garatujas e, à

medida que vão

conhecendo letras, em escritas espontâneas, não convencionais, mas já indicativas da compreensão da escrita como sistema de representação da língua (p. 40).

Aqui, podemos ver as concepções dos três documentos sobre a criança, havendo uma repetição da concepção da DCNEI na BNCC porque esta a tomou como referencia. A concepção de professor na BNCC mistura-se a sua prática. Para Arce (2010 p. 19-20), o RCNEI não dá espaço para a construção do conhecimento, a prática do professor fica subordinada a vontade da criança. O espontaneísmo é o que norteia o trabalho e subtrai da EI qualquer coisa que a assemelhe a escolarização. Sendo o conhecimento construído pela criança através das interações, não há muito que planejar, pois é a criança quem determina o quê, como e quando aprende. A autora se opõe a tais concepções por acreditar que a EI não é apenas um espaço para convivência, mas de aprendizagem, um espaço escolar e não antiescolar.

O volume III do RCNEI, em relação à linguagem/língua escrita reconheceu que ela está marcada por diferentes concepções. Explica a existência do grupo dos que acreditam que as habilidades necessárias para aprender a ler e escrever depende de amadurecimento biológico e que essa crença ignora as influências externas que permeiam a vida da criança. Continua dizendo que tem também, o grupo dos que acreditam nos pré-requisitos como: memória auditiva, ritmo e discriminação visual e que essa crença se concretiza por meio de “exercícios mimeografados de coordenação perceptivo-motora, como passar o lápis sobre linhas pontilhadas, ligar elementos gráficos [...]” e “tornam-se atividades características das instituições de educação infantil” (BRASIL, 1998, p. 120).

O documento faz críticas aos velhos métodos de ensino, que privilegiam a cópia, a memorização e controla a prática pedagógica, no sentido de dosar o que ensinar, como e quando. Além das críticas aos velhos métodos de ensino, o volume III do RCNEI (BRASIL, 1998) continua então, corroborando com várias questões apresentadas por Ferreiro e Teberosky (1979): que a linguagem escrita não é um código, que a criança aprende através da associação com as práticas sociais, que ela não é um ser passivo, que a progressividade dos exercícios está baseada na visão adultocêntrica do que se considera mais fácil ou mais difícil. E, por fim, de que as crianças elaboram hipóteses originais sobre a escrita, caminhando na construção conceitual desse objeto.

Reconheceu a importância da diversidade de textos e seus portadores e ainda, que o meio social e familiar em que a criança vive, pode influenciar em maior ou menor grau, no interesse e compreensão da criança sobre o que é a escrita. Por isso mesmo, atribui à EI o papel de ajudar a criança a estar imersa na cultura escrita na sala de aula, ou seja, há a concepção de que familiarização com a escrita, na instituição, favorece a igualdade de oportunidade no acesso ao conhecimento. O documento, também, destaca a importância da

produção de textos, tendo o professor como escriba da turma, atentando para a reflexão sobre as condições de produção e sua funcionalidade, o que é muito importante. Por fim, ressaltou a importância de se trabalhar com os nomes das crianças e de permitir que escrevam como souberem, tendo no erro um aliado no processo de ensino (BRASIL, 1998).

Nas DCNEIs concordamos com Morais (2015 p. 168) houve uma ‘diluição’ da escrita em meio às demais linguagens. Apesar de mencionar a oportunidade com a linguagem oral e escrita, o convívio com a diversidade textual e seus suportes, o documento pareceu deixar muito pouco elemento para o professor saber que norte trilhar. Talvez, devia-se a este fato, a elaboração das propostas de ensino de muitos municípios, no passado, basearem-se mais nos RCNEIs, mesmo não sendo ele um documento obrigatório, mas que apresentaram objetivos e conteúdos que apontavam o que fazer na EI e que o tornaram por isso mesmo, alvo de alguns críticos.

A comparação das três versões da BNCC por Morais e Nascimento (2018) constataram que a segunda e terceira versões do documento, trouxeram um pouco mais de preocupação para com o que chamaram “algum tipo de letramento” (p. 15). No entanto, pouca clareza em relação ao tratamento para com a compreensão leitora. Apesar de mencionar a produção textual na EI, tendo no adulto um escriba, também deixou pouco claro como realizar atividades com esse eixo. E quanto a língua escrita, nenhuma sugestão na direção ao direito de avançar na alfabetização inicial.

As políticas públicas prescritas nos documentos, seja no reconhecimento da EI como parte do sistema educacional e ampliação de sua oferta e qualidade, seja na tentativa e implementação de um currículo, de fato, dizem-nos que estamos caminhando na direção certa. Talvez sejam questionáveis algumas das formas como elas aconteceram, mas, é preciso reconhecer algum avanço. A universalização da EI, a garantia de recursos financeiros, a garantia de recursos físicos e materiais que assegure a sua qualidade e do alcance da formação dos professores e a inclusão de propostas claras de ensino da língua escrita na BNCC ou a sua reformulação continuam sendo desafios.

A criança reconhecida como ser histórico e de direito, a mediação do professor para promover o seu desenvolvimento pleno e a definição clara do que ensinar sobre a língua escrita ainda precisam de novos avanços para além do papel. A ausência de consenso para com a língua escrita, antes mesmo da existência dos documentos que citamos, já marcava as práticas das escolas de EI como veremos a seguir.

2.3 REFLEXÕES ACERCA DE CONCEPÇÕES DIFERENCIADAS SOBRE O QUE É