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A proibição da comercialização de drogas ilícitas, embora intencionada em proteger o bem jurídico saúde pública163, acaba por responder pela criação e agravamento de diversos problemas nesta área de política governamental, que podem ser divididos em três categorias: i) políticas públicas de controle de danos; ii) controle na toxidade, pureza e presença de contaminantes nas drogas ilícitas, e iii) acesso a medicamentos para o tratamento de dor e overdoses.

O conceito de controle de danos pode ser visto como “um conjunto de políticas e práticas cujo objetivo é reduzir os danos associados ao uso de drogas psicoativas em pessoas que não podem ou não querem parar de usar drogas. Por definição, redução de danos foca na prevenção aos danos, ao invés da prevenção do uso de drogas; bem como foca em pessoas que seguem usando drogas.”164.

Surgido na década de 80 com o fornecimento de seringas a usuários de heroína e terapias de substituição de opioides165 o conceito rapidamente se

163 Note-se, neste ponto, que este objetivo da legislação antidrogas não difere das regulamentações

sanitaristas que controlam a produção e comercialização de tabaco, álcool e medicamentos. O elemento que varia é o tipo de tratamento jurídico oferecido, modulado pelo risco representado pela substância e por fatores culturais.

164 INTERNATIONAL HARM REDUCTION ASSOCIATION. O que é redução de anos? Disponível

em: <http://www.ihra.net/files/2010/06/01/Briefing_what_is_HR_Portuguese.pdf>. Acesso em 23 jul. 2015.

165 Substituição do vício em heroína pelo fornecimento de metadona, um opiode com menor grau de

pureza, menor potencial de dependência e menor risco para a saúde do dependente, permitindo a desintoxicação e a superação gradual do vício. A metadona faz parte da Lista A1 da Portaria 344/98

expandiu para o controle geral dos danos individuais e coletivos do uso problemático de drogas por determinados usuários.

Trata-se de uma iniciativa de saúde pública obstada pelo presente tratamento prioritariamente criminal oferecido ao tema, pelas dificuldades causadas pela Convenção contra o Tráfico Ilícito de Entorpecentes e Substâncias Psicotrópicas de 1988 e pelo atual estigma existente em face dos usuários de drogas ilícitas. Como consequência, o tratamento para dependência química no Brasil responde por elevados índices de recaídas, principalmente em segmentos mais pobres da população, que dependem de clínicas localizadas em locais isolados, sem acompanhamento médico e familiar.

O resultado das dificuldades na execução e formulação de políticas de controle de danos e de tratamento para dependência química faz com que os usuários de drogas ilícitas não encontrem no Estado uma fonte de apoio e suporte na superação do vício, temendo inclusive os membros das forças de segurança pública e passando a exercerem comportamentos de risco. Tratam-se de condutas relacionadas desde o uso compartilhado de seringas à prática de condutas criminosas a obtenção dos meios financeiros necessários a sustentação do vício.

O proibicionismo reflete em outro grave problema de saúde pública. A ausência de controle estatal na cadeia produtiva das drogas ilícitas tem como consequência a mistura da substância com impurezas, bem como variações na quantidade de princípio ativo por dose, expondo a risco a saúde dos usuários, algo mitigado em substâncias controladas como o álcool, tabaco e medicamentos. Neste sentido, a regulamentação parcial da maconha (uso medicinal) no estado da Califórnia (Estados Unidos da América) implicou no controle no grau de THC e CBD (dois dos princípios ativos) presentes na cannabis vendida legalmente166, fator passível de influenciar o próprio potencial de dependência da substância, algo inexistente no mercado ilícito167.

do Ministério da Saúde, podendo ser utilizada no Brasil para o tratamento de dependência química de heroína, mediante notificação de receita do tipo “a”.

166 BURGIERMAN, Denis Russo. O Fim da Guerra: A maconha e a criação de um novo sistema para

lidar com as drogas. São Paulo, Leya, 2011, p.155.

167 Neste sentido o relatório World Drug Report 2014 da Organização das Nações Unidas é categórico

ao afirmar o aumento do teor de THC presente nas plantações ilegais de maconha descobertas em solo norte-americano, aumentando de 8,7% em 2007 para 11,9% em 2011, ou seja, os traficantes manipulam as plantas para aumentar o potencial psicoativo da substância e por consequência seu potencial de dependência. (UNODC . World drug report 2014, p. 41).

Por fim, a atual sistemática do proibicionismo global implica numa maior dificuldade de acesso a medicamentos por parte das populações que deles necessitam. Ocorre que diversos princípios ativos de medicamentos utilizados no tratamento da dor ou de overdoses são considerados drogas ilícitas (ex. morfina) estando submetidos a um rígido controle no comércio nacional e internacional.

Como exemplo pode ser observada a substância conhecida como Quetamina168, anestésico de baixo custo e de maior disponibilidade em países menos desenvolvidos e que se encontra no centro de uma disputa entre a Junta Internacional de Fiscalização de Entorpecentes e a Organização Mundial da Saúde acerca da liberação de seu uso medicinal169. As dificuldades causadas por esta disputada implicam na obrigação destas nações em buscarem alternativas legalmente permitidas pela legislação internacional, implicando na aquisição a maior custo e/ou menor quantidade, com consequências nocivas para as populações de baixa renda no acesso a medicamentos para a dor, principalmente em países menos desenvolvidos. A aquisição forçada de medicamentos de maior custo acaba por atender aos interesses comerciais da indústria farmacêutica, perpetuando suas altas taxas de lucro, o que denota a existência de interesses políticos e econômicos na classificação de substâncias e no acesso ao mercado de medicamentos.

Como consequência das dificuldades de acesso a políticas de controle de danos (que implica no distanciamento do usuário do Poder Público e em sua aproximação com o traficante), nas variações de pureza e toxicidade (afetando a saúde e os casos de dependência química), e no óbice ao acesso global a medicamentos para a dor e tratamento de overdoses (refletindo na expansão do contrabando e consequentemente facilitando o desvio como precursores), os efeitos do proibicionismo nas questões de saúde pública acabam refletindo enquanto motivo de sua própria ineficácia.

168 A Quetamina não se encontra nas listas de restrição da Portaria de n. 344/98 do Ministério da

Saúde, não existindo óbice no Brasil para seu uso enquanto medicamento.

169 GLOBAL COMMISSION ON DRUG POLICY. Sob controle: caminhos para políticas de drogas que funcionam. Relatório 2014 em português. Published by: Maira Guarabyra on Sep 15, 2014, p.42.

Disponível em:

<http://static1.squarespace.com/static/53ecb452e4b02047c0779e59/t/540da750e4b042802a384995/1 410180944062/global_commission_PT.pdf>. Acesso em 23 jul. 2015.