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Processos de diversificação e adaptação dos criminosos envolvidos

A capacidade de adaptação dos criminosos existe não apenas como um exemplo histórico a ser observado no cenário internacional, mas como uma realidade das organizações criminosas dentro do cenário brasileiro132, podendo ser observada no surgimento e a ascensão do Comando Vermelho a posição de uma das mais poderosas organizações criminosas brasileiras,

O contexto histórico de seu surgimento pode ser encontrado na Lei Segurança Nacional de 1969 (Decreto-Lei 898/69), a qual em seu artigo 27 submeteu ao mesmo tratamento todos os acusados de roubos a bancos, independente de eventual motivação política133. O tratamento similar dado aos criminosos comuns e aqueles envolvidos com resistência do regime militar ocorrera como uma tentativa desmistificar o próprio insurgente, equiparando-o na lei a um criminoso comum134. O resultado deste tratamento foi a mistura entre insurgentes e criminosos comuns dentro do sistema carcerário do Rio de Janeiro, levando ao intercâmbio de ideias que resultou no surgimento da Falange LSN (nome anterior do atual Comando Vermelho), organização que rapidamente ascendeu a posições de poder dentro dos presídios cariocas.

Quando colocados em liberdade estes criminosos, a princípio, retomaram o roubo enquanto prática delitiva principal, sendo alvo de uma esperada reação do Poder Público, fator que em conjunto o aumento do consumo de diversos tipos de drogas no Brasil na década de 1980135 resultou na diversificação de suas atividades criminosas, que passaram a ter no tráfico sua principal fonte de renda.

Trata-se do primeiro sinal da capacidade de adaptação dos criminosos brasileiros envolvidos com o tráfico de drogas.

132 RODRIGUES, Tiago. Política e Drogas nas Américas, São Paulo, EDUC: FAPESP, 2004, p.214-

239.

133 Art. 27. Assaltar, roubar ou depredar estabelecimento de crédito ou financiamento, qualquer que

seja a sua motivação:

Pena: reclusão, de 10 a 24 anos.

Parágrafo único. Se, da prática do ato, resultar morte:

Pena: prisão perpétua, em grau mínimo, e morte, em grau máximo.

134 Cumpre ressaltar a relação existente entre a Lei de Segurança Nacional de 1969 e a Ideologia de

Segurança Nacional, uma das bases do proibicionismo, conforme abordado na parte histórica (capítulo II).

Aproveitando-se dos altos preços, provocados pela ilegalidade de substâncias como a maconha, a cocaína e o “crack”, o Comando Vermelho obteve a fonte de renda necessária para conseguir ascender ao posto de uma das principais e mais poderosas organizações criminosas brasileiras em existência. Não obstante os ideais do Estado Social interventor (base da expansão do Direito Penal), o tráfico de drogas passa a atuar como verdadeiro Estado paralelo, fornecendo produtos e serviços, bem como um sistema de “justiça” próprio afastando a população local do Poder Público e a aproximando-a dos criminosos. Como consequência do poder intimidador dos armamentos possuídos, da sistemática assistencialista e da falha de atuação do Poder Público, o poder das grandes organizações criminosas acaba estruturado, comprometendo a eficácia da aplicação concreta da legislação antidrogas brasileira, com reflexos nos índices de produção, comercialização e consumo de drogas ilícitas.

O desenvolvimento destas grandes organizações criminosas resultou na criação de uma complexa estrutura de funcionamento de suas atividades, com a criação de cargos e funções específicos, conforme exposto no relatório Caminhada

de crianças, adolescentes e jovens na rede do tráfico de drogas no varejo do Rio de Janeiro, 2004-2006 do Observatório de Favelas136. A profunda estruturação destas

organizações criminosas resulta no fato de que a prisão ou morte dos agentes envolvidos é facilmente substituível.

A capacidade de adaptação, porém, transcende questões de estruturação das grandes organizações criminosa, influenciando o método de execução de suas atividades, sendo destaque o recente fenômeno acerca da comercialização de drogas ilícitas pela rede mundial de computadores (internet) com o exemplo da extinta Silk Road. Segundo o relatório World Drug Report de 2014 da Organização das Nações Unidas, a Silk Road movimentou a cifra total de US$ 1.2 bilhões de dólares em seus dois anos e meio de funcionamento, contendo cerca de 200.000 usuários cadastrados137. Tratando-se de um website de comércio eletrônico de drogas ilícitas escondido dentro da chamada Deep Web e protegido por mecanismos específicos de garantia do anonimato, a tarefa de investigação das autoridades

136 Trajetória de crianças, adolescentes e jovens na rede do tráfico de drogas no varejo do Rio de

Janeiro: 2004-2006. Disponível em: <http://observatoriodefavelas.org.br/acervo/trajetoria-de-criancas- adolescentes-e-jovens-na-rede-do-trafico-de-drogas-no-varejo-do-rio-de-janeiro-2004-2006/>. Acesso em 23 jul. 2015.

acaba sendo comprometida, visto que demanda a cooperação internacional entre as forças de segurança, além do fator de que a ocultação do endereço de IP (Internet

Protocol) das transações torna muito difícil a aplicação de critérios de tempo e local

dos crimes, sem os quais a aplicação da lei penal acaba comprometida. Portanto, a comercialização de drogas pela internet demonstra a dificuldade das autoridades de segurança pública em aplicar a sistemática proibicionista ao mundo virtual, a baixa efetividade da legislação antidrogas (e do presente modelo de política pública) e a capacidade adaptativa dos criminosos de buscarem mecanismos dotados de menor vigilância para o exercício de suas atividades ilícitas, afetando setores da economia e da população que antes não guardavam relação alguma com o problema.

Neste sentido, outro exemplo da capacidade de adaptação dos criminosos pode ser observado no recente movimento norte-americano de migração da cocaína para as anfetaminas, como resultado da repressão dos órgãos de segurança pública. Conforme disposto no relatório World Drug Report de 2014 da Organização das Nações Unidas, dados recentes indicam um processo de migração destas drogas nos Estados Unidos, visto o similar efeito estimulante e a existência de mecanismos locais falhos na repressão a estimulantes sintéticos138. Ademais, diferente da cocaína, a cadeia produtiva das anfetaminas ilícitas é mais curta, podendo ser refinadas domesticamente pelo próprio usuário, através da compra de diversos medicamentos lícitos (vendidos sem receita médica) e que acabam sendo utilizados como precursores indiretos.

Outro ponto de relevância pode ser encontrado nos dados fornecidos pela Organização das Nações Unidas, relacionados com a inserção todos os anos de novas substâncias psicoativas no mercado. De acordo com o relatório World Drug

Report de 2014 em 2009 foram reportadas 166 novas drogas139 ao tempo que em

julho de 2012 outras 251 substâncias haviam sido relatadas, número adicionado na cifra de 348 em dezembro de 2013, ou seja, entre 2009 e 2013, ao menos 765

138 UNODC (2014). World drug report 2014, p.52.

139 A criação de novas drogas demanda a atualização das listas das Convenções da Organização das

Nações Unidas e das legislações das nações signatárias, incluindo a brasileira. Por mais que as novas substâncias não façam parte do mercado nacional, o compromisso assumido internacionalmente nas Convenções da ONU implica na obrigatoriedade do combate. A ausência de lesividade, real ou potencial, de determinada substância por sua não presença no mercado nacional reflete na crítica da Lei 11.343/06 e de sua complementação pela Portaria SVS/MS 344/98, eis que os compromissos internacionalmente assumidos implicam na criminalização de condutas (pela via administrativa) sem levar em conta a necessidade de aplicação da ultima ratio no cenário nacional, violando o princípio penal da subsidiariedade.

novas substâncias foram relatadas a Organização das Nações Unidas, devendo ser objeto de complementação nas listas das Convenções de 1961 e 1971, bem como no ordenamento jurídico de cada país signatário140. Por sua vez, a lista F da Portaria 344/98 que complementa e lei antidrogas brasileira (Lei 11.343/06) possui apenas 50 substâncias consideradas como drogas ilícitas. Trata-se de um enorme desafio aos órgãos de segurança pública, que necessitam constantemente se adaptar, investindo em novas técnicas, procedimentos, treinamento e equipamentos necessários para a repressão a cada nova droga criada, com reflexo no aumento progressivo dos gastos públicos.

A capacidade de diversificação dos criminosos é conhecida dos órgãos internacionais que tratam do tema, sendo destaque a passagem abaixo, extraída do relatório The drug problem in the Americas: Chapter 5: Drugs and Security, da Organização dos Estados Americanos:

These activities are practiced by a wide variety of criminal organizations (cartels, bands, gangs, commandos, and paramilitary units), each with its own dynamic. Apart from the illicit drug trade, according to examination of the proceedings of numerous court cases published in several studies, these organizations engage simultaneously in 23 different illicit activities, which include all types of internet fraud and other cybercrimes, human trafficking, diamond and precious metal and stone smuggling, document and passport forgery, cigarette smuggling, trafficking in automobile parts and stolen vehicles, money laundering; arms manufacture and trafficking, armed robbery; trafficking in fuel and counterfeit goods, forgery, natural resource trafficking, extortion, kidnapping, trafficking in antiques and archeological remains. On the domestic front, in addition to the production and sale of illicit drugs, activities carried out by organized crime include the illegal sale of weapons, the counterfeit and contraband trade, control and exploitation of prostitution, robbery and the sale of stolen goods, illegal mining, kidnapping, and extortion, including the victimization of migrants141.

As organizações criminosas surgidas dos lucros do proibicionismo sobrevivem diversificando suas atividades, independentemente de seu porte, desde as

140 UNODC (2014). World drug report 2014, p.51 e 52.

141 OAS – Organization of American States. The drug problem in the Americas: Chapter 5: Drugs and Security, 2013, p.24 e 25. Estas atividades são praticadas por uma grande variedade de

organizações criminosas (cartéis, bandos, gangues, comandos, e unidades paramilitares), cada uma com sua própria dinâmica. Além do comércio ilícito de drogas, de acordo com a análise dos processos de inúmeros processos judiciais publicados em diversos estudos, essas organizações se envolvem, simultaneamente, em 23 atividades ilícitas diferentes, que incluem todos os tipos de fraude na internet e outros crimes cibernéticos, tráfico de seres humanos, diamantes e metais preciosos e contrabando de pedras, falsificação de documentos e passaportes, contrabando de cigarros, tráfico de peças de automóveis e veículos roubados, lavagem de dinheiro; fabricação e tráfico de armas, assalto à mão armada; tráfico de combustível e de mercadorias falsificadas, falsificação, tráfico de recursos naturais, extorsão, sequestro, tráfico de antiguidades e restos arqueológicos. No front interno, além da produção e venda de drogas ilícitas, as atividades realizadas pelo crime organizado incluem a venda ilegal de armas, a falsificação e contrabando de mercadorias, controle e exploração da prostituição, roubo e venda de mercadorias subtraídas, mineração ilegal, sequestro e extorsão, incluindo a vitimização de imigrantes. (tradução nossa)

pequenas gangues de rua até os grandes cartéis da Colômbia, atuando numa ampla gama de atividades criminosas que financiam e são financiadas pelo tráfico.

Neste sentido, continua o relatório:

One unifying characteristic of the most powerful criminal structures (in terms of resources and influence) is that they operate on several fronts simultaneously. That is the case with the so-called Mexican cartels, the criminal bands emerging in Colombia, the Commandos in Brazil, and the maras in Central America, all of which have different ties to the drug market, but do not depend on it exclusively.142

Portanto, a regulamentação de uma determinada droga em nível regional possui seu efeito modulado sobre diversas organizações criminosas, dependendo do quanto sua receita dependa desta substância, bem como do quanto atuem no tráfico como principal fonte de renda, bem como de sua capacidade e margem para adaptação, migrando para outras atividades.

3.3 O proibicionismo como fator determinante nas altas margens de lucro para