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A repressão ao consumo de drogas ocorre na Lei 11.343/06 em dois níveis específicos, sendo o porte para consumo pessoal (artigo 28) e a possibilidade da

imposição de tratamento compulsório ao usuário (artigo 45, parágrafo único e artigo 47).

Acerca da repressão ao porte voltado ao consumo, existem quatro elementos passíveis de questionamento: i) a ocorrência de descriminalização; ii) o perfil do bem jurídico tutelado pela norma; iii) a ausência de critérios objetivos que separem porte para consumo de tráfico; e iv) a constitucionalidade do dispositivo.

Primeiramente, no que diz respeito a ocorrência de descriminalização no artigo 28, destaca-se que ausência de previsão de pena privativa de liberdade no dispositivo. Neste sentido, Luiz Flávio Gomes destaca que o artigo 1º da Lei de Introdução do Código Penal, ao considerar crime como sendo a infração penal punida com prisão ou detenção, implica que o delito do artigo 28 teria sido descriminalizado mantendo suas características de infração penal dentro de um conceito sui generis255. O conceito do autor acaba contraposto pelo fato de que a Lei de Introdução ao Código Penal (Decreto-Lei 3.914/41) foi editada numa época em que diversas penas, atualmente positivadas, sequer existiam. Não bastando, a Constituição Federal em seu artigo 5º, incisos XLVI e XLVII, previu uma série de penas passíveis de serem aplicadas, limitando aquelas expressamente vedadas. Desta forma, questiona-se o artigo 1º da Lei de Introdução ao Código Penal deve ser interpretado de acordo com a ordem constitucional vigente. Ademais, considerando- se a hipótese de descriminalização do dispositivo impediria sua tipificação como ato infracional (artigo 103 da Lei 8.069/90)256.

Não sendo o caso de descriminalização, Alexandre Bizzotto e Andreia de Brito Rodrigues defendem a ocorrência de despenalização no dispositivo257, ao tempo em que Guilherme de Souza Nucci entende pela ocorrência de desprisionalização258. Observa-se que o delito do artigo 28 mantém a possibilidade de processamento e condenação do acusado, embora no rito da Lei 9.099/95, aplicando-se sanções não privativas de liberdade, dentre elas a prestação de serviços à comunidade, típica pena restritiva de direitos, medida punitiva prevista no artigo 5º, inciso XLVI, da Constituição Federal. Como resultado, não há que se falar em descriminalização ou despenalização do delito, sendo o termo desprisionalização

255 GOMES, Luiz Flávio (coord.). Op. cit., p.108 a 119. 256 MARTINS, Charles Emil Machado. Op. cit., p.72 a 74.

257 BIZZOTTO, Alexandre; RODRIGUES, Andreia de Brito. Op. cit., p.39 e 40.

mais adequado, tendo em vista que a conduta continua sendo criminosa e sujeita a sanção, sendo prevista apenas alternativas ao encarceramento.

Na sequência, ao definir o bem jurídico do artigo 28 como sendo a tutela da saúde pública, versa Vicente Greco Filho que a conduta não pune o uso propriamente dito, mas a posse voltada ao consumo em razão do perigo social representado pela possibilidade de disseminação do hábito259. Ocorre que, acompanhando o presente raciocínio, o consumo de drogas lícitas, como o álcool e o tabaco também implicam na possibilidade de disseminação do hábito do consumo, inclusive para agentes não autorizados por lei260, expondo a risco a saúde pública e nem por isso sendo criminalizada a conduta. Neste sentido, observa-se que quantidade de delitos violentos praticados por influência de bebidas alcoólicas implica que o simples hábito de consumo já expõe a perigo a saúde pública de forma que sua não criminalização deriva de fatores culturais, morais e sociais, bem como de interesses políticos e econômicos. Como fator adicional, observa-se que o grau de exposição que o hábito do consumo traz para a saúde pública deriva não apenas da natureza da substância, mas de sua forma de preparo e de uso, bem como na presença de contaminantes e concentração de princípio ativo, riscos muitas vezes criados pela ausência de controle da cadeia produtiva, produto da própria proibição (Capítulo III).

Ademais, a expansibilidade do perigo de disseminação contradiz a própria finalidade presente na lei de que a conduta de posse para consumo precisaria ser praticada com elemento subjetivo do tipo, ou seja, se a tutela é a saúde pública o perigo de lesão, base da aplicação de pena, ocorre da mera posse, sendo irrelevante que seja voltada ao consumo pessoal. Como resultado deste raciocínio, seja a posse voltada para o consumo ou para entrega a terceiro, a pena deveria ser a mesma, visto que punido o risco abstratamente previsto na norma e não a conduta propriamente dita.

Como consequência, a lesividade do porte para uso pessoal quando contraposta a saúde pública possui uma lesividade no mínimo questionável. Não bastando, mantendo-se adstrito ao raciocínio de perigo social representando pelo

259 GRECO FILHO, Vicente. Op. cit., p.133.

260 O Estatuto da Criança e do Adolescente, em seu artigo 243, considera crime a entrega de bebida

alcoólica para menores de 18 anos. Trata-se, inclusive, de um crime de resultado, ou seja, que demanda a entrega da substância para a vítima, ao tempo que no artigo 28 bastaria a sua posse, para presumir a disseminação do vício pela entrega, sendo o perigo abstrato e presumido. A desproporcionalidade é evidente.

porte conclui-se que o tipo penal acaba por punir o agente pela sua conduta de vida, elemento de Direito Penal do autor, assim como aplica antecipadamente a pena em nome da tutela de um bem jurídico que sequer esteve exposto a perigo de lesão, visto que a posse ou a dependência química não permitem a presunção penal do ato de entrega a terceiro ou da disseminação do vício, sob pena de violação do princípio da presunção de inocência.

Caso admitido, por outro lado, que o objeto de tutela seria a saúde individual, estar-se-ia violando o postulado da secularização do direito, visto que a proteção da saúde individual transcende a atuação do direito penal, punindo o indivíduo pela prática de condutas auto lesivas. Como consequência, existiria a contradição de que ao mesmo tempo em que a conduta auto lesiva (sequer efetivada pelo porte) seria criminalizada com relação às drogas ilícitas, seria ausente de tutela penal com relação ao consumo de álcool, tabaco, medicamentos tarjados (sem receita) e até mesmo ao suicídio tentado, sendo sinal claro da criminalização de condutas morais. Desta forma, o princípio da secularização do direito acaba sendo violado visto que a criminalização presente no artigo 28 incide sobre uma conduta de cunho claramente moral, fator a que se adiciona a própria pena de admoestação verbal, cujo caráter é evidentemente moralizador261.

A seguir, observa-se a inexistência de elementos objetivos a separar a posse para consumo do tráfico de drogas. Ocorre que as condutas previstas no artigo 28 encontram-se também previstas no artigo 33 e a separação entre ambos os delitos decorre do disposto no parágrafo 2º do dispositivo referente a posse para consumo, cujo teor estabelece que “para determinar se a droga destinava-se a consumo pessoal, o juiz atenderá à natureza e à quantidade da substância apreendida, ao local e às condições em que se desenvolveu a ação, às circunstâncias sociais e pessoais, bem como à conduta e aos antecedentes do agente.”

A ausência de critérios objetivos, referentes a uma quantidade mínima a estabelecer uma cláusula de barreira a separar ambos os delitos expõe os usuários a uma considerável insegurança jurídica, deixando a tipificação a cargo dos representantes do Poderes Executivo e Judiciário, cuja interpretação destes elementos subjetivos guarda relação com uma legislação e política pública claramente proibicionistas sendo objeto de pressão política e demanda popular pela

expansão dos mecanismos de criminalização derivados do tripé ideológico do proibicionismo brasileiro (Capítulo III, item 2.3). Desta forma, a ausência de um tipo intermediário, somado a falta de proporcionalidade entre as penas e a ausência de critérios objetivos que separem os delitos, resultam na tendência do Poder Público a se imputar ao agente o delito mais grave, submetendo-o a todas as limitações anteriormente abordadas.

Como consequência, cria-se o que é definido por Salo de Carvalho como sendo uma “zona gris de alto empuxo criminalizador”262, cujo efeito é a tendência a imputação do autor no delito mais grave e a inversão do ônus da prova em seu desfavor, devendo comprovar que a conduta foi praticada visando o consumo pessoal. Como solução, defende o autor duas abordagens para os critérios de imputação existentes na análise comparada entre os artigos 28 e 33 da Lei 11.343/06. O primeiro deles seria a previsão de dolo específico no crime de tráfico de drogas consistente na presença de “animus de comércio” na conduta, cuja ausência de prova robusta de sua existência implicaria na desclassificação para porte voltado ao consumo263. A segunda seria a criação de cláusulas objetivas de barreira que separem o usuário do traficante por meio da quantidade apreendida264.

Ocorre que o conceito de “animus de comércio” é subjetivo, estando submetido a interpretação das circunstâncias do caso concreto podendo ser relacionada a requisitos similares ao da comprovação do porte voltado ao consumo como natureza e quantidade da substância apreendida. Por mais que sua presença transfira o ônus de produzir a prova da diferenciação entre os delitos para a acusação seu conceito continua impreciso e passível de um ato de interpretação subjetiva, voltada a criminalização do agente pelo delito mais grave, resultado dos valores sociais, culturais e morais envolvidos com o proibicionismo.

No que diz respeito a criação de cláusulas de barreira, estabelecendo um critério objetivo a diferenciar o porte para consumo do tráfico, observam-se algumas questões relevantes a serem consideradas: i) ao existir uma quantidade que separe os delitos o agente a praticar o tráfico de drogas executaria a conduta de posse da quantidade mínima para a caracterização da posse para consumo, reduzindo a eficácia da tutela penal; ii) o critério objetivo não leva em consideração a hipótese do

262 CARVALHO, Salo de. A política criminal de drogas no Brasil, p.237 a 239. 263 Ibidem, p.238 e 244.

usuário que compra em grandes quantidades, por conta de eventual dependência ou como forma de guardar a droga para um longo período de tempo, evitando o contato constante com o traficante; iii) que o peso real e o peso declarado de determinada quantidade apreendida pode “variar” de acordo com os desígnios dos agentes policiais, ou seja, basta que o laudo de constatação ateste a apreensão de uma quantidade acima do limite legal para que o peso seja oficial; iv) que as substâncias vendidas na ilegalidade encontram-se costumeiramente misturadas a impurezas, cujo porte isoladamente não é crime, ou seja, determinada quantidade de droga apreendida pode conter apenas metade deste peso na substância propriamente dita, o que isoladamente poderia colocar a conduta abaixo de eventual barreira objetiva.

Nas duas últimas questões não caberia contraprova em juízo da quantidade apreendida visto que a Lei 11.343/06 é clara acerca da destruição imediata da droga reservando-se apenas pequena quantidade necessária a redação do laudo definitivo (artigo 50, parágrafo 3º), ou seja, impossibilitando em juízo o questionamento se a quantidade apreendida era objetivamente para consumo ou tráfico.

Por fim, questiona-se a constitucionalidade da criminalização do porte de drogas ilícitas voltadas para o consumo. Ocorre que o modelo médico sanitário existente para a legislação antidrogas trabalha com a diferenciação do usuário como doente e do traficante como delinquente, impondo-se ao primeiro o tratamento e ao segundo a pena de prisão, ou seja, a repressão ao porte para consumo busca muito mais do tutelar a saúde pública, sendo verdadeiro elemento moralizador, impondo aos cidadãos padrões de comportamento. Desta forma, os diferentes modelos de política pública, voltados para os diferentes tipos de drogas, ao mesmo em que permite o consumo das chamadas substâncias lícitas (álcool, tabaco e medicamentos) moraliza o consumo das substancias ilícitas. Trata-se, de violação evidente ao postulado da secularização do direito, visto que a barreira que separa as substâncias lícitas das ilícitas não possui uma base lógica própria estando claramente relacionada com valores morais. Não há que se argumentar, também, que a aquisição e uso de substancias lícitas não sustenta o crime organizado, visto que é a própria proibição que criou as grandes organizações criminosas, oferecendo margens de lucro inatingíveis no mercado lícito (Capítulo III, item 3.3). Neste sentido, afirma Mariana de Assis Brasil e Weigert que “não é constitucionalmente possível

impor-se a proibição (penal) de comportamentos unicamente imorais, malvados, ou hostis, pois é imprescindível a efetiva lesão a terceiros.”265.

Observa-se, ainda, que a redação do tipo penal do artigo 28 criminaliza indiretamente o uso visto que a posse é seu pressuposto, ou seja, intervindo na vida privada de seus cidadãos e criminalizando condutas auto lesivas com base em valores morais. Ademais, a criminalização do porte pelo perigo representado pela conduta resulta na presunção do ato de disseminação do hábito de consumo ou vício, com aplicação antecipada de pena por conduta delitiva que sequer foi praticada, presumindo-se a periculosidade e punindo o agente por suas escolhas de vida. Como consequência, a criminalização do porte para consumo acaba por intervir excessivamente na vida privada dos cidadãos, invadindo campo constitucionalmente protegido (artigo 5º, inciso X), para a tutela de uma conduta cuja lesividade ao bem jurídico tutelado pela norma é, no mínimo, questionável. No que diz respeito ao controle do tráfico e dos índices de consumo, bem como a questão referente a adulteração das substâncias, destaca-se que os modelos internacionais abordados não buscaram a liberação completa e irrestrita, mas apenas uma nova regulamentação para uma dentre diversas substâncias proibidas.

A constitucionalidade do artigo 28 é objeto de questionamento não apenas pela doutrina, mas também por meio do Recurso Extraordinário nº 635.659, que foi objeto de repercussão geral e encontra-se em vias de ser julgado, prometendo pacificar o entendimento da Corte Superior. Com o devido respeito àqueles que esperam uma decisão no sentido da inconstitucionalidade do dispositivo, há que se questionar o próprio objeto do presente estudo, ou seja, a legislação antidrogas brasileira é parte de um aparato repressivo derivado do próprio proibicionismo global, no qual Brasil encontra-se inserido. O artigo 28 faz parte deste sistema e existe com a suposta finalidade de coibir o consumo privando o traficante de sua fonte de renda. Desta forma, apesar do mérito dos argumentos no sentido da inconstitucionalidade do dispositivo espera-se uma decisão de cunho eminentemente político voltado a manutenção da vigência do dispositivo dentro da presente dinâmica proibicionista.

Ainda que a decisão ocorra no sentido da inconstitucionalidade, destaca-se que a repercussão geral (artigo 102, parágrafo 3º, da Constituição Federal) expressa

tão somente o entendimento Supremo Tribunal Federal acerca do tema não vinculando as instâncias inferiores que poderão continuar a aplicar o dispositivo, cabendo ao acusado pelo artigo 28 da Lei 11.3434/06 recusar a transação penal, submetendo-se ao risco de ser condenado para então exercer seu direito de recurso buscando o reconhecimento no seu caso concreto do entendimento eventualmente estabelecido pelo STF. O medo da sanção e do estigma da condenação criminal, aliado aos altos custos do acesso a via recursal nas instâncias superiores implicam que pouco ou nada vai mudar para os usuários, principalmente para aqueles de baixa renda. Não obstante, seria o primeiro passo no sentido de uma nova regulamentação do mercado, dando início a outros questionamentos de ordem jurídica, cujo resultado pode ser a alteração da presente dinâmica proibicionista para um modelo de política criminal alternativa para o tema.

Por fim, acerca do tratamento compulsório ao usuário (artigo 45, parágrafo único e artigo 47), questiona-se a eficácia e a legalidade da medida. A imposição de tratamento para dependência independe do grau de imputabilidade do usuário, bastando avaliação por profissional da área de saúde que ateste a necessidade da medida, ou seja, tratando-se de medida imposta para o controle da periculosidade real ou fictícia do agente. Conforme abordado no capítulo III do presente trabalho, o modelo de tratamento para dependência química no Brasil possui um viés altamente discriminatório de forma que os usuários que possuam condições financeiras conseguem acesso a tratamento de qualidade em clínicas particulares, ao tempo que usuários hipossuficientes dependem de instituições públicas de baixa qualidade, muitas vezes não capacitadas ou equipadas para o tratamento do vício ou hábito de uso de determinada substância. Como exemplo, destacam-se os casos ocorridos em Porto Alegre, nos quais o tratamento para o uso de drogas ilícitas implicou em comparecimento na instituição Alcoólicos Anônimos266.

Ademais, a eficácia do tratamento para dependência guarda relação com a atuação de profissionais da área de psicologia sobre o conflito primário do agente que o levou ao consumo de drogas ilícitas267. Desta forma, a imposição de tratamento, sem o oferecimento de tratamento psicológico de longo prazo condena o agente a um círculo vicioso que expõe em risco a sua própria vida, levando ao uso

266 CARVALHO, Salo de (e outros). #descriminalizastf, p. 374 a 376 267 GRECO FILHO, Vicente. Op. cit., p.35 e 36.

múltiplo e a progressão no uso de drogas para categorias cada vez mais agressivas ao corpo humano.

Por fim, ainda que o tratamento seja apenas oferecido (e não imposto), ao agente no momento da audiência, existe um inegável caráter de coerção. Nestes casos sua aceitação não possui um grau pleno de voluntariedade, derivando do receio de que a negativa possa influir no provimento de mérito para seu caso.

5.3 Da compatibilidade da Lei 11.343/06 com um modelo regulamentado de