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Assim como em qualquer situação, a educação promove uma forma humana de aprender, posta num processo dinâmico de geração a geração em que os mais velhos assumem um papel importante, construindo junto aos mais novos os valores de toda uma expressão sociocultural necessária à sobrevivência e existência de todos538. O modo de educar indígena está relacionado às formas de vida social, não como diferente apenas, mas como seres humanos reivindicando direitos como todos os habitantes empobrecidos no interior de Alagoas, pelo mínimo de dignidade. Entretanto, era difícil a convivência por igual entre expressões socioculturais diversas. Apesar da existência

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QUEIROZ, J. Q. Op. Cit. 2014.

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THOMPSON, E. P. Op. Cit. 2002, p. 25.

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FERREIRA, G. G. A Educação dos Jiripancó: uma reflexão sobre a educação diferenciada dos povos indígenas em Alagoas. Maceió, EDUFAL, 2013, p. 129.

de discussões, não havia um diálogo simétrico, porque os povos indígenas não disputavam nas mesmas condições históricas539.

Mesmo que as situações fossem apresentadas como necessárias, era preciso questioná-las, tendo em vista que a presença da Escola e de toda estrutura do SPI significava os interesses do Estado republicano em “proteger” e tolher os indígenas, mas também e paradoxalmente, eram os caminhos possíveis para a afirmação dos Kariri- Xokó e dos Xukuru-Kariri naquele momento e principalmente posteriormente na reconquista das terras onde existiram os respectivos antigos aldeamentos. O relato do Pajé Júlio Kariri-Xokó expressou ricos detalhes nas formas educativas supostamente opostas que envolveram a Escola e o Ouricuri, nas quais observamos aspectos para pensar os significados da educação formal para os indígenas, mesmo no período do SPI. Perguntamos como – enquanto Pajé – avaliava os conhecimentos produzidos nas escolas, nas universidades em relação aos do Ouricuri, que eram considerados tradicionais,540

O doutrinador deles sou eu. Quer dizer meu pai era analfabeto, mas na doutrina dele era um homem formado. Que nem eu, já não sou analfabeto de vez, mas na minha doutrina que aprendi com ele, sou formado. Na época dele, para os mais velhos, porque eu sou a sexta geração, eu sou o sexto Pajé dessa comunidade. Da geração dele para traz, era mais fácil para o um doutrinador, pajé, porque não existia muito entretimento, ele só conhecia ele mesmo, ele convivia naquilo ali, era mais fácil para um pajé. Pai doutrinava setenta família. Eu tou com seiscentas e tantas. Pai dizia olhe meu filho, você ver meu trabalho, quebra a cabeça, você vai quebrar muito mais541.

A experiência possibilitava os aspectos necessários para “combater” a “subordinação” dos processos educativos na relação do “tradicional” e do “formal”, embora não fosse tão facilmente identificável na construção cotidiana. A relação entre aquelas duas formas educacionais evidenciava uma resistência por parte dos indígenas para não apagar os conhecimentos que os identificavam como “diferentes”. O Pajé Júlio seguiu argumentando:

Cada vez mais é preocupação e de fato é mesmo. Dele, já pegou aparecer televisão, essas coisas, ele já no fim da vida, quase. Pra mim já alcancei tudo isso. Isso é uma coisa que tira muitos, ele fazia viagem lá para os rituais, porque lá nós temos espaço de doutrinar, é professora, é doutora, é juiz seja o

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FERREIRA, G. G. Op. Cit. 2013, p. 86-87.

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O ritual Kariri-Xokó atualmente é realizado a cada 15 dias, nos finais de semana. Os indígenas realmente vão ao Ouricuri aos sábados e retornam na terça-feira. Uma vez por ano ocorre um ritual mais longo: a festa do Ouricuri. Uma vez por ano ocorre também uma “meia festa”, entre setembro e outubro. Algumas “idas” quinzenais são mais importantes que outras e dependendo da importância, poderão ter ou não um número maior de pessoas. SILVA, Cristiano Marinho Barros da. “Vai-te para onde não canta galo, nem boi urna...” diagnóstico, tratamento e cura entre os Kariri-Xocó. In: ALMEIDA, Luiz S. de (Org.). Índios do Nordeste: temas e problema 5. Maceió, EDUFAL, 2004, p. 31.

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que for, lá a educação dele não vale não, o que vale é a minha, a minha doutrina. Só aonde eu tenho espaço é lá. Porque aqui cada um tem seu negócio, eu não posso andar na casa de ninguém e nem eles podem andar aqui. Agora lá pai fazia de mês em mês, de mês e meio, de dois meses, eu faço duas vezes por mês, por conta do esquecimento542.

A escolarização ocorria concomitante a outros processos formativos incluindo os meios de comunicação de massa como o rádio e a televisão, que em muito influenciavam as formas de vida naquele momento histórico. Na perspectiva do Estado, particularmente a Escola exercia papel fundamental, porque assumia um tipo de papel que inseria os indígenas aos modelos de vida em sociedade que convivesse pacificamente com a logística do Brasil republicano da época.

O papel da Escola na perspectiva indígena assumia uma postura de confrontos, mas também de negociações, por fazer parte da estrutura do SPI, órgão que “protegeria” os grupos e principalmente que oportunizaria a posse de parte das terras dos extintos aldeamentos e outros benefícios implementados pelo Governo Federal. Era importante também considerar que a escola ensinava os códigos necessários à sobrevivência nas sociedades letradas nas quais os indígenas conviviam. O que garantia a etnicidade e que tinha a confiança dos indígenas era exatamente o Ouricuri. Assim, pareciam ficar divididos: de um lado a escola, necessária a vida em sociedade, local e nacional, do outro o Ouricuri, capaz de resistir aos processos formais de educação, porque era a experiência capaz de modificar, às vezes de maneira sutil e às vezes mais explícita, todo processo educacional e influenciando os métodos de ensino, a seleção e o aperfeiçoamento dos mestres e o currículo543.

Pensamos o Ouricuri como um espaço socialmente construído. Tratava-se de um lugar onde ocorriam trocas de conhecimentos em relação a todo o universo simbólico.544 A escola construía os conhecimentos necessários à vida indígena, porém não foi suficientemente capaz de formá-los enquanto suas afirmações identitárias. A educação formal também fazia parte dos aspectos necessários para a manutenção do PI enquanto estrutura assistencialista do Governo Federal, que por sua vez, discursava a passagem dos indígenas da categoria de “caboclos” a “civilizados”.

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Idem.

543

THOMPSON, E. P. Op. Cit. 2002, p. 13.

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Para refletir sobre tais situações, recorremos a Thompson quando tratou das diferenças entre uma ideia de cultura refinada em detrimento da cultura dos pobres545. A primeira estaria calcada no aprendizado escolarizado, racionalizado e sistematizado, porém, homogêneo e hierarquizado. A outra, construída na experiência do “homem comum546,” no cotidiano, experimentada por longos anos, vivenciada pelas gerações, com mudanças, quando necessárias. Enquanto uma classifica e distancia, a outra aproxima. Esse movimento ocorreu com os indígenas, porém a sabedoria das experiências Kariri-Xokó e Xukuru-Kariri respaldadas, principalmente, pelos modos de educar no Ouricuri, foram fortalecidas, na medida em que cresceu a população local, ampliaram-se também os conhecimentos sobre os povos indígenas pela sociedade local e nacional por meio das instituições.

As condições desiguais de acesso e permanência na educação formal entre os indígenas e os demais estudantes nos municípios de Palmeira dos Índios e de Porto Real do Colégio, ao longo das décadas de 1940 a 1960, período que correspondeu à presença do SPI, não resultou numa formação escolar dos alunos indígenas para além da 4ª série (5º ano do Ensino Fundamental na atualidade), com raras exceções. Isso ocorreu também com aqueles que mesmo mantendo médias ou conceitos considerados “Muito Bom” não conseguiram dar sequência aos estudos fora do Município, no caso mais específico, em Porto Real do Colégio.

A estrutura mantida pelo SPI se aproximou do que poderíamos denominar como paternalista. Isso porque tentava manter os indígenas na dependência do órgão tutor, mesmo que não assumisse a assistência conforme propunha em seus discursos e projetos que tentaram implementar nas escolas.

Embora Thompson tratasse de realidades europeias, vale lembrar que,

Uma confirmação da força dessa estrutura paternalista pode ser observada na maneira pela qual um número ínfimo de homens pobres de talento foram assimilados por ela. Não me refiro às tradições autênticas de canções populares, versos em dialetos etc., mas aos poetas “camponeses” que foram descobertos e tratados de forma condescendente, intolerável, por seus protetores aristocratas do século XVIII547.

545“Mas, em termos gerais, o paternalismo presumia uma diferença qualitativa essencial entre a validade

da experiência educada – cultura refinada – e a cultura dos pobres. A cultura de um homem, exatamente como seu prestígio social, era calcada de acordo com a hierarquia de sua classe”. THOMPSON, E. P. Op. Cit. 2002, p. 17.

546“A própria palavra „comum‟ – „um homem com o mais comum‟ – adquire, de modo significativo,

novas conotações: colocamo-nos com o comum e contra a cultura” THOMPSON, E. P. Op. Cit. 2002, p. 24.

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A relação da produção do conhecimento entre os indígenas Kariri-Xokó, Xukuru-Kariri e o órgão tutor, no que diz respeito aos processos educacionais formais, passaram a interagir de forma desigual, no sentido de a escola considerar os conhecimentos desses grupos de menor valor e a intolerância, com suas formas próprias de construir conhecimentos, foram evidenciadas pela necessidade da tentativa de transformação dos “caboclos” em “cidadãos brasileiros”. O Ouricuri e o Toré não tiveram espaço na construção dos conhecimentos escolares, embora fizessem parte do cotidiano dos indígenas.

4.5. Uma escola para os índios ou uma escola indígena em Alagoas? As