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A história dos municípios de Palmeira dos Índios e de Porto Real do Colégio está demasiadamente marcada pela presença indígena na região. Essa perspectiva não deve ser compreendida linearmente, na medida em que os conflitos entre indígenas e a sociedade ocorreram como situação e oposição179. Os processos que configuraram na implantação dos aldeamentos e da constituição dos citados municípios são inseparáveis, pois os indígenas construíram os municípios assim como os seus – ditos – fundadores. A questão central para o debate é: em quais condições.

Nessa perspectiva de movimentos simultâneos, inserimos a discussão sobre a educação escolar, a ser pensada como parte inerente aos processos gerais da criação dessa sociedade. A Educação não foi criada apenas para servir o sistema, mas é também um corpo do sistema. Os processos educativos e a Educação formal devem ser compreendidos como um elemento em construção que implica em ideologias, e, portanto, em disputas. Tardif180 defendeu que a Educação depende estritamente da cultura e não pode, pois, escapar às tensões e o mal-estar que a domina. Segundo o autor, foram os gregos antigos os responsáveis pela fundação da tradição educativa ocidental. Todavia, a escola que se estabeleceu nos aldeamentos teve sua história vinculada às necessidades criadas por uma época específica, uma situação social, foi parte dessa própria situação sócio-histórica.

179“Trata-se de demonstrar que os Índios integrados à colonização – os índios aldeados – não se diluíram

nas categorias genéricas de escravos ou despossuídos da colônia. Apesar da dizimação em larga escala e do desaparecimento de inúmeras etnias, os documentos apontam para o fato de que os Índios aldeados continuaram vendo-se e sendo vistos como tais até o século XIX”. ALMEIDA, Maria Regina Celestino de. Metamorfoses indígenas: identidade e cultura nas aldeias coloniais do Rio de Janeiro. 2ª ed. Rio de Janeiro, FGV, 2013, p. 23.

180

In: GAUTHIER, Clermont; TARDIF, Maurice. A pedagogia: teorias e práticas da antiguidade aos nossos dias. Petrópolis, RJ, Vozes, 2010, p. 28.

A República criou no Brasil a ideia de prosperidade e a escola como base central para produzir nos sujeitos os mecanismos necessários à “evolução”. Essa perspectiva não só foi danosa, porque implicava em mudança aos indígenas, mas também por discursar uma desvalorização de toda trajetória e experiências dessas populações, negando seus conhecimentos em nome da “ciência”, autorizando a escola a praticar discriminadamente a batuta “razão” e o poder do saber do Estado.

O significado da República para os povos indígenas em Alagoas produziu efeitos coercitivos em seus primeiros 50 anos. Esse período foi marcado por violentas mudanças na configuração dos espaços dos aldeamentos na tentativa de silenciar seus habitantes. Dos oitos aldeamentos que existiram até o século XIX dois resistiram à ação do Estado, o de Porto Real do Colégio e o de Palmeira dos Índios.

Ocorreu uma dinâmica configurada como resistência dos povos indígenas construindo confrontos com às políticas de Estado em confluência com as ideologias de grupos dominantes locais interessados na afirmação do desaparecimento étnico dos indígenas. A suposta invisibilidade e silenciamento dos indígenas significou ações efetivas do Estado e dos grupos dominantes, mas principalmente estratégias para manter práticas socioculturais indígenas sem identificação/reconhecimento. Esse processo educacional produziu efeitos negativos para os indígenas, embora, como citado, tenham ocorrido articulações silenciosas entre os Fulni-ô, Kariri-Xokó, Xukuru-Kariri e Pankararu que garantiram a existência desses povos, a afirmarem suas identidades étnicas em momentos oportunos.

Como afirmamos anteriormente, os encontros entre lideranças indígenas ocorriam como forma de manter práticas socioculturais relacionadas ao Ouricuri, mas também, foram configurados como encontros políticos na medida em que se reuniam para trocar informações sobre os povos indígenas no Brasil, articulando as demandas internas de cada grupo. As reuniões, a leitura e a produção de documentos, se constituíram num aspecto necessário na vida dos indígenas no século XX. Saber ler e escrever se impunham como “necessidade”, pois os frequentes encontros para fortalecer o chamado movimento indígena faziam frente ao Estado, embora em certos momentos buscava-se assistência, em outros repeliam a sua presença. Sobre as mobilizações indígenas no Nordeste Martins afirmou que

Provavelmente o ressurgimento de fidelidade étnica, ou melhor, a extensão da etnicidade indígena no Nordeste, relaciona-se também a mudanças socioeconômicas. Mas por se tratar de um fenômeno fundamentalmente político, está vinculado a alguns fatos relacionados principalmente a

processos de alianças estabelecidas entre indivíduos. O movimento indígena no Nordeste, refletido através de alianças entre etnias indígenas, vem sendo uma mobilização política dos próprios índios que tem encontrado

apoio/incentivo em organizações não governamentais181.

A escola para os indígenas se constituiu como necessária na formação para o trabalho ou para ensinar os códigos comportamentais da chamada civilização, mas também como relações de poder e saber, que implicavam em disputas, por exemplo, nas mobilizações pela terra. Os documentos oficiais registraram os limites territoriais por meio da produção de laudos antropológicos, elaborados pelos órgãos oficiais se constituindo como necessário ao acompanhamento de indígenas em retomadas e em conquista de novos territórios. Nas disputas também entre as memórias orais com as memórias escritas, possivelmente essa tenha sido a leitura que fizeram os indígenas daquele momento histórico.

Para os indígenas a palavra não era mais suficiente para estabelecer os limites territoriais, pois embora fosse aceita pela legislação, tornou-se fragilizada quando se recorria – ou ainda recorre – para comprovação em disputas com posseiros e com o próprio Estado. As memórias escritas constituíram-se como necessárias, embora não eliminaram as memórias orais, que continuaram para os indígenas como ferramentas imprescindíveis inclusive para reconhecimento étnico pelos próprios órgãos estatais.

Essa perspectiva põe a educação formal numa dimensão para além do seu entendimento simplista, buscando analisar sua presença nos aldeamentos como exclusiva demanda do Estado, genericamente nomeada de civilizatória. A Educação vista apenas como ação “civilizadora”, compreendida como única via de submissão, não contemplaria a história da resistência indígena. Deve-se buscar outros recursos teóricos como base para análise. Concordamos com Silva, quando afirmou que os discursos e imagens sobre os índios vêm mudando nos últimos anos. E essa mudança ocorre em razão da visibilidade política conquistada pelos próprios indígenas182. Essa realidade implica reconhecer a presença do Estado em áreas indígenas buscando o efetivo controle, mas isso não impede de evidenciar um protagonismo indígena.

Estudar os indígenas em Alagoas requereu especificidades teóricas que implicou em rastrear os códigos das memórias orais que estavam em permanente tensão com as relações de poder, além do saber de memórias pautadas na escrita produzida no cotidiano indígena e que convencionamos chamar de experiências indígenas, pois

181

MARTINS. A. C. M. Op. Cit. 1994, p. 143.

182

estavam em confluência com a sociedade local de Porto Real do Colégio e de Palmeira dos Índios.

É importante pensar a escola como um instrumento pedagógico formador que se constituiu como o centro da produção educativa desautorizando as famílias do papel educativo – o preço pago por esta perspectiva tem custado muito alto para as sociedades ocidentais, principalmente para os grupos subalternos – recorrendo às ciências nos espaços acadêmicos e escolares como supostos “responsáveis”, mas também autorizados a formar jovens com perfis e competências necessárias ao chamado desenvolvimento da nação brasileira.

Não se tratou de moralismo em favor da educação familiar, nem tão pouco de defender fanatismos religiosos, como base para os processos educacionais, muito pelo contrário, sugerimos críticas necessárias às sociedades letradas que geralmente têm abandonado os recursos pedagógicos existentes nas memórias orais em detrimento de conhecimentos meramente produzidos e autorizados nos espaços convencionados científicos, sem avaliar criticamente perdas e ganhos para os povos indígenas no Brasil.