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Compreendemos a formação como processos nos quais os sujeitos constroem suas vidas nas relações – de tensões – com o grupo em que está inserido e com a sociedade. Nessa perspectiva, na educação escolar é pensada enquanto uma proposta para além do aprender e do ensinar na sala de aula. As articulações com as relações extraescolares influenciam os estudantes para refletirem sobre sua condição de partícipes em todo processo como capazes de provocar mudanças, mas também de resistir para afirmar, quando necessário. Esse espaço, mesmo que não declarado, foi o Ouricuri Kariri-Xokó e Xukuru-Kariri.

Seguindo a perspectiva apresentada, consideramos o Ouricuri como espaço privilegiado, exclusivamente indígena, na formulação de processos pedagógicos complexos capazes de resistir a outros que sistematicamente investiram na sua eliminação, como os vários projetos e diferentes estatais e suas relações com o Cristianismo que sempre tentaram apagar o complexo universo sagrado dos povos indígenas no Brasil.

Os investimentos do Estado brasileiro se centravam em descaracterizar os projetos e as formas de viver dos indígenas para construir outras que pudessem satisfazer uma ideia de economia, de política e de cultura geral que convivesse com as relações – principalmente de trabalho – pensadas pelas elites local e nacional, em conivência com o Estado. Segundo Thompson, pessoas de posição tendem a manter-se a uma distância fria do “homem do povo”, como se temessem perder algo com essa intimidade524. Assim, os indígenas não só mantiveram certo distanciamento com os demais moradores nos municípios de Palmeira dos Índios e em Porto Real do Colégio, como também reservaram parte dos seus rituais para serem praticados apenas no Ouricuri.

O Ouricuri, por ser cercado de mistérios, tornou-se legitimador do modelo de índio exteriorizado e reconhecido pela sociedade nacional525. Pensamos o Toré como ritual apresentável para dentro das sociedades indígenas e para fora, local e nacionalmente. Era naquele local que os indígenas estabeleceram laços contínuos com

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THOMPSON, E. P. Op. Cit. 2002, p. 15.

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um espaço místico e sagrado, um lugar que permaneceu em oposição ao resto do mundo526.

Como espaço de formação, o Ouricuri significou o lugar da reprodução de si mesmo no nível social, em que práticas socioculturais foram resistindo na história. A história foi vivida, pois se tinham a crença de que os ancestrais mortos seriam a história viva e atuante, os recriadores do mito, com a ajuda deles não havia o que temer. A guerra contra os “cabeças seca”527

– que não são indígenas – seria vencida528. Seria também o lugar da conciliação dos modos de vida necessários a convivência com a sociedade local. Nela, os indígenas eram tratados em determinadas circunstâncias indistintos, por isso foram chamados de “caboclos” uma categoria que disputava os trabalhos do campo e da cidade com os demais alagoanos. Assim, o Ouricuri seria a fonte de vitalidade para suportar e manter a condição de índio, com todas as contradições daquele momento529. A intervenção do sagrado era para orientar e transformar essa suposta “imposição” em sobrevivência possível, ou seja, em história.

A definição dos rituais como xamanismo, traduziu-se como lugar precípuo de partilha de representações e de formação de alianças entre os povos indígenas no Nordeste, cabendo ao Toré a dupla função de atender ao imperativo de indianidade530 que conferia a legitimidade indígena, mas também convidava à reflexão, para a elaboração de estratégias de resistência, em que o próprio fato de existir, se configurava em ações.

O Estado investiu durante séculos para apagar as expressões socioculturais dos indígenas, no entanto, o aspecto identitário principal por parte do Estado, para o reconhecimento oficial, foi a prática dos rituais do Toré e do Ouricuri, respectivamente negados pela mesma instituição. Nesse sentido, embora o Ouricuri fosse lugar em que se entendia como ponto central de formação dos povos indígenas em Alagoas, não podia ser visto como um espaço fixo, sem qualquer mudança. Na perspectiva dos indígenas, a ideia de tradição e de antepassado adquiriu significados políticos que propunham um “retorno” histórico e simbólico àquele passado cujos aspectos “tradicionais” estivessem mantidos, mas sem abandonar as questões do contexto no

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MOTA, C. N. da. Op. Cit. 2007, p. 106.

527“Cabeça seca” é uma expressão pejorativa utilizada pelos indígenas para identificar os que não são de

seu grupo, ou seja, todos da sociedade que não são indígenas.

528

MOTA, C. N. da. Op. Cit. 2007, p. 112.

529

MATA, V. L. C. Op. Cit. 2014, p. 189.

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presente. As reivindicações pela terra permaneciam, mas com implicações políticas e econômicas pautadas nas expressões socioculturais, que se configurava, na perspectiva do Estado, num equívoco, tanto teórico, quanto prático, porque os indígenas jamais poderiam “incorporar” um biótipo carregado de expressões dos séculos passados. As mudanças ocorrem com todos os povos, não só com os indígenas.

Esse papel formador ocorreu antes e durante a presença do SPI com adequações aos movimentos sociopolíticos conforme cada momento histórico. Mesmo o sentido do Ouricuri e do Toré não se modificando substancialmente, na perspectiva indígena, precisou se relacionar com uma diversidade de aspectos das mudanças que ocorriam, como por exemplo, as reivindicações pelas terras que num determinado momento a discussão era para permanecer no mesmo espaço onde fora o aldeamento. Após a destituição, inverteu-se a lógica, seria para retornar, na maioria das vezes, por meio de ocupações, como forma de ampliar quantitativamente e qualitativamente a vida cotidiana531.

As atuações dos indígenas frente às disputas com as instituições oficiais também dependiam de uma organização interna, formada pelas autoridades de cada povo que se relacionava com o sagrado. E essas orientavam e dialogavam com a sabedoria sagrada, para revelar quais decisões deveriam ser validadas, considerando as necessidades do tempo presente, surgidas no dia a dia, que eram apresentadas aos conhecimentos superiores como forma de atribuir lugar essencial entre as memórias, a história e a Natureza, que juntas correspondiam à ideia de vida. O espaço do Ouricuri era e continuou sendo o centro do universo, onde todas as coisas e criaturas ganhavam forma e significados532.

O Ouricuri foi construído e reconstruído nas relações com a sociedade, no sentido de haver decisões dos indígenas interna e externamente que eram tomadas no ritual. A presença de aspectos considerados do mundo dos “brancos” foi também construído com os indígenas, ao longo da História do Brasil, embora fossem reconhecidas as particularidades indígenas suficientemente visíveis para reivindicarem suas identidades étnicas como povos específicos. Essa compreensão tornou-se complexa

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Quando ocorreu a extinção oficial dos aldeamentos de Porto Real do Colégio e de Palmeira dos Índios, em 1872, a maioria dos indígenas foram expulsos do espaço onde habitavam. Com a instituição dos postos do SPI surgiram famílias reivindicando seu retorno aos espaços dos antigos aldeamentos. As retomadas fazem parte desse processo que inverteu a lógica das reivindicações. Antes seria para permanecer, com o SPI para retornar ao aldeamento com “novas” configurações dos espaços.

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porque no século XIX e em parte do XX, o Estado brasileiro investiu para silenciar as expressões socioculturais dos povos indígenas, no entanto o que ocorreu foram (re) elaborações que se configuraram em novos e velhos processos formativos validando o “ser índio” em diferentes momentos históricos.

A formação dos indígenas no Ouricuri não ocorria isolada das tensões que viviam no cotidiano, havia uma frequência ao local com menor espaço de tempo, para buscar respostas a essas demandas, surgidas dentro e fora do que se pretendia como aldeia. O “complexo do Ouricuri” era assim um modelo simbólico para a reencenação contínua da etnicidade. O ritual secreto fornecendo um “programa” para organização dos processos sociais e para a elaboração das expressões socioculturais (étnicas), fontes extrínsecas de informação, respostas estratégicas e estilizadas para dar sentido e propósito político às situações de tensões face à sociedade nacional533. O Ouricuri como um convênio realizado entre seus ancestrais e seu povo. Como obrigação dos ancestrais e dos seus filhos em fazer com que a comunidade se reproduzisse em todos os níveis: biológico, econômico e ideológico534.

A presença das instituições formativas como a Igreja Católica Romana, as Igrejas Protestantes assim como a escola, nas áreas indígenas provocou um acentuado confronto pedagógico em oposição ao Ouricuri, considerando que o fortalecimento deste último seria na perspectiva de encontrar estratégias “convivência” e “resistência” porque nele estava relacionada a afirmação das identidades indígenas.

A presença da Escola e das igrejas na formação dos povos indígenas não significou sua eliminação enquanto indígenas. Nesse sentido se faz necessário buscar compreendê-las como construtoras de formas de educar, ou talvez, historicizar os processos. O que representava o catolicismo romano e a educação formal para as populações indígenas não se distanciava da ofertada para os demais alagoanos naqueles municípios onde habitavam os povos indígenas. As afirmações eram preconceituosas, quando se defendiam as instituições para o povo brasileiro – mesmo que de forma genérica – e naquelas circunstâncias, pois pensavam que os povos indígenas viviam no Brasil, e, portanto, não estavam fora do processo de construção da sociedade brasileira, pois estiveram presentes como participantes e não como espectadores.

O protagonismo dos indígenas em toda sua história com o SPI em Alagoas foi construir uma projeção para suas identidades, retomando parte dos territórios dos

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Idem, p. 198-199.

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antigos aldeamentos, incorporando as estruturas do Estado como as instituições religiosas e escolares que eram úteis para suas sobrevivências naquele momento, sem abandonar suas formas indígenas de educar. Nesse sentido, as memórias foram fundantes de processos formativos em que os indígenas recorreram aos registros das experiências construídas e expressas na oralidade. As memórias exerceram uma função de contestação dos limites territoriais impostos, mas também estabeleceu fronteiras daquilo que era de responsabilidade da Escola e do Ouricuri.

Pensado que no campo da História, as memórias estão associadas à história oral para estudar grupos socialmente excluídos, ou seja, as memórias dos diferentes grupos de marginalizados como fontes de pesquisas que possibilitam conhecer as experiências vividas e reconstruídas pelos seus narradores.535 Embora a escola enquanto instituição formativa primasse pelos registros escritos, não foi suficientemente capaz de apagar as formas de registros orais dos indígenas Kariri-Xokó e Xukuru-Kariri. Isso ocorreu em razão do Ouricuri, porque nele acontecia a socialização oral.

O Ouricuri, em particular, revelou-se como o principal centro formador dos processos educativos capaz de consolidar pedagogias que possibilitaram leituras políticas e de tempo histórico, de conjunturas, situações e mudanças necessárias a vida naquele momento. Assim, segundo os entrevistados, as revelações do sagrado Xukuru- Kariri e Kariri-Xokó não “proibia” a instalação de escolas e igrejas enquanto instituições formadoras, porque eram negociáveis para a sobrevivência física e econômica dos grupos, porém intensificava e ampliava a frequência nos rituais sagrados no Ouricuri.

O Pajé Júlio, Kariri-Xokó, tratou sobre as relações da Escola com o Ouricuri, afirmando que no seu tempo de criança quando seu pai era o Pajé, a frequência naquele lugar sagrado era um espaço de tempo mais alongado, justificando porque não havia a presença forte da Escola e principalmente da TV. Quando assumiu o lugar de seu pai, sentiu a necessidade de frequentar em finais de semanas, a cada 15 dias, mantendo os jovens na “doutrina da sua cultura”. Manter os jovens sob controle e não fugir da formação interna era, pois, necessário aos indígenas como povos etnicamente diferentes.

Na visão do Pajé, a Escola como espaço formador não existia em oposição à formação ao Ouricuri, desde que os professores estivessem em sintonia com as

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propostas de formação da vida sagrada. Ou seja, que alunos e professores participassem do Ouricuri,

A escola contribui. Por isso que a gente sempre exige, as lideranças sempre estão fazendo força de sempre formar que nossas escolas sejam somente índias, porque ela sendo índia, só ensinando às crianças índias, me ajuda a mim também. Porque eu só tenho espaço doutrinário lá no mato, lá elas também tão lá. Lá elas também tão aprendendo o que eu tou dizendo a doutrina que dou a elas, eu também, são professoras aqui, mas lá elas são alunas minha. E uma coisa minha de importância ela já traz para a criança na sala de aula, elas me ajudam536.

É preciso considerar que os processos de aprendizagens e de ensinos na Escola e no Ouricuri ocorriam simultaneamente, o que fazia necessário uma leitura política concomitante. Não eram espaços interpretados pelos indígenas como antagônicos, mas como situações postas e necessárias na época, embora soubessem do lugar político que cada um deles assumia. Assim, concordamos com Thompson quando afirmou:

[...] a igualdade do valor do “homem comum”, [...] repousava em atributos morais e espirituais, desenvolvidos através de experiências no trabalho, no sofrimento e de relações humanas básicas. Baseando-se muito menos em atribuições racionais e ele confia muito pouco na educação formal que poderia inibir ou desviar o crescimento calcado na experiência537.

Essa desconfiança com a Escola e aliada a experiência do Ouricuri, traduziram- se em aspectos necessários a afirmação/construção identitária, numa perspectiva processual e simultânea. Os indígenas passaram a conviver com formas educativas, se não contraditórias, eram tensas: Escola e Ouricuri.