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Uma escola para os índios ou uma escola indígena em Alagoas? As interfaces da

As evidências sobre contatos de povos diferentes serão apresentadas ao longo das reflexões. Primeiro porque se tratou de analisar duas formas de aprendizagem que passaram por processos formativos, a princípio, antagônicos: entre a oralidade ou tradição e a escrita ou sistematização dos conhecimentos. E segundo, a nosso ver, as experiências e a escolarização dos indígenas, supostamente se repeliam, mas também se aproximavam, na medida em que era parte de um projeto do SPI, mas também das reivindicações dos indígenas, levando-se em consideração o contexto. Ressaltamos que os povos indígenas ao longo da história de Alagoas enfrentaram diversas práticas de violências, porém o que evidenciamos nessa pesquisa foi a resistência ou as diversas formas de existir perante a sociedade local e nacional.

Nas escolas dos PIs Irineu dos Santos e Pe. Alfredo Damaso foram efetivadas práticas educativas como as danças, os cantos, as orações e as apresentações dos estudantes contribuindo para “obediência cívica”, que simbolizavam os comportamentos necessários à “civilidade”, e dessa forma, o Estado aparecia como coordenador da “conquista”. O cotidiano revelava uma ausência de outras ações como a falta de material didático/pedagógico e de estrutura física, produzindo reivindicações dos indígenas e até mesmo dos chefes de postos. As distâncias entre o ideal e o real, na perspectiva do Estado, resultavam na troca de servidores dos PIs, como solução imediata para tentar sanar problemas estruturais do órgão, havia também denúncias de corrupção ao longo do seu funcionamento.

Quando os programas educativos, a exemplo dos Clubes Agrícolas Escolares e o Programa Educação do SPI, apresentavam propostas de respeito às especificidades da cultura e dos costumes de cada povo indígena, estavam entendendo que deveriam prepará-los a partir de seus valores, de suas referências, porém considerando seus graus

de inserção na sociedade local, tomando como parâmetro a ideia de “civilização” para atingir os mesmos níveis de “civilidade” em relação às demais populações rurais que possuíam características de desenvolvimentos produtivos, morais e educacionais em vias de desenvolvimento supostamente quase “civilizadas” ou “homogeneizados”, com capacidades individuais e grupais envolvidos num sentimento de nacionalidade ao ponto de se emocionar ao executar o hino nacional em eventos. Persistiam na produção de sentimentos patriotas como mecanismos pedagógicos e políticos capazes de fortalecer uma cultura geral que correspondesse a projeção de um Brasil se não desenvolvido, mas em vias de desenvolvimento.

As populações rurais, incluindo os indígenas, deveriam “modernizarem-se” na produção e nos cuidados com a Natureza. O uso racional da produção e dos recursos naturais combinava com a ideia de modernização e desenvolvimento, que só viriam com o acesso à escolarização, justificando as alianças entre o SPI e os outros órgãos governamentais como o Ministério da Agricultura. Bringmann ao analisar as políticas indigenistas no século XX, período do SPI, afirmou:

Avaliando a formulação de políticas indigenistas pelo prisma de sua ideologia integracionista e assimilacionista, pôde-se observar que a situação das populações indígenas do Brasil pouco modificou-se no cenário republicano. A forte influência positivista na política nacional, durante os anos iniciais da república, apesar de estabelecer em suas propostas a liberdade de organização social, a garantia da soberania territorial e condenar as violências recorrentes contra os nativos, caracterizou-se, por outro lado, por uma tutela orfanológica de caráter marcadamente evolucionista, prescrevendo a necessidade de amparar e proteger as populações “fetichistas” até que estas atingissem o estágio mental da sociedade “civilizada”, isto é, da população branca de matriz europeia548.

Os níveis de desigualdades eram aceitáveis, porque somente a produção, a educação e a formação moral racionalizada desenvolveriam as populações rurais, incluindo os indígenas, utilizando a partir do aprendizado escolar as técnicas necessárias para superar os estágios de pobreza e de incivilidade nas quais se encontravam antes da presença dos PIs do SPI. Não foi discutido se os indígenas tinham ou não conhecimentos sobre o que significavam os processos educacionais formais, no entanto o contexto histórico não deixava alternativas para resistir à escolarização. O que ficou bastante evidente nos capítulos anteriores, foi o fato de os Kariri-Xokó e os Xukuru- Kariri conviverem com a educação escolar e fortalecerem os rituais de formação

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BRINGMANN, Sandor Fernando. Entre os índios do Sul: uma análise da atuação indigenista do SPI e de suas propostas de desenvolvimento educacional e agropecuário nos Postos Indígenas Nonoai/RS e Xapecó/SC (1941-1967). Florianópolis, UFSC, 2015, p. 396. (Tese Doutorado em História).

tradicionais como estratégia de resistência, logo consideramos que a história ocorre com avanços e recuos, nesse caso, os dois processos simultaneamente.

Os investimentos eram para padronizar e homogeneizar os povos indígenas por meio do ensino escolar, utilizando pedagogias e conteúdos pensados a partir dos pressupostos da educação rural. Aquela formação era a princípio, o que se destacava na documentação do SPI. Na prática, a escolarização e a formação dos indígenas ocorriam conforme os contornos e as dinâmicas que cada povo construía com a assistência do órgão estatal e no caso de Palmeira dos Índios, acrescentou-se a presença da Igreja Católica Romana, com a construção da Igreja, da Casa de Farinha e da Escola. Podemos inferir que a mudança histórica acontece não por uma “base” ter dado vida a uma “superestrutura” correspondente, mas pelo fato de as alterações nas relações produtivas serem vivenciadas na vida sociocultural, que repercutiram nas ideias e valores humanos e serem questionadas nas ações, escolhas e crenças humanas549. Portanto, as expressões socioculturais se mostraram como o lugar das disputas pelo SPI e pelos indígenas, na medida em que eram vistos como práticas que “condenavam” ou “modificavam” a vida dos povos ditos “incivilizados”.

A partir da perspectiva abordada, tratamos das expressões socioculturais indígenas como espaço político de mudanças, a partir da tradição, das experiências, das quais os indígenas demonstraram resistência às propostas de mudanças radicais que o SPI, por meio da escola, tentou imprimir no seu cotidiano, como meio de controle sistemático do horário em sala de aula, assim como na dinâmica de padrões de comportamentos em respeito à obediência às auxiliares de ensino e ao Chefe do Posto. Mesmo ocorrendo processos formativos tidos como racionais, impressos nas práticas de produção econômicas com a terra, a exemplo da construção de hortas e dos cuidados ambientais, em certa medida, acabou por fortalecer um movimento indígena e de indigenistas para a conquista da terra e, por sua vez, atualizaram o significado étnico do ser indígena, e que passaram a ser vistos como processos e, por conseguinte históricos.

Equivalendo a compreensão de que a Escola fortaleceu a instituição enquanto Estado, porque formou indígenas para o exercício da cidadania, conceito vago e amplo, porém foi incapaz de explicar as situações históricas daquelas populações, pois os indígenas atribuíram sentido no seu cotidiano, utilizando-se da experiência individual e coletiva, quando se apropriaram dos ideais republicanos e civilizatórios discursados e

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apreendidos na escola para elaborarem estratégias e reivindicações pautadas na afirmação étnica para o respeito à tradição, a história e as expressões socioculturais indígenas, mesmo que na prática esses aspectos tivessem sido negados pelos órgãos governamentais.

Avaliando positivamente todo processo de convivência dos Xukuru-Kariri e Kariri-Xokó com os processos formais ou racionalizados, a partir da instalação do PI e da Escola, percebemos que ocorreu uma ampliação territorial para os dois povos. Ocorreu o aumento populacional, por conseguinte, com acesso à Escola, o que significou também a compreensão da sociedade local da presença indígena, até mesmo contribuiu para reflexões dos próprios indígenas sobre si mesmos, sobre o lugar que ocupavam na história local e nacional, partindo do princípio que em todas as circunstâncias o ponto central e principal para suas vidas era o Toré e o Ouricuri, o que de fato, diferenciou-os da população regional.

Por mais que discutamos a relação entre indígenas, escola e PI sempre nos depararemos com a necessidade de avaliar quais os processos formativos e os seus engendramentos, pondo em suspeição os supostos avanços, identificando as perdas para os dois povos, ao se lançarem para uma cultura letrada sem abandonar as formas de vida “tradicionais”. Quando tratamos de avanços seria do ponto de vista da necessidade de continuar subsistindo numa lógica do Estado brasileiro, para tanto, as reivindicações dos Kariri-Xokó e Xukuru-Kariri foram para viver como povos indígenas possíveis, considerando toda trajetória de contato com os projetos homogeneizadores, lembrando que a escola fazia parte do mais sofisticado e eficiente quando posto em prática.