• Nenhum resultado encontrado

Os povos indígenas no Nordeste foram considerados misturados aos nacionais pelos governos provinciais e tiveram seus aldeamentos extintos, na segunda metade do século XIX, período em que a execução da política indigenista imperial esteve sob a incumbência da Direção Geral dos Índios164. Em julho de 1872, o Presidente da Província de Alagoas autorizou a extinção oficial de todos os aldeamentos, sendo incorporadas as terras de domínio público às sesmarias pertencentes aos aldeamentos. O documento seguinte anunciou a extinção dos aldeamentos argumentando a incorporação das terras sob domínio público:

Documento Nº 28 – O Presidente da Província autorizado pelo Aviso do Ministério dos Negócios da Agricultura, Comércio e Obras Públicas, datado de 17 de Junho último, sob o nº 3, declara extintos todos os aldeamentos de Índios existentes nesta mesma Província, ficando incorporadas as terras de domínio público às sesmarias pertencentes aos referidos aldeamentos, na conformidade do aviso citado e determina que neste sentido se expeçam as necessárias comunicações às autoridades competentes, a fim de se tornar efetiva semelhante providência. Palácio do Governo das Alagoas, Maceió, 03 de julho de 1872165

ALDEIA DOS ÍNDIOS DA PROVÍNCIA DAS ALAGOAS

NOMES MUNICÍPIOS COMARCAS FREGUESIAS

Jacuípe Porto Calvo Porto calvo Nossa S. da Apresentação

Cocal Passo de Camaragibe Porto calvo Bom Jesus

Urucu Imperatriz Imperatriz Santa M. Madalena

Limoeiro Assembleia Imperatriz Bom Jesus

Santo Amaro Pilar Atalaia Nossa S. do Pilar

Atalaia Atalaia Atalaia Nossa S. das Brotas

Palmeira dos Índios Palmeira dos Índios Anadia Nossa S. do Amparo

Colégio ou Porto Real Penedo Penedo Nossa S. da Conceição

Tabela 1 – Municípios, comarcas e freguesias com aldeamentos indígenas no final do século XIX. Fonte: ANTUNES (1994)166.

164

Ver: SILVA JR., A. B. Op. Cit. 2013.

165

ANTUNES, Clóvis. Índios de Alagoas: documentário. Maceió, EDUFAL, 1984, p. 126.

166

Mapa 2 – Mapa localizando os aldeamentos indígenas em meados do século XIX. Fonte: Mapa construído com base em ANTUNES (1994).

É possível observar no mapa e na tabela acima que dos oito aldeamentos extintos oficialmente em 1872, apenas dois deles sobreviveram na configuração do século XX:167 o de Porto Real do Colégio e o de Palmeira dos Índios. Os demais, seus habitantes foram incorporados às massas de trabalhadores dos respectivos municípios aos quais estavam vinculados territorialmente.

Como evidenciado, houve um silenciamento historiográfico, ou seja, a produção de documentos oficiais sobre os povos indígenas em Alagoas e em todo Nordeste, entre os anos de 1872, data da extinção oficial dos aldeamentos, até 1944 momento marcado pela presença do SPI com a implantação do PI Padre Alfredo Damaso e a implantação do PI Irineu dos Santos, em 1952:

O silêncio da historiografia e das ciências sociais com relação ao que aconteceu com essas populações depois do ato legal e fundiário da extinção dos aldeamentos era, ao mesmo tempo, a aceitação desse ato legal como realidade social e o compartilhamento da vontade que fundava esse ato, isto é, a de poder pensar o Brasil e os brasileiros, o Nordeste e os nordestinos de forma global e indistinta168.

Embora houvesse um silêncio historiográfico, demarcado oficialmente entre os anos de 1872 a 1926, sendo que respectivamente representava a extinção oficial dos aldeamentos e a presença do SPI no Nordeste, evidenciou-se que o cotidiano desses povos ficou marcado por intercâmbio entre os indígenas em Alagoas, Pernambuco, Sergipe e outros na Região. Os indígenas foram capazes de elaborar estratégias de sobrevivência projetando em ordem contínua diversos grupos que reivindicaram reconhecimento étnico nas primeiras décadas do século XX.

O período acima mencionado pode ser descrito também como da invisibilidade169 indígena, seja na historiografia ou nas Ciências Sociais, como também por parte dos indígenas como estratégia de sobrevivência física e sociocultural. As memórias socializadas e reelaboradas pela oralidade dos indígenas em Alagoas apontaram para os constantes contatos entre Pankararu, Fulni-ô, Kariri-Xokó e Xukuru- Kariri, por meio de visitas a parentes e de cunho religioso. Os inúmeros casamentos

167

Ver mapa na pagina 88 indicando os Municípios com povos indígenas em Alagoas na configuração oficial contemporânea.

168

ARRUTI, José Maurício Andion. Morte e Vida no nordeste indígena. Estudos históricos. Rio de Janeiro. vol. 8, n. 15, 1995, p. 70.

169“O Toré em surdina ilustrou uma das formas da estratégia da invisibilidade. As práticas ritualísticas,

dentre outros elementos, estruturam esta estratégia; mesmo em surdina, ele constituía importante componente na definição étnica para os índios e, inclusive, para os brancos que tentavam reprimi-lo” SILVA JR., A. B. Op. Cit. 2013, p. 32.

entre os grupos diferentes evidenciando uma estratégia de resistência. Foram princípios de mediação, quando:

Os caminhos que esses grupos percorreram no sentido contrário ao que tinham sido levados no final do século XIX; e, nesses caminhos, os pontos de contato que os diferentes processos de emergência mantêm entre si, numa rede de relações que tende ao regional. Uma das formas de colocá-los nessa perspectiva é dar destaque às figuras de mediação criadas para permitir a ligação entre eles e seus objetivos. Num exagero sociologicamente útil, poderíamos mesmo pensá-los como – na sua realidade de grupos instituídos como sujeitos políticos – produto dessas mediações170.

Por meio do ensino, a Educação Básica e o Superior, difundiram sistematicamente um ideário de indígena no passado, produzindo efeitos imediatos para esses povos em Alagoas, quando padronizou estereótipos que confundiu e negou a presença indígena na contemporaneidade. As escolas pareciam ter dificuldades em discutir propostas elaboradas para analisar os contextos nos quais estavam imersas, ao criar ideais futuros sem refletir sobre o presente e o passado. As comemorações sobre o Dia do Índio nas escolas indígenas e nas redes públicas de ensino privado, público estadual e municipais expressaram durante muito tempo e até recentemente uma ideia confusa sobre os indígenas.

A escola, até meados do século XX, estava voltada para construir um ser que combinasse com os pressupostos disseminados pelo ideário positivista e que atendesse as necessidades de um Brasil que se propunha homogêneo do ponto de vista psíquico/sentimental, mas sem que alterasse uma ordem política e econômica.

As necessidades de posse da terra, de acesso à saúde e à Educação escolar para atender a um tipo de economia de exploração no Brasil não foram inventadas pelos povos indígenas, mas construída a partir do contato com os europeus e africanos. Foi nesse sentido que entendemos o termo “necessidades”, considerando o espaço e o tempo inscritos historicamente. Essa relação é complexa e processual, que implicou em recuos, avanços, contornos, mudanças e reelaborações, mas sem perder de vista que as populações nativas fizeram “escolhas”, porém, às vezes, por imposições sociopolíticas:

Manifesta as contradições existentes entre os diversos princípios de estruturação e de organização, assim como as distâncias existentes entre os aspectos “oficiais” da sociedade e a prática social. É, efetivamente, por ocasião de tal conjuntura que se percebem com nitidez as incompatibilidades

170

e as discordâncias, os conflitos de interesses e os tipos de estratégia às quais podem recorrer os grupos e os indivíduos171.

Consideramos as necessidades do presente, do ponto de vista local e geral, como resultado das implicações relacionais que submetem um grupo a outro, mas motivam e provocam resistências. Nessa perspectiva histórica, social e temporal:

Na verdade, a História é mais precisamente o estudo do Homem no Tempo e no Espaço. De fato, as ações e as transformações, que afetam aquela vida humana, que podem ser historicamente consideradas dão-se em um espaço que muitas vezes é um espaço geográfico ou político e que, sobretudo, sempre e necessariamente constituir-se-á em espaço social172.

Tratamos de mobilizações e reivindicações dos indígenas ponderando as implicações dos termos, por pensarmos que as demandas são criadas pelo Estado brasileiro num processo relacional. E muitas vezes o que parece ser conquista pode significar retrocessos e perdas históricas para essas populações. O entendimento sobre os povos indígenas nos processos históricos necessita de cuidados com o relativismo extremo, sem negar a importância das especificidades étnicas dos povos indígenas, em Alagoas. Avaliar os ganhos que os Kariri-Xokó e Xukuru-Kariri tiveram a partir da presença da escola do SPI seria também necessário pensar nas perdas, o que não propusemos neste trabalho. “Importa recuperar o sujeito histórico que agia de acordo com a sua leitura do mundo ao seu redor, leitura esta informada tanto pelos códigos culturais da sua sociedade como pela percepção e interpretação dos eventos que se desenrolavam”.173

Os indígenas buscaram a assistência do SPI, porém a atuação de outros órgãos como a Igreja Católica Romana foi construída ao longo dos quase cinco séculos de História de contato e considerando as localizações dos Kariri-Xokó e dos Xukuru- Kariri, até 1872, ano que marcou a extinção oficial dos aldeamentos em Alagoas. Possivelmente as condições para a existência dos indígenas na primeira metade do século XX ocorreram também em função da capacidade desses povos de se reinventarem a partir das experiências nos aldeamentos do século XIX e por meio da utilização da estrutura do SPI favoreceu a recriação de “novas” formas de ser indígenas na segunda metade do século XX. A escola é parte integrante desse processo.

171

BALANDIER, Georges. A situação colonial. Disponível em:

http://www.revistas.usp.br/cadernosdecampo/article/viewFile/50605/54721. > Acesso em: 26 de jul. 2016.

172BARROS, José D‟Assunção. Espaço e História: reflexões sobre uma relação fundamental. Revista Fazendo História. Vol. 1 nº 01, 2008, p. 92.

173

MONTEIRO, John Manuel. Armas e armadilhas: História e resistência dos índios. In: NOVAES, Adauto. (Org.). A outra margem do Ocidente. São Paulo, Cia. das Letras, 1999, p. 237-249.

Em Alagoas, as experiências dos indígenas com a educação escolar desde o período colonial ocorreram com os religiosos nos aldeamentos o que produziu necessidades aos grupos aldeados de se relacionarem com o Estado e com a sociedade. Saber ler, escrever e contar foram consideradas necessidades básicas não só para os nativos, mas também para as massas, mesmo que o país pouco atendesse a esses princípios até quase o final do século XX, portanto o mesmo Estado que definiu esses imperativos, foi o mesmo que negou o acesso.

Concordamos com Almeida174 quando defendeu que atitudes dos índios em relação aos colonizadores não se reduziram à resistência aramada, à fuga e à submissão passiva, mas ocorreram diversas formas de resistências adaptativas nas quais os nativos encontravam formas de sobreviver e garantir melhores condições de vida na situação em que se encontravam. Seguindo essa perspectiva tratamos de um movimento processual e relacional em que indígenas, sociedade e Estado se constroem, mas não podemos perder de vista as diferenças de lugares na hierarquia política e econômica que ocupavam os nativos e as elites locais, sem desconsiderar as diversidades de povos e as várias formas de atuar frente ao projeto de unificação nacional em todos os períodos na História do Brasil. Para Almeida175, as formas de atuação dos indígenas ocorreram em várias situações: quando colaboraram com os europeus e integraram-se à colonização, quando aprenderam novas práticas culturais e políticas e souberam utilizá-las para a obtenção das possíveis vantagens de uma nova condição.

Os conflitos históricos resultantes dos contatos entre povos europeus, africanos e nativos, por mais de cinco séculos, no território brasileiro, especialmente, no Nordeste, configuraram no que os relatórios dos presidentes de províncias e outros documentos oficiais, repetitivamente, classificavam os indígenas, em Alagoas, como “misturados” ou “caboclos”. Desde meados do século XIX os discursos e práticas na Província de Alagoas apontavam esses caminhos, como demonstrou, em 1871, José Bento da Cunha Figueiredo Junior:

Em nenhuma delas existem, hoje, Índios propriamente dito. O que há são muitos que prestam serviços em estabelecimentos rurais, quando não viviam entregues à ociosidade. Protegidos pelo regulamento de 24 de julho de 1845,

essa raça mestiça é isenta do recrutamento e da Guarda Nacional.176

174

ALMEIDA, Maria Regina Celestino de. Os índios na História do Brasil. Rio de Janeiro, FGV, 2010.

175

Ver: ALMEIDA, M. R. C. Op. Cit. 2010.

176“Relatório lido perante à Assembleia Legislativa da Província das Alagoas no ato de sua instalação em

3 de maio de 1971 pelo Presidente da mesma o Exmo. Dr. José Bento da Cunha Figueiredo Júnior. Maceió, Typografia Commercial de Antônio José da Costa, 1871”. ALMEIDA, L. S. Op. Cit. 1999, p. 78.

Essa categoria “misturados”, na visão dos presidentes da Província, estaria distante das origens étnicas e ainda confundidos com as massas de trabalhadores alagoanos. Em períodos posteriores, como no século XX, ao tratar do SPI, Oliveira177 lembrou que o órgão indigenista, sempre manifestou seu incômodo e hesitação em atuar junto aos “Índios do Nordeste”, justamente por seu alto grau de incorporação na economia e na sociedade regional.

No Nordeste, contudo, os “Índios” eram sertanejos pobres e sem acesso à terra, bem como desprovido de fortes contrastividade cultural. Era uma área de colonização antiga, com as formas econômicas e a malha fundiária definidas há mais de dois séculos, órgão indigenista atuava apenas de maneira esporádica, respondendo tão-somente às demandas mais incisivas que recebia. Mesmo nessas poucas e pontuais intervenções, o órgão indigenista tinha de justificar para si mesmo e para os poderes estaduais que o objetivo de sua atuação era definitivamente composto por “Índios”, e não por meros “remanescentes”178.

A história dos indígenas no Brasil se aproxima no tocante à resistência desses povos aos projetos de inserção à sociedade nacional. As dinâmicas e as estratégias foram específicas para cada povo. Nessa perspectiva, discutir os indígenas no Nordeste é pensar a partir de especificidades históricas que ocorreram desde o Brasil colonial, sem negar as políticas nacionais como tentativa de homogeneização. O SPI tinha um projeto homogeneizador, porém o cotidiano de cada Posto conduziu a resultados também diferentes para cada situação. O que se tornou evidente, no Nordeste, foi o crescimento populacional de indígenas assumindo uma identidade étnica específica durante e posterior à atuação do SPI, mas também a construção de políticas de dependências e de produção da pobreza.

Torna-se oportuno apresentar ações efetivas do Estado com o propósito de transformar, homogeneizar e confundir os indígenas com a massa trabalhadora para a execução de tarefas de menor valor na escala social. Estava em disputa não só a posse das terras, mas também, os elementos que construíam signos e significados para manter e reproduzir formas de poder econômico, político e cultural que conviesse às elites agrárias locais. Poderíamos supor que não só o trabalho no campo foi desenvolvido com a mão de obra indígena, mas também o mercado de empregos domésticos, da construção civil, de pequenos estabelecimentos comerciais nos municípios vizinhos com localidade habitadas por indígenas como, por exemplo, Palmeira dos Índios e Porto Real do Colégio.

177

OLIVEIRA, J. P. Op. Cit. 2004, p. 19.

178

A escola tinha a tarefa de formar as massas para ler, escrever e contar como condição básica. Mas, além dessas funções, tinha também que transmitir os códigos culturais para viver numa sociedade/nação “civilizada”, capitalista e cristã. Não haveria emprego numa casa urbana para indígenas sem que possuíssem os valores de convivência necessários para “cuidar” de crianças e jovens, sem que soubessem se “comportar” devidamente como “cidadãos cristãos”. As atividades desempenhadas em diferentes locais de trabalho como mercearias, padarias e mercadinhos necessitavam de formação mínima para identificação, armazenamento de produtos, lidar com dinheiro, como também para convivência com funcionários, patrões e clientes.