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Conflitos na família pelo direito de participar – a força da fé

4.3 A PARTICIPAÇÃO DAS MULHERES POBRES NA IGREJA DE GOIÁS

4.3.1 Conflitos na família pelo direito de participar – a força da fé

As mulheres que acolheram o apelo da Diocese para essa outra prática da vida de fé, tinham que enfrentar primeiramente a tradição cultural machista, isto é, o pensamento que o “lugar de mulher é em casa”; que mulher não poderia viajar e ficar dias fora, longe do marido, dos filhos e dos seus afazeres domésticos.

A luta contra tal tradição cultural seria travada primeiramente no âmbito da própria casa, no enfrentamento da família. Além do afrontamento doméstico, elas teriam que lutar contra a sociedade patriarcal.

Essa luta contra o poder machista patriarcal, foi combatida, primeiramente em nome do próprio Deus, diferenciando das feministas norte-americanas e européias que nestes mesmos anos lutavam contra a sociedade machista em nome das igualdades de direitos entre homens e mulheres. Sobre essa luta das mulheres na Diocese, Dom Tomás (Anexo 4 apud SCOLARO, 2001) diz:

É uma presença diferente, não na linha do feminismo, esse feminismo nunca pegou aqui, esse feminismo numa linha européia, primeiro mundista que cria uma classe e luta por ela, reivindica espaço, que tem suas vantagens, inclusive na leitura da Bíblia, releitura eclesial, eclesiológica. Tem muitas teólogas mulheres. Mas aqui, no nosso chão a coisa caminhou no sentido da libertação, e a mulher foi mais protagonista do que o homem (Dom Tomás Balduíno).

Distante dessas idéias feministas, as mulheres interioranas de Goiás começavam uma luta contra a dominação dos homens, principalmente os da própria família. A fé e a relação com o Divino deveriam prevalecer sobre qualquer coisa, até

mesmo sobre o marido. Nenhum empecilho que as atrapalhassem em “amar a Deus sobre todas as coisas”, como manda o primeiro dos “Dez Mandamentos da Lei de Deus”. Em nome de Deus elas desobedeciam e enfrentavam o marido, como fez Dona M. R. (Anexo R):

Ah! De premeiro os zome era muito ignorante. Muié de premeiro era feita dessa aí pra lá [se referindo ao caso de uma outra mulher]. Mas, por causa da Igreja, eu passava de lá pra qui, daqui eu ia lá embaixo. E não me segurava não, uai. Eu falava, quando nós casou, desde quando nós casou, é rezando, é pegando com Deus. [...] Que agora tá assim. A gente tem muita fé em Deus (M.R. Anexo R).

Entre as mulheres entrevistadas, a maioria afirmou que teve conflitos em casa e na sociedade por causa da participação na Igreja de Goiás. Mesmo aquelas que afirmaram a ausência de tais conflitos em casa, tiveram problemas fora de casa e conheciam outras mulheres que passaram por situações semelhantes, principalmente com os maridos. Elas consideravam que os maiores conflitos se davam no interior da própria família.

As formas desses conflitos domésticos variaram desde conflitos verbais até agressões físicas: discussão com o marido, com os filhos, pais ou parentes mais próximos; a falta de diálogo por parte do esposo; a proibição do esposo ou pai com intimidações; a negação do pai ou esposo em fornecer recursos necessários para a sua participação nas atividades religiosas, como dinheiro ou alguma coisa de casa; agressões morais e físicas, principalmente por parte do marido; humilhações em público pelo marido; ameaças e separação do casal. Exemplificar-se-á alguns casos:

Dentro da minha própria casa, a minha família, inclusive até hoje, é que eles têm muita contradição ainda comigo, porque, tem uns que não aceita. Eu mesma com meu esposo. Teve um dia que eu dormi até mesmo do lado de fora. Não sei as segundas intenções. Ele fala que não. Ele falava que não, foi porque não acordou. Mas aí eu disse que não ia deixar. Eu estava participando

da comunidade e cheguei mais tarde. E eu peguei e falei pra ele, que aquele motivo não era motivo para eu desistir. Que aí é que eu ia ser mais forte, sabe? É, e eu nunca, obstáculo que eu já tive, assim, com família, com amigos, nunca fez eu perder a fé e a esperança nesse novo jeito de ser Igreja. E cada dia mais eu me apaixono e eu vejo a maneira certa de fazer o reino de Deus crescer nesse mundo, é dessa forma: fé e política junto (A. S. N. Anexo N). Meu pai teve muita dificuldade de aceitar. Meu pai era muito ligado aos políticos assim de direita. A gente tá falando da década de 70. Aqui já foi muito forte a Ditadura Militar [...]. E às vezes com o Tião mesmo, às vezes tinha hora que ele ia prun lado; outra hora ele voltava, regredia. Ele achava muito estranho a participação da mulher tão direta, tá na frente das coisas. Isso trouxe muito conflito pessoal pra nós. E às vezes ele chegava a dizer que eu tinha de optar. E eu falava que eu optava pelos dois. (risos) E seguia, com certo conflito, sofrimento, mas com opção muito forte. Pra mim, foi uma coisa assim, no fundo do coração, da alma, da razão. Eu mergulhei mesmo (P. M. C. G. Anexo T).

Nesse dia foi uma confusão danada quando foi pra sair. Quando a gente sai daqui, eu, Adésio, Alzira, Nilza e a Geralda. Passamos na casa do marido da Geralda pra pegar ela. E o véi veio na porta, mas bravo. E ela falou assim: ‘Eu vou, e eu vou, você não tem nada com isso. Eu arrumei minhas coisas, deixei tudo arrumadin, e eu vou’. Aí ele falou: ‘Você escolhe’! ‘Eu não sei, eu vou. Agora quando eu chegar, se deu certo deu, se não, deu’. E logo eles se largaram. Foi por conta dessas coisas ( J. A. S. Anexo P).

O enfrentamento da mulher contra o machismo para sair de casa constitui portanto, o primeiro grande passo no processo de emancipação feminina na Diocese de Goiás. No caso das operárias, esse processo se deu por meio da conquista do mundo do trabalho, da profissionalização. Assim escreveu Muraro (1970) tratando do século XX e as revoltas das mulheres:

Nas diversas etapas de sua revolta a mulher também vai conquistando os domínios então considerados ‘terrenos sagrados do homem’: em primeiro lugar, sai de casa, adquire competência profissional e invade o mundo do trabalho (MURARO, 1970, p. 30).

Diferente das operárias, as mulheres pobres da Diocese de Goiás começaram a sair de casa, por meio do espaço religioso oferecido por esta outra forma pastoral diocesana. Na Diocese de Goiás dos anos de 1970 e 1980 as mulheres foram

convocadas para atuarem na Igreja e no mundo. Sendo que, para responder a fé na Igreja, elas tiveram que lutar dentro da própria família para ganhar seu direito de ir e vir, o direito de participar. E para essas mulheres isso foi uma conquista, uma “libertação”, como se percebe nos sentimentos expressos por J. A. S. (Anexo P) e N. P. A. (Anexo S):

Teve muito. Meno eu sei que me libertei, posso dizer. Assim, eu faço meus deveres tudo, mas tudo eu não deixo também não, porque sei daquela palavra que Jesus disse, ‘quem quiser ser meu discípulo tem que deixar pai, mãe, família, casa, campo’. Tudo, né? E a gente sabe que não é deixar, abandonar tudo aquilo. Mas é naquela hora que você tem que fazer aquele trabalho. Naquela hora é sagrada, pra gente fazer aquilo. Adispois a gente resolve as outras todas (J.A.S. Anexo P).

Eu acho que isso é libertação. Só você se libertar, saí de dentro de casa. Você tá dentro de casa, ali, com vontade de caminhar, de participar de alguma coisa. Você não participa, porque você não pode, porque tem problema. Logo você conseguiu, você se libertou, não é não? Eu, eu me libertei (N.P.A. Anexo S).

Conquistado o direito de sair de casa sozinha para ir às atividades da Igreja, restava ainda muitos outros direitos a serem conquistados. Passando da luta do plano mais pessoal, familiar, as mulheres foram lutar por outros direitos. Organizadas com outras companheiras e companheiros da caminhada, reivindicaram direitos sociais.

A libertação na nossa caminhada, eu só digo que a gente só se liberta mesmo, de verdade, que estão libertado, quando houver dignidade. Quando acabar a exclusão, num é mesmo? Tudo isso né? O preconceito, quando todas... a gente se libertar mesmo, lutar nessa caminhada e vê que nós temos mesmo uma vida digna, vê os trabalhadores que têm vontade de conseguir o seu pedacin de chão. Que tiver o seu pedacin de chão, trabalhando, colhendo ali o pão de cada dia pra seus filhos. Essa que é a libertação total, não é? Eu creio que sim. Por isso que eu digo, tem vários tipos de libertação! (N. P. A. Anexo S).