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Conflitos no território: demarcando posições, reconfigurando a rede

Antes de se dispor a estrutura de posições dos atores na rede territorial, apresenta- se aqui uma análise sobre os conflitos no território. Isso se refere à natureza das relações. Os conflitos são processos políticos que demarcam posições na rede e definem as oposições e os atores em disputa. Tratar dos conflitos é essencial para entender a mudança

das configurações da rede, pois decorre deles as alianças e as separações e, como visto no resgate histórico, os conflitos têm sido o principal fator de inflexão na trajetória do desenvolvimento e na alteração da morfologia da rede.

Percebe-se que a literatura produzida na tentativa de explicar as dinâmicas de desenvolvimento territorial marginaliza os conflitos. A literatura sobre redes sociais ou interorganizacionais também torna velada a importância dos conflitos, principalmente por focalizar a estrutura e dar a ela proeminência sobre a ação. Conflitos têm a ver com poder e concorda-se com Foucault (2000) que o poder é relacional, ou seja, faz parte das relações sociais e não é objeto de uma pessoa ou grupo, afirmando uma perspectiva eminentemente interacionista e dinâmica do conflito e de sua interface com as mudanças morfológicas da rede.

Para Fligstein (2003; 2007), desvelar a dimensão política das redes é tarefa essencial para qualificar as análises nesse campo de estudos. O autor trabalha, como mencionado anteriormente, com a noção de enraizamento político das ações. Para o caso aqui em estudo já se evidenciou questões primordiais sobre essa dimensão política, desde a atuação da Igreja Católica ao “racha sindical” e as disputas por recursos no Colegiado do TSB. Com as análises até aqui e as que se seguem sobre essa questão da conflitualidade, procura-se ressaltar o estatuto político da rede e do processo de desenvolvimento territorial.

Alguns dos principais elementos de conflito já foram explicitados, como a legitimidade da representação sindical dos trabalhadores rurais na Zona da Mata entre Fetaemg e Fetraf, as diferenças ideológicas acerca da extensão e do desenvolvimento rural entre CTA e Emater, e as disputas internas no Colegiado para aprovação de projetos. Todas estas questões foram e ainda são importantes para compreender as configurações da rede e os rumos da política de desenvolvimento territorial no TSB. Os fragmentos de entrevistas que se seguem deixam clara a natureza conflitiva das interações no TSB:

[...] Era uma briga mesmo. O que tinha era uma guerra fria no Colegiado para disputa de poder, de alianças. (Representante de organização da sociedade civil, 2014)

Hoje eu vejo de fora... porque dentro eu sofri muito. Porque a gente era muito combatida por ser entidade pública. Fizemos parte de tudo, participei de tudo, da brigaiada toda. Mas não demos conta e nos afastamos. (Representante de organização do setor público, 2014)

A intenção aqui não é afirmar que as relações entre os atores do TSB se encerram em conflitos. Aqui se destaca a proeminência dos conflitos para se entender a trajetória do desenvolvimento, porque eles são condicionantes diretos da natureza das relações e da forma como elas se estruturam. Assim, apesar de haver cooperação entre as organizações e a realização de ações conjuntas entre elas em diferentes temáticas e situações, os conflitos demarcam as estratégias e conduzem os processos de mudança institucional, como se verá em capítulo posterior dedicado à dimensão institucional. Esse foco analítico tem aderência à proposta teórica de Murdoch (2000), que afirma que mudanças nas redes sociais de um território, seja com a alteração de posições ou na coesão interna por meio do conflito, conduzem a mudanças sensíveis na maneira como os atores se relacionam entre si e como elaboram, aprovam e implementam seus projetos de desenvolvimento ao longo do tempo.

Nos próprios depoimentos acima se percebe a declaração do entrevistado de que, como representante de uma organização do setor público, enfrentou muitos conflitos e disputas contra sua organização e, apesar da sua resistência, decidiu se afastar a si e a sua organização do grupo central que operacionaliza o PRONAT por conta desse processo. Reside exatamente aí um dos principais motivos de desvelar as relações políticas subjacentes à política pública, que é a formação de coalizões, a aproximação e o afastamento de atores dessa rede, que reflete diretamente em mudanças do lugar que ocupam nessa estrutura. Estas relações explicam as alterações históricas da configuração da rede territorial operada pela ação dos atores e não pela prescrição normativa do Estado ou de outras instituições.

Um dos principais conflitos operados no TSB, aquele sobre a tomada de decisão referente ao território e os recursos do PRONAT, por tempo considerável foi norteador do processo. Ao longo do tempo essa dinâmica política demarcou a configuração da rede. O depoimento do representante de uma organização do setor público a seguir explicita como ele representava seus opositores e o reflexo dessa oposição para sua participação no Colegiado:

O grupo do CTA, que era aliado aí da Fetraf, eles entravam nas reuniões, assim, eram bem organizados. Então nós tínhamos muita dificuldade com isso. Perdíamos as votações todas, porque eles tinha essa articulação deles aí. [...] e eles eram nossos opositores, nos tratavam com muita diferença, com muita desconfiança. Se achavam mais cidadãos, mais legítimos. [...] Nós não tínhamos

uma localização bem definida em algum dos grupos, mas sabíamos quem era “do contra”. (Representante de organização do setor público, 2014)

O entrevistado também faz observação sobre sua “localização” na rede do território. Ele reafirma a existência de grupos, dos quais sua organização não faz parte, e sinaliza um deles, o “grupo do CTA”, “aliado à Fetraf”, e como ele operava articuladamente para aprovar projetos. Isso reforça a análise anterior sobre o estatuto político dessa rede que sustenta o TSB. Tais conflitos e como as relações e os atores são representados acabam por definir o posicionamento de uma organização na rede. Sabendo quem são os grupos, quem são os opositores diretos (os “do contra”), os embates travados, os representantes de uma organização também se posicionam e vão configurando a rede com suas decisões/ações.

Um conflito com ressonância direta sobre a configuração da rede no TSB é o já mencionado enfrentamento por disputa de legitimidade e de projetos ideológicos entre CTA e Emater. Estavam em jogo nesse conflito concepções de desenvolvimento, de lugar dos agricultores e de lugar dos técnicos na extensão rural. Como apresentado em capítulo anterior, estas duas organizações foram protagonistas na constituição do TSB, liderando o processo de formação do Codeter. Foi exatamente aí, na definição sobre a composição do Colegiado, que se iniciou de maneira mais explícita o embate histórico entre elas. A Emater advogava a inserção dos CMDRSs no Colegiado como representantes legítimos da sociedade civil, enquanto o CTA defendia que essa representação deveria ser dos STRs. Cada um defendia a inserção de atores com os quais tinham mais afinidade e proximidade e dos quais se julgavam interlocutores, buscando uma composição favorável a sua atuação e que tinha maior alinhamento a seus projetos. Isso fica claro no relato de um representante de organização do setor público: “os CMDR era instituições cooptadas pela Emater e dominadas pelas prefeituras e muitos sindicatos seguiam era o CTA”. Assim, além de uma disputa ideológica, isso representava também uma disputa de poder.

Porém, apesar dos CMDRSs serem o operador inicial do Pronaf infraestrutura, que deu lugar ao PRONAT, eram organizações pouco politizadas, com um vínculo direto e praticamente subordinado às prefeituras. Esta é, inclusive, uma crítica generalizada sobre esses conselhos, que tinham uma atuação bastante pontual e instrumental (ABRAMOVAY, 2001). Já os STRs, pela trajetória histórica de luta e formação política, tinham uma atuação mais autônoma, interferindo mais diretamente nessa decisão, inclusive porque faziam parte

dos CMDRSs. Associados ao pleito do CTA, os STRs contribuíram efetivamente para que a proposta da Emater, que tinha apoio das prefeituras, fosse rechaçada, excluindo a possibilidade dos Conselhos Municipais terem cadeira no Colegiado e garantindo que os sindicatos tivessem sua representação. O relato do representante de um dos STRs explicita a mobilização a favor do CTA e contra a Emater e suas propostas.

A Emater é do Governo e não estava em nenhum grupo desses sindicais. Ao contrário, a gente tinha era um embate ferrenho com eles, porque eles queriam abraçar tudo. E pra eles não ficarem mais fortes que nós e conseguirem abraçar tudo, a gente se unia também contra eles. (Representante de organização da sociedade civil, 2014)

Como constatado em campo, esse processo gerou um desgaste intenso para o CTA e para a Emater. Seus representantes travaram embates em diversos momentos, que refletiram em disputas não apenas pela composição do Colegiado, mas se estendeu a todas as formas de manifestação no âmbito do PRONAT, assim como mencionado no depoimento acima e em depoimento de outro representante de uma organização da sociedade civil: “sempre teve rincha entre Emater e CTA. O território seguiu, mas você vê que até hoje é indigesto”. Essa remissão aos dias atuais se refere aos desdobramentos desse conflito. Pelo desgaste da Emater e as dificuldades que enfrentou, sem êxito em nenhuma proposta, a organização se afastou do Colegiado, atuando de forma bastante periférica e pontual com seus escritórios locais em cada município. Além disso, reconhecendo a existência de grupos internos no Colegiado e sabendo da liderança do CTA em um desses grupos, a Emater se aproxima mais do grupo oposto, reconfigurando essa rede.

Esta questão é de extrema relevância, já que evidencia como os conflitos reconfiguram as redes. A Emater, que era uma organização central, com atuação em todos os municípios do território e liderança na sua constituição, se viu fragilizada diante dos embates de uma oposição bem articulada, se afastou do processo e se tornou uma organização marginal na rede. Como consequência disto, os CMDRSs sequer passaram a figurar como atores nessa rede, e se ampliou o destaque dos STRs e a centralidade do CTA. As prefeituras, que tinham pouco engajamento, se mantiveram em sua posição.

Os depoimentos a seguir relatam de maneira mais direta a decisão de excluir os CMDRSs desse processo, base do conflito, e parte da mudança de configuração da rede:

Os CMDR ficaram alijados do processo de desenvolvimento territorial. Porque alguém falou que isso não devia acontecer, e aí colocaram só os sindicatos e as ONGs. (Representante de organização do setor público, 2014)

[...] Os conselhos [CMDRSs], os caras que participavam dos conselhos municipais foram formados, capacitados, e poderiam contribuir para uma proposta que conjugasse toda essa organização que vinha sendo trabalhada na região. Aí não teve muito jeito. Os municípios ficaram muito desarticulados né, as prefeituras, e ficou uma briga aqui dentro por dinheiro, pela questão ideológica. Era, assim, muito polarizada a discussão, em torno das ONGs principalmente. O que ressaltou nossa dificuldade de dialogar com eles. (Representante de organização do setor público, 2014)

Além disso, e por influência dessa dinâmica de conflitos e das articulações internas ao Colegiado, observa-se certo distanciamento entre as organizações da sociedade civil e do setor público, principalmente entre os sindicatos e as ONGs a eles ligados e as prefeituras (exceto aquelas cujos gestores são oriundos do movimento sindical). Essa divergência ganha outros tons no âmbito da política territorial com a existência do Colegiado, em que ambos os atores se encontram, e nas disputas por recursos do Proinf, em que eles dificilmente convergem em propostas comuns.

A entrevista a seguir relata essa divergência e apresenta um episódio importante no processo de desenvolvimento territorial, que influenciou diretamente a configuração da rede:

[...] Aí sentava [no Colegiado] para conversar sobre os projetos do território, e cada organização chegava com quem tinha as capacidades de articular e angariar votos para seus projetos, mas ficava naquelas disputas entre grupos, e as organizações que não tinham nada a ver com isso [prefeituras] é que nadavam de braçada e aprovavam alguns projetos, e aí chegamos a aprovar projetos que contribuíam até pouco para o território. Mas quando o movimento sindical se tocou que nós estávamos era perdendo com esse conflito todo, nós sentamos, articulamos uma reunião para nós sentarmos e vermos os prejuízos que nós estávamos tendo. (Representante de organização da sociedade civil, 2014)

Como relatado, em determinado momento, as organizações sindicais e as ONGs a elas associadas perceberam que o embate entre eles estava, na verdade, favorecendo outros atores que tinham propósitos diferenciados daqueles empreendidos pelo movimento político da agricultura familiar, que eram as prefeituras, que cada vez mais ganhavam espaço dentro do Colegiado. A reversão deste quadro se deu em uma das reuniões de construção do regimento interno do Codeter quando os representantes dos sindicatos e de

algumas ONGs se reuniram isoladamente, por iniciativa do representante do CTA, para discutir os prejuízos das disputas internas do movimento sindical dentro do Colegiado e o avanço das prefeituras. Essa reunião foi esclarecedora sobre aquele contexto e as ações que deveria ser realizadas, assim como diz um dos entrevistados que participou deste momento:

A gente foi para uma sala, e fizemos uma rodada, uma análise de conjuntura... e foi falado mesmo, ‘pessoal, ó, o inimigo não está aqui nessa sala, o inimigo esta lá fora, só esperando a gente se dividir, pra ver a gente se digladiando e eles, né, abocanhar esses projetos, esses recursos’. (Representante de organização da sociedade civil, 2014)

A partir dessa “análise de conjuntura” essas organizações efetuam um “pacto velado” de sempre apoiarem projetos protagonizados por organizações da sociedade civil e reduzirem os conflitos internos entre elas, definindo como opositores (“inimigos”) as prefeituras, que, na maioria dos casos, não mantinham alinhamento com as perspectivas do movimento sindical. A polarização entre as federações sindicais, que delimitava grupos distintos e divergentes dentro da própria sociedade civil, não é desfeita, mas passa a ser relativizada, amenizando os embates e direcionando-os para as prefeituras, que passaram cada vez mais a não se engajarem na política, ou se viram cada vez mais afastadas do centro de discussão26.

Mais uma vez se percebe um “movimento” na rede, uma mudança em sua configuração, ou seja, na posição dos atores e na natureza das relações entre eles. Esses conflitos são inerentes a esse tecido social sobre o qual se constituiu o território, possuem um lastro histórico e ressoam no processo de desenvolvimento territorial. Essa análise, que destaca a agência como fonte de mudanças, possibilita afirmar que as redes sociais não podem ser interpretadas como estruturas totalmente institucionalizadas e estáticas, mas dinâmicas e fluidas porque recorrentemente atualizadas.

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Isso não acontece apenas e isoladamente pelo fato de as organizações da sociedade civil se articularem e fortalecerem seu segmento em detrimento do avanço das prefeituras. O engajamento das prefeituras, como se verá em outro capítulo, está relacionado também à própria dinâmica da gestão pública municipal, transitória e imediatista, e também ao perfil dos gestores, que muitas vezes não possuem inserção e conhecimento (e por isso não se interessam tanto) sobre desenvolvimento da agricultura familiar, foco do PRONAT.