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Processos sociopolíticos subjacentes à alocação de recursos no TSB

Parte-se aqui da análise do processo de alocação de recursos, não do ponto de vista operacional acerca da elaboração e viabilidade dos projetos territoriais, mas sociopolítico, concernindo às articulações internas e estratégias que extrapolam as prescrições institucionais e que condicionam os investimentos governamentais por meio do Pronat. Uma descrição sumária da operacionalização da política é importante, em primeiro lugar porque a operacionalização, do ponto de vista instrumental, é operada a partir de mecanismos participativos de tomada de decisão para alocação de recursos, realizado especificamente neste caso via os projetos territoriais. E em segundo lugar, porque o lócus de realização é o colegiado, um espaço coletivo, onde se manifestam as coalizões e seus interesses conflitantes.

Os projetos territoriais, de acordo com as orientações do PRONAT, podem ser divididos em duas modalidades: custeio e investimento. A primeira, de forma geral, está relacionada a aquisições e gastos que não visam à formação de patrimônio, por exemplo: reformas, reparos, ações de capacitação e materiais correntes. Já a segunda, de forma contrária, são gastos que têm a intenção de formação de patrimônios, como a aquisição de veículos, equipamentos e edificações24. Os projetos devem se enquadrar nos eixos definidos pelo PTDRS, priorizados com base nas demandas sociais, econômicas, culturais e ambientais do território, visando garantir que estejam alinhados e respondam às demandas e propostas elencadas pelos atores sociais (FREITAS, 2011).

Devido às exigências fiscais e contratuais do Governo Federal para a execução dos projetos, desde 2004 as prefeituras foram definidas como órgãos proponentes em todos os projetos da modalidade investimento, apesar de muitos projetos serem essencialmente pensados e elaborados pelas organizações da sociedade civil do TSB. Percebeu-se, ao longo da pesquisa, que cada município, com diferentes formas de articulação entre suas organizações da sociedade civil e do setor público, apresenta seu pleito para captar os recursos, mas que existe uma discrepância evidente entre os montantes captados por cada município.

Freitas (2011) analisou os projetos territoriais do TSB até o ano de 2010, quando o governo brasileiro passou pela transição presidencial, com a presidenta Dilma Roussef substituindo o presidente Lula. De 2010 até meados de 2013, os territórios de identidade ficaram praticamente paralisados em termos de acesso a recursos, levando a uma séria desmobilização dos atores sociais, período este comumente chamado de “parada da política”. Segundo o referido trabalho, neste período o município de Araponga foi o que mais conseguiu captar recursos no território, seguido de Miradouro, ou seja, são estes os municípios que mais aprovaram projetos no TSB. Como se vê na Tabela 2, estes municípios alcançaram um montante de recursos bem superior ao captado por outros municípios do território:

24 Não necessariamente em todos os anos de implementação do PRONAT houve recursos de investimento e de custeio disponíveis. Essas modalidades se alternaram, sendo mais frequente a modalidade de investimento.

Município Total de recursos (R$) Percentual Araponga 1.391.902,42 29,12% Miradouro 1.040.700,45 21,78% Rosário da limeira 612.777,00 12,82% Ervália 547.084,73 11,45% Divino 404.304,00 8,46% Fervedouro 358.676,03 7,50% Muriaé 337.760,99 7,07% Pedra bonita 86.000,00 1,80% Sericita 0 0 Total 4.779.205,62 100%

Tabela 2: Volume de recursos contratados por município entre 2003 e 2010 pelo PRONAT no TSB. Fonte: Adaptado de Freitas, Dias e Freitas (2013).

Esta discrepância visual em muitas análises poderia ser apenas uma constatação, um mero dado da execução, ou apenas indicar que os dois municípios mencionados foram tecnicamente mais eficientes na proposição de seus projetos e fizeram jus a suas competências em relação aos demais. Entretanto, essas afirmações beiram a superficialidade do processo, que não se refere apenas a uma dimensão técnica, mas também, sobretudo, a uma dimensão política. Isso se deve ao próprio desenho institucional da política, que cria o Colegiado e a dinâmica, supostamente democrática, de alocação de recursos por meio da apresentação individual de projetos e rodadas de priorização, em que eles são votados e aqueles que possuírem maioria de votos são aprovados. É a partir deste processo que se compreende a execução da política e como ela é condicionada à dinâmica das interações sociais.

Algumas questões do contexto explicam esses dados e dão indícios sobre a configuração da rede territorial e como essa dinâmica de seleção de projetos está a ela condicionada. Uma das questões identificadas nas entrevistas para explicar a discrepância na alocação de recursos, também apontada por Freitas (2011), é que a sede da Secretaria do TSB foi instalada nos primeiros anos em Araponga, com apoio do CTA e, posteriormente, devido ao interesse de organizações do território, foi transferida para Miradouro, apoiada

pelo Ceifar, situação que ocasionou maior circulação de informações naqueles municípios. O articulador territorial ficava sediado no município que abrigava a Secretaria, e é nessa instância, personalizada na figura desse articulador, que se centralizava todas as informações do território e que em boa medida faz o intermédio com a SDT/MDA e suas instâncias estaduais. Esse fato, portanto, lhes garantia maior circulação de informações e manutenção de relações de proximidade com o articulador, que ajudava a elaborar projetos, sendo este um fator de distinção destes municípios em relação aos demais na proposição de projetos.

A existência da Secretaria em um município contribuia para amenizar também outra questão, que interferia na proposição de projetos pelos municípios: a grande burocracia exigida para formular e depois gerenciar e prestar conta dos projetos seleciona grupos e organizações que possuem maior capacidade técnica de operacionalizar recursos do programa. Isso desestimula muitas organizações, pela falta de experiência e de pessoal capacitado, e acaba reforçando relações de poder preexistentes. Neste caso, atores que possuíam maiores competências e conhecimentos sobre os processos burocráticos, ou que tinham assessoria mais contínua para isso são, normalmente, aqueles que propunham mais projetos e captavam mais recursos. Esse foi o caso de Araponga, assessorado pelo CTA, que tinha vasta experiência com projetos. Portanto, a burocracia é um elemento de seletividade da política de desenvolvimento territorial do MDA e que leva à centralidade de certas organizações na rede.

Existe também outro fator importante para a aprovação dos projetos, bastante mencionado, que é o seu objeto de investimento. Como se percebeu, a maioria dos projetos aprovados mantinha cunho municipal, até mesmo pelas características da política, que definia que os investimentos de um determinado projeto só poderiam ser realizados nos limites geográficos do município proponente. Porém, aqueles projetos que, apesar de serem investimentos realizados em apenas um município, conseguiam alcançar uma dimensão territorial, sem restrição municipal, alçavam maiores níveis de aprovação interna no Colegiado. Esses projetos são aqueles que Cazella, Bonnal e Maluf (2009) identificaram como iniciativas de superação da municipalização do desenvolvimento e que tem maior potencial para incorporarem as dinâmicas locais.

O caso de Araponga se insere aí. Nesse município, a EFA foi o objeto de maior investimento e conseguiu maiores apoios fora do núcleo de parcerias diretas do STR. A

implantação da EFA Puris em Araponga representava para o território a primeira escola com Ensino Médio nos modelos da educação do campo por alternância e, apesar de ser localizado neste município, seria aberta para matrícula de qualquer jovem interessado, priorizando aqueles vindos de municípios do TSB. Outro tipo de projeto comumente considerado territorial é o investimento na estruturação das cooperativas de crédito solidárias, que representam para o território a expansão de um modelo alternativo de organização financeira focada na agricultura familiar.

Entretanto, não bastava apresentar projetos nessa perspectiva. Isso era apenas um fator, e ainda condicionado a outro julgado como tão importante quanto a qualidade dos projetos: o envolvimento e interesse da prefeitura, já que ela deveria ser proponente e facilitar posteriormente a transferência dos bens em regime de comodato para a organização da sociedade civil mediadora. Nesse sentido, uma organização da sociedade civil poderia até ter um excelente projeto apresentado, mas sem o apoio da prefeitura e seu alinhamento com as organizações da agricultura familiar ele seria inexequível e, se realizado, correr-se-ia o risco de apropriação pelo ente público para outros fins. O alinhamento e parceria estabelecidos entre as organizações da sociedade civil e a prefeitura nos municípios que pleiteavam projetos no TSB, portanto, era uma questão pertinente para captação de recursos; e esse foi o caso de Araponga e de Miradouro, que, no período analisado, tiveram na administração municipal (prefeito e/ou vice-prefeito), pessoas diretamente ligadas ao movimento sindical. O depoimento a seguir esclarece sobre esse alinhamento e seu papel na aprovação de projetos.

[...] eu vejo que o poder público local contribui bastante. Porque o poder público de Araponga tinha uma inserção boa com o movimento social no local que ajudava muito a isso. Porque o recurso tinha que ser passado via prefeitura, e era um período que eles estavam bem azeitados, a prefeitura e o movimento sindical. E aí isso ajudou muito Araponga. Miradouro foi assim também. Tiveram muito recurso. (Representante de organização da sociedade civil, 2014)

Além de o território ser representado como projeto de maior potencial devido a essa articulação direta entre sociedade civil e poder público, as organizações proponentes nestes casos vão ganhando maior experiência e legitimidade para esses municípios, o que facilitava a aprovação de novos recursos. Em contraposição, havia municípios com bastante dificuldade em aprovar projetos, apesar do número considerável de projetos que apresentavam. Ervália é um desses. Assim como Araponga, eles tiveram investimentos

para uma EFA. A EFA Serra do Brigadeiro em Ervália mantém apenas o Ensino Fundamental, e foi implantada inicialmente com recursos do Proinf antes da criação do PRONAT, e, posteriormente, conseguiram também recursos do PRONAT/TSB para complementar os investimentos iniciais. Esse município apresentou também projeto para expansão da EFA ao Ensino Médio, como fez Araponga, mas o Colegiado optou por destinar os recursos para este último em função de já ter uma EFA em Ervália e da falta de parceria entre sociedade civil e o poder público municipal, atores que concorriam no município para a captação de recursos e mantinham divergências políticas explícitas. As falas a seguir explicitam esse processo.

[...] Lá [em Ervália] teve um pouco de recurso para a EFA, mas não foi tanto como Araponga. Até porque lá divergia bastante a prefeitura do movimento sindical, e porque também a prefeitura de Araponga demonstrou no Colegiado que a EFA era prioridade para eles, e já em Ervália a gente via que não era prioridade do poder público local. (Representante de organização da sociedade civil, 2014)

A dificuldade de Ervália em aprovar projetos com certeza teve relação com a dificuldade de parceria com a prefeitura. O sindicato se absteve várias vezes dos projetos que a prefeitura propôs. Parecia até que a prefeitura fazia tudo debaixo dos panos. Então havia uma relação tendenciosa do sindicato com a gestão municipal. Tendenciosa e com conflito. Tanto que hoje o sindicato está de braços abertos com a prefeitura. E porque que não havia isso antes? Então, acho que houve questão de não ter apoio para o poder municipal. Não podiam ter olhado para as pessoas ou somente para os partidos, mas para o desenvolvimento do município. E o sindicato é uma força muito forte nos municípios. Eles representam os trabalhadores rurais. Deveria haver uma parceria mais próxima para ajudar a gestão municipal. (Representante de organização do setor público, 2014)

Em síntese, até agora a definição do objeto de investimento do projeto e a questão política da articulação entre prefeitura e organizações da sociedade civil de um mesmo município aparecem como decisivas na alocação de recursos. Porém, essas não são questões suficientes para aprovar um projeto. Há outra questão política envolvida, ainda mais deslocada da dimensão técnica dos projetos, que é a combinação do voto entre representantes, estratégia que reflete de maneira mais direta a ação das coalizões dentro do Colegiado e que dá pistas para compreender as configurações da rede. Mobilizar os parceiros e garantir a fidelidade do grupo para aprovar projetos desse grupo e não do outro foi um prática recorrente no processo de alocação de recursos no TSB relatada pelos

entrevistados, que caracteriza, seguindo a reflexão baseada em Flingstein (2003), o enraizamento político das ações (e dos projetos).

Esse enraizamento político não pode ser compreendido sem levar em conta o histórico do território, pois a maior parte do volume de recursos destinado foi para projetos que estavam sob a articulação e disputa dos dois grupos de organizações da sociedade civil do TSB, um vinculado a Fetraf, e apoiado pelo CTA, e outro vinculado a Fetaemg, e apoiado pelo Ceifar. Em boa medida também se encontravam articulações entre prefeituras, com pouca ligação com a sociedade civil, mas de maneira mais intensa e explícita, essas combinações de voto diziam respeito às organizações da agricultura familiar como resquício do “racha sindical”.

Porém, cabe ressaltar que essa dinâmica de formação de grupos para aprovação combinada de projetos é um reflexo não apenas do histórico de conflitos e da dissidência do movimento sindical, mas também do próprio desenho da política que exigia a indicação de projetos para serem financiados, sem nenhuma referência institucional para regular a prática da definição e priorização desses projetos25. Sendo assim, a alocação dos recursos foi submetida à apresentação livre de propostas e sua aprovação pelo voto e escolha da maioria. Em um primeiro momento, isso acabou intensificando os conflitos internos entre as duas coalizões e pervertendo o caráter e a finalidade da própria política, já que muitos projetos eram aprovados sem rigor, apenas pela definição política do voto. As entrevistas a seguir apresentam argumentos que levam a esta constatação e reforçam o enraizamento político dos projetos:

Nas proposições de projetos no Colegiado tinham pessoas que articulavam mais. Entre municípios mesmo, que combinavam, eu voto no seu, você vota no meu. Esse tipo de articulação interna nos grupinhos era frequente. E isso contribuía para direcionar os recursos. Então, assim, a argumentação era importante, mas por muito tempo o que definia o rumo dos projetos era essas articulações internas, essas redes fechadas. (Representante sociedade civil, 2014)

[...] A gente via, assim, que tinham organizações que já chegavam fechadas no voto. As panelas, acordos, vota no meu que eu voto no seu. Acordos de proximidade, acordo de relações pessoais, de relações entre organizações. E tinha afinidades políticas. Isso aí é inegável! (Representante da sociedade civil, 2014)

25 O próprio Codeter é que cria, posteriormente, um conjunto de critérios a serem seguidos para avaliação e seleção de projetos, bem como mecanismos para realização do monitoramento. Estas questões, de cunho institucional, serão tratadas mais adiante.

Essa dinâmica de seleção dos projetos, cuja interação se dava entre coalizões, não necessariamente envolvia todos os atores vinculados à política, já que alguns praticamente não apresentavam projetos e não tomavam parte dessa divisão. Os municípios de Pedra Bonita e Sericita se enquadram nessa determinação e são os que menos captaram recursos (Sericita sequer apresentou projeto ao longo dos anos). Estes dois municípios há muito tempo não participam das reuniões do Colegiado e os recursos adquiridos por Pedra Bonita o foram no início do território e com o apoio de outras organizações.

Como mencionou um representante de organização do setor público em uma das reuniões do Codeter em 2014, “o Colegiado virou palco de disputas”, manifestando muito mais interesses de grupos em oposição do que um planejamento territorial do desenvolvimento. Isso reflete a constatação de Abramovay, Magalhães e Schroder (2010) de que os projetos territoriais são muitas vezes elaborados por certos grupos de interesse nos territórios, não representando demandas de pactos de concertação ou de arranjos institucionais ancorados no território, como é preconizado pela política.

Todas essas questões e seus reflexos, como na alocação de recursos, pode-se constatar, estão associadas também, sobretudo, à posição dos atores na rede do território. Alguns atores se constituem como mais centrais nessa rede, enquanto outros extremamente periféricos, sem conexão direta a outros atores da rede. Alguns, diante destas posições e da natureza das relações que possuem no interior da rede, conseguiram aprovar muitos projetos e captar recursos. Outros sequer pleitearam recursos e ficaram à margem do processo de desenvolvimento. Nesse sentido, evidencia-se que a morfologia da rede é um elemento necessário para se compreender a dinâmica de desenvolvimento territorial sob o marco do PRONAT.