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2.1 Desenvolvimento territorial rural

2.1.3 Territórios

Schneider e Tartaruga (2004) apresentam a necessidade de se distinguir o significado de território como um conceito ou uma referência heurística, tal como lhe confere a geografia e outras disciplinas, dos sentidos instrumentais e práticos conferidos por enfoques ou abordagens territoriais.

A diferença fundamental entre o uso e o significado conceitual e instrumental do território é que o sentido analítico requer que se estabeleçam referências teóricas e mesmo epistemológicas que possam ser submetidas ao crivo da experimentação empírica e, depois, reconstruídas de forma abstrata e analítica. O uso instrumental e prático não requer estas prerrogativas e, por isso, pode-se falar em abordagem, enfoque ou perspectiva territorial quando se pretende referir a um modo de tratar fenômenos, processos, situações e contextos que ocorrem em um determinado espaço (que pode ser demarcado ou delimitado por atributos físicos, naturais, políticos ou outros) sobre o qual se produzem e se transformam (SCHNEIDER e TARTARUGA, 2004, p. 106).

Se, como Schneider e Tartaruga (2004) argumentaram, desenvolvimento territorial pressupõe a ação sobre o espaço e a mudança das relações sociais nele existentes, o território, apesar de espaço, seria o substrato social do desenvolvimento, formado por redes de relações sociais. Assim, quando se trata de uma referência [socioespacial e simbólica] a processos de desenvolvimento, o território precisa ter sentido analítico para que a própria noção de desenvolvimento supere um sentido instrumental.

No âmbito dos processos de desenvolvimento rural, especialmente dos programas de desenvolvimento territorial rural, o território pode ser visto com referência a uma configuração relacional, como lugar em que se inscrevem redes sociais, que também não se restringem a seus limites, mas que imprimem uma dinâmica particular à economia e a sociedade que dele depende. Torna-se relevante, portanto, apresentar alguns sentidos analíticos da noção de território que podem contribuir para a compreensão de processos de desenvolvimento rural.

Pode-se iniciar esta discussão com a posição de Bourdieu (1989) acerca da noção de região, que para os fins deste trabalho deve ser tomada como sinônimo de território. Segundo o autor, região é, em primeiro lugar, uma representação do real, mas que confere validade a um determinado espaço ou expressão cultural contextualizada. A região, mais que uma definição política e/ou econômica, é visualizada como um importante espaço para valorização da expressão popular da cultura e dos laços entre os atores. Isso quer dizer que não possui validade apenas normativa ou adjetiva, ou seja, o território não existe simplesmente porque alguém, ou uma política pública, o definiu desta forma, mas porque os atores que nele interagem lhe atribuem significado ao dele se apropriarem.

Bourdieu (1989) propõe um olhar além das fronteiras políticas ou administrativas da região. Ele questiona a apreensão apenas no sentido administrativo do termo e a fronteira (delimitação geográfica) como produto de ato jurídico de delimitação, que produz a diferença cultural do mesmo modo que é produto desta. A região é apresentada como construção social, pois “o que faz a região não é o espaço, mas sim o tempo e a história” (BOURDIEU, 1989, p. 115). Nesta concepção, as regiões (e os territórios), enquanto construções sociais, estão em constante transformação, pois são produto da ação humana, dos conflitos e das relações de poder que permeiam os grupos de interesse existentes.

Entretanto, a territorialização das intervenções do Estado é, por vezes, tomada como panaceia aos problemas do desenvolvimento. O território, formado por uma

condensação de forças sociais e políticas, passa a substituir o Estado e a ser visto como o mobilizador e regulador de relações entre diferentes atores e setores da sociedade, dotado da capacidade de elaborar e executar projetos sociais. Ao Estado caberia estimular este território para desenvolver sua capacidade empreendedora. “O que é fruto de relações sociais aparece como relação entre objetos. Há uma coisificação e o território parece ter poder de decisão, transformado em sujeito coletivo” (BRANDÃO, 2007, p. 50).

Uma discussão de grande importância que pode ser usada para superar tal visão de territórios é a desenvolvida pela geografia, podendo-se citar autores como Milton Santos, Rogério Haesbaert e Claude Raffestin, que destacam concepções mais próximas de uma abordagem relacional sobre o território, principalmente a partir dos conflitos e relações de poder. Desta discussão não se intenta esgotar os usos e acepções do termo território, mas destacar elementos que podem contribuir para se compreender empiricamente os processos de desenvolvimento em territórios rurais.

Para Santos (1998), é o uso do território, e não o território em si mesmo, que faz dele objeto da análise social. Uso não significa stricto sensu apropriação material, mas a maneira como ações nele situadas se manifestam, as diversas formas pelas quais o material e o simbólico se interconectam, como sinônimo de espaço humano habitado. Nesta perspectiva, Haesbaert e Limonad (2007, p. 42) complementam, argumentando que “o território é sempre, e concomitantemente, apropriação (num sentido mais simbólico) e domínio (num enfoque mais concreto, político-econômico) de um espaço socialmente partilhado”. Como apropriação e domínio, o território concretiza a interconexão entre o material e o simbólico, tendo como referência as relações e posições sociais que o configuram.

Para Raffestin (1993), território não se restringe a espaço. Espaço está dado, concebido a priori, sobre o qual os atores intervêm e produzem um território. Território é construído pela ação, que se inscreve no campo do poder, pois se produz pela interação social. Para o autor, esta é uma problemática eminentemente relacional, uma vez que não se entende o território desconexo das relações que o criam, mediadas por representações sobre a realidade, as quais estão sempre em disputa por sua legitimidade e dominância.

Para alguns autores, especialmente Raffestin (1993), não se pode falar de território sem falar de poder. O território é concebido como um campo de poder por meio do qual representações, formas de apropriação e estratégias de uso do espaço se materializam. A

concepção de poder aqui se aproxima à definida por Foucault (2000), para quem o poder não existe per se, não pode ser objetivado ou emanado de um lugar social que lhe é próprio, pois o que existe são as relações de poder, construídas e reproduzidas pelas relações sociais e que possuem sua historicidade. O território, por esta via, é simultaneamente funcional e simbólico, pois o espaço é um componente indissociável das relações de poder, tanto na realização de funções como na produção de significados (RAFFESTIN, 1993). Assim, a territorialidade assume uma dimensão política, de natureza propriamente social, pois decorre das interações entre os atores.

Esse argumento destitui a validade estrita da relação de causalidade entre potencial natural/material de um território e seu desenvolvimento. Muitas vezes territórios que possuem recursos materiais escassos apresentam desempenhos surpreendentes no acesso a políticas públicas e na inclusão produtiva se comparado com outros de maior potencial. Isso reside no fato de que as formas de apropriação do espaço e o uso que dele se faz se relacionam também à forma como os atores se relacionam, às coalizões políticas e às relações de poder que configuram as redes dos territórios.

Território, sob uma perspectiva relacional, é visto a partir das relações socio- históricas que o constituem, mediadas pelas representações que dele são feitas e que balizam as intervenções sobre ele. Reforçar a dimensão do território enquanto representação é ressaltar seu valor simbólico (HAESBAERT, 2006). A esta dimensão está associada à noção de territorialidade, comumente relacionada com a representação de um símbolo do território, como um valor.

A territorialidade, de acordo com Raffestin (1993), é sempre definida como um conjunto de relações situadas num sistema tridimensional que articula sociedade-espaço- tempo. Ela é dinâmica, pois os elementos que a constituem variam no tempo. Compreender o desenvolvimento de um território requer, assim, apreender as relações sociais em seu contexto socio-histórico e espaço-temporal, pois contextualiza a sua territorialidade.

Para Haesbaert (2007, p. 25), territorialidade não é apenas uma abstração analítica ou epistemológica do território como espaço, “[...] é também uma dimensão imaterial, no sentido ontológico de que, enquanto ‘imagem’ ou símbolo de um território, existe e pode inserir-se eficazmente como uma estratégia político-cultural, mesmo que o território ao qual se refira não esteja concretamente manifestado” (HAESBAERT, 2007, 25).

O território, como representação, pressupõe os atores que o representam, que, a partir dele, constroem suas identidades, suas regras de convivência, e que, em seguida, também mudam o próprio território, já que articulam as formas de uso do espaço e relacionamento mútuo. Para Haesbaert e Limonad (2007), o território pode moldar identidades e ser moldado por elas, se tornando um importante referencial para a coesão de grupos sociais.

Interessa, pois, ressaltar o que Pecqueur (2005) denominou de “território construído”, mais do que o “território dado”, tendo claro que existe uma interdependência entre eles. Para o autor, o território dado é a porção de espaço [físico] objeto de observação, sendo ele preexistente, um território a priori, apenas um suporte. Quando se observa os territórios induzidos pelo MDA apenas sob a referência geográfica enquanto um agrupamento de municípios, está se referindo a esta categoria. Por outro lado, o território construído é resultado de um processo de construção pelos atores, constatado a posteriori. Assim, eles sempre se diferenciam uns dos outros e se caracterizam pela maneira como os atores se articulam e se apropriam do território dado, dotando-o de significado.

Esta concepção pode ser encontrada com maior ênfase nas discussões da geografia. Santos (1998) fala sobre o “território usado”, ou seja, o espaço apropriado e usado pelos atores, que lhe atribuem sentido. Raffestin (1993) fala do espaço como “prisão original”, algo que está dado, como se fosse uma matéria-prima, e o território como a “prisão” que os homens constroem para si. O território se forma a partir do espaço, mas não se limita a ele, sendo uma construção social, decorrente da ação dos atores, que territorializam o espaço ao dele se apropriarem. Essa apropriação, que envolve disputas e conflitos, pressupõe o território como campo de relações sociais.

Não obstante a relevância da base material-geográfica do território, é a dinâmica social que se prioriza aqui focalizar, envolvendo as redes de relações em que se estruturam os atores e como eles se posicionam nessa estrutura, suas estratégias, as relações de poder que reproduzem ou subvertem a ordem estabelecida etc. A estrutura e a natureza das relações sociais que configuram as dinâmicas territoriais de desenvolvimento se tornam necessariamente categorias-chave para uma abordagem relacional do desenvolvimento territorial. O território é, assim, a principal referência socioespacial das relações, é tomado como instância empírica e não como elemento residual.

Segundo Delgado e Leite (2011), a diversidade das situações em que se encontram os territórios no Brasil (se referindo aos territórios criados pelo MDA), não obstante a existência de procedimentos normativos padronizados que definem a sua criação e a gestão da política, revela a necessidade de se compreender as dinâmicas particulares que imprimem estilos e ritmos diferenciados de desenvolvimento, que variam de território para território. Long (2007) fundamenta esta constatação, argumentando sobre a diversidade que conforma as comunidades e territórios rurais, em termos de características das relações que vinculam os atores ali existentes, as dotações de recursos presentes, enfim, elementos específicos da estrutura social que condicionam o desenvolvimento rural. Nesta perspectiva, pode-se afirmar que apesar de estímulos homogêneos de um mesmo conjunto de políticas públicas, os territórios não seguem a mesma trajetória, pois os atores não manifestam respostas igualmente homogêneas, dependendo isto de dinâmicas sociais muito específicas.

Para fins analíticos, concebe-se aqui o território como um substrato referencial para a interação dos atores e seus arranjos organizacionais, como o locus de relações sociais que configuram dinâmicas sociais específicas. Como tal, a relação (simbólica e material) com o território mediatiza a relação entre os atores locais e destes com o Estado. A partir de certa representação sobre o território, os atores balizam suas intervenções sobre ele, constituem vínculos com outros atores e constroem redes que visam estabilizar as interações sociais e a regular o uso do espaço.

Não se pretende, entretanto, estabelecer uma perspectiva culturalista que supervalorize a constituição social do território, como se ele existisse apenas num plano simbólico, sem a referência espacial para sua existência. O enfoque analítico nas relações sociais visa destacar, sim, dinâmicas sociais em territórios rurais, principalmente porque aí reside uma importante lacuna teórica dos estudos do desenvolvimento territorial rural. Considerar o território a partir das redes sociais que lhe constituem é enfatizar sua natureza social essencialmente dinâmica e sua historicidade.

Concorda-se com Goulart et al. (2010) de que buscar uma aproximação da noção de território para os estudos do desenvolvimento contribui para erigir a dimensão relacional das articulações que ocorrem em espaços sociopolíticos que envolvem atores privados e governamentais. A necessidade dessa aproximação é tanto mais relevante quanto mais se observam as iniciativas de programas e políticas públicas em recuperarem a

capacidade de planejamento e promoção do desenvolvimento, mediante principalmente a articulação de políticas públicas de vários níveis de governo. Este é exatamente o caso aqui em questão das políticas de desenvolvimento territorial brasileiras. As articulações entre atores são a teoria e a prática da política, o que reforça a necessidade de uma abordagem relacional para se compreender a dinâmica dos territórios rurais.

As reflexões empreendidas nesse processo de doutoramento levaram a dar destaque analítico à dinâmica social dos territórios. Daí erigiu um recorte específico para o delineamento da pesquisa, aportando perspectivas teóricas e analíticas interessantes para o tema. Porém, antes de discutir os fundamentos teórico-analíticos que embasaram a compreensão das dinâmicas sociais em territórios rurais, apresentam-se aqui algumas considerações ontológicas, a partir das quais se concebe o desenvolvimento territorial rural sob o marco de uma abordagem relacional. Esse posicionamento ontológico foi fundamental para definir os fundamentos teóricos da pesquisa e, de maneira geral, para orientar todo o processo de análise.