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2.2 Considerações ontológicas para (re)pensar o desenvolvimento territorial

2.2.1 Contribuições de Giddens

Giddens (1989; 2000), em sua teoria da estruturação, parte da relativização de uma das discussões mais polarizadas na teoria social, centradas nas concepções de sociologia estrutural e individualismo metodológico, acerca do par agência/estrutura. Para a sociologia estrutural, a estrutura pode ser vista como redes de relações estabilizadas, sem qualquer alusão a características dos atores e suas ações, já o individualismo metodológico supervaloriza os indivíduos na sociedade, de modo que os fenômenos sociais só podem ser entendidos a partir de suas condutas. O autor não se posiciona em uma tradição qualquer do pensamento social, mas afirma que estas duas não se rejeitam mutuamente. Para Giddens, ação e estrutura coexistem e mantêm entre si uma relação recíproca, que as atualiza constantemente.

Estrutura é definida como o conjunto de regras e recursos implicados, de modo recursivo, na reprodução social. A estrutura apenas existe sob a forma de propriedades estruturais dos sistemas sociais, no sentido de que as relações se estabilizam no tempo e no espaço (GIDDENS, 1989). Apesar de certa estabilidade das relações, a noção de estrutura é fundamentalmente processual, principalmente pelo seu caráter recursivo e dual em relação à ação. Estrutura aqui nada tem a ver com um paralelismo biológico, em termos da anatomia de um organismo, por exemplo, e se aproxima mais da noção de uma ordem virtual internalizada pelos indivíduos, ligada a uma dimensão cognoscitiva da ação humana.

Agência, por sua vez, se refere à capacidade das pessoas para realizar alguma coisa e não às suas intenções ou interesses. Giddens (1989) afirma que a agência diz respeito a eventos dos quais um indivíduo é o protagonista, na medida em que ele poderia, em qualquer tempo, ter atuado de modo diferente. Não obstante o foco na estruturação dos sistemas sociais, a ação humana está na concepção da análise social do autor.

Giddens (1989) argumenta sobre o caráter dual da estrutura, que tanto constrange/limita como habilita/possibilita a ação. Este caráter ressignifica a oposição entre, por um lado, “ação, significado e subjetividade”, e por outro, “estrutura e coerção”. A partir desta dualidade o autor propõe a integração do par estrutura/ação, pressupondo sua ocorrência mútua, que lhe é intrínseca. Segundo Giddens (2000, p. 43), conceber a dualidade da estrutura significa afirmar que “as propriedades estruturais dos sistemas

sociais são simultaneamente o meio e o resultado das práticas que constituem esses mesmos sistemas”. Este argumento evidencia a relação dialética entre práticas sociais e instituições, imperativa em seu pensamento. É a reciprocidade entre os atores e as instituições que permite a manutenção da ordem nos sistemas sociais, assim como sua transformação.

Portanto, rejeita-se qualquer identificação sinonímica entre estrutura e constrangimento, pois o princípio da dualidade reforça a ideia de que a estrutura não deve ser concebida como uma barreira à ação, mas sim diretamente envolvida em sua produção, pois tanto constrange como capacita. Giddens contrapõe-se a uma perspectiva atomizada do ator, como se a estrutura produzisse “corpos dóceis” que se comportam como autômatos. Como dito, as noções de estrutura e de ação se pressupõem uma a outra.

Entende-se que a estrutura para Giddens (1989) tem sentido mais metafórico do que morfológico. No entanto, este segundo sentido aparece quando o autor considera que certas formas estruturadas de relações sociais, que conferem estabilidade aos sistemas sociais, implicam um conjunto de regras e recursos que condicionam as relações entre os atores. A posição dos atores no conjunto das relações das quais fazem parte é um elemento que interfere em suas circunstâncias, principalmente porque determina sua capacidade de acesso e controle de recursos e de poder. A análise estrutural de Giddens implica, assim, examinar a estruturação dos sistemas sociais a partir de padrões de interação visíveis (a forma dos arranjos relacionais) e invisíveis (regras e normas5).

Dois outros elementos destacam-se nas contribuições de Giddens (1989): a natureza recursiva da vida cotidiana e o caráter situado da ação no tempo-espaço. A recursividade se refere ao caráter rotinizado e recorrente da prática. Sendo assim, a relação entre agente e estrutura é caracterizada como recursiva, por que sempre frequente e mutuamente dependente, alcançando certa regularidade no tempo e no espaço. Entretanto, recursividade aqui não é tratada como durabilidade, que constrange as tentativas de transformar as sequências de ação dos atores, apesar de estar aí a origem da ordem social (mantida pelo autorreforço de uma “monitoração reflexiva” da ação), pois é preciso considerar que os repertórios de ação são também constantemente atualizados por meio das

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Giddens (2000) distingue sua concepção de regras sociais, que formam as instituições, do termo usualmente empregado como seu sinônimo: “regras do jogo”. Para ele, estas têm poder explicativo reduzido, pois apenas exemplificam características de regras consabidas, dado que jogos possuem regras claramente fixadas, formalizadas e definidas por via de um léxico, além de não se constituírem geralmente em objeto de disputas quanto à sua legitimidade, como é o caso das regras sociais.

relações sociais. Assim, a ordem resulta de um processo contínuo de interação entre ação e estrutura.

Reconhece-se, neste sentido, que o desenvolvimento rural visto apenas sob um nível restrito de análise (micro ou macro, objetivo ou subjetivo) limita o potencial de explicação das mudanças sociais, centrando-se ora nos condicionamentos político- estruturais, por exemplo, focalizando os processos sociais a partir da intervenção do Estado, ora na intervenção estratégica de atores ou coalizações políticas descontextualizados. Além disso, destaca-se dos argumentos acima que tanto a estabilidade, quanto a mudança estão presentes nos repertórios de ação dos atores, mantendo rotinas e trajetórias de sucesso e/ou alterando seus projetos para alcançarem inovações.

Giddens (1989) também se preocupa com o contexto sobre o qual as interações sociais acontecem, denotando uma referência espacial em suas análises, que destaca o caráter situado da prática. Para o autor, os atores sempre estão situados no tempo-espaço. Os locais são abordados como cenários de interação e não como espaço físico. Para ele, “as práticas sociais são sempre atividades situadas (espacial, paradigmática e temporalmente)” (GIDDENS, 2000, p. 12).

Faz sentido, assim, como já discutido anteriormente, se apropriar da noção de território como referência socioespacial da análise de um conjunto de relações, de um sistema social específico, para além de concebê-lo em seu caráter material ou apenas geográfico. As práticas de desenvolvimento, portanto, possuem, em sua sociogênese, um substrato social que lhes fornece referência, denotando o território como um importante componente analítico, por que é contextual.

Para os propósitos deste trabalho, no entanto, é preciso considerar uma das questões críticas da teoria de Giddens. Apesar de conferir dinamismo aos sistemas sociais, ele parece cair numa posição estática ao considerar que aquilo que chama de “propriedades estruturais dos sistemas sociais” são constituídas e fixadas ao longo do tempo, sendo anterior às práticas. Decorre disso um questionamento paradoxal: se tais propriedades estruturais antecedem as práticas, como elas podem ser também seu produto? A posição assumida aqui, em vista de esclarecer esta questão, é de que as propriedades estruturais historicamente constituídas são, sim, produtos das interações sociais, pois, na medida em que as interações ocorrem, além de reproduzirem as propriedades estruturais e também

moldá-las, elas promovem o surgimento de novas propriedades, novas ordens sociais. As propriedades estruturais são sempre um marco de referência para a realização da prática, mas também são sempre influenciadas e alteradas por elas no curso das ações.

Outra questão que necessita esclarecimento é que, apesar de conferir um caráter processual aos sistemas sociais, Giddens não constrói sua teoria a partir de uma abordagem diretamente relacional, focando mais no indivíduo do que nas interações sociais. O trabalho aqui proposto, porém, pretende ressaltar o caráter proeminente das interações sociais na estruturação dos sistemas sociais nos territórios e como eles condicionam os processos de desenvolvimento rural e a implementação de uma política pública. Mantém- se a referência da dualidade e da recursividade apontadas por Giddens, mas busca-se uma abordagem mais relacional, dinâmica e centrada nas relações. Uma aproximação a este sentido pode ser feita a partir das contribuições de Norman Long às teorias do desenvolvimento rural.