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CONHECENDO O ASSENTAMENTO OZIEL ALVES: UM NOVO OLHAR NO CAMPO

Andar pelas ruas de terra da agrovila, construída na antiga sede da Fazenda Ministério, cercada de morros; sentir o clima fraterno entre as pessoas, a beleza natural e arranjada; ver as crianças brincando na rua, na porta de suas casas, o entra e sai de vizinhos e companheiros; o futebol das peladas de fins de tarde, do domingo pela manhã; ouvir as conversas do cotidiano, os relatos das lutas [...]. Tudo isso significou reviver minha própria trajetória profissional, inclusive acompanhada pelo meu filho que, já adulto, teve a oportunidade de reviver também momentos de sua infância, criado em meio a um contexto semelhante.

Em alguns momentos, eu me pegava no meio da rua principal, onde está localizado o Centro de Formação do MST e a pracinha, local de encontro e me emocionava revivendo o passado e a histórica luta do povo pela sobrevivência, por condições dignas de vida. Ver uma agrovila instalada numa área de latifúndio é sentir o sabor da vitória, fruto de uma luta que não para e de uma comunidade a qual se mostra disposta a lutar, que não arreda de seus princípios e valores e que busca constantemente, porque é vigilante e aguerrida.

A recepção, a convivência, a disposição e a disponibilidade em participar da pesquisa; de oferecer a casa para hospedagem, fazer um cafezinho para aquecer mais a conversa e, quem sabe até, inspirar a “contação das histórias”, chamaram a atenção e constituíram as reflexões em torno da trajetória coletiva dos assentados.

Sentimo-nos (eu e meu filho) em casa; é como se já vivêssemos ali. Eu conhecia sete pessoas do lugar (cinco egressas da LECampo, incluindo a Educadora foco da pesquisa e um casal de militantes e suas duas filhas com quem convivi durante o primeiro momento da pesquisa na UFMG).

Nesse segundo momento, o objeto de investigação é a história de vida e a práxis pedagógica de uma Educadora – foco-síntese do processo de formação de educadores do Curso de Licenciatura em Educação do Campo da UFMG. A observação participante foi o principal instrumento para a investigação, procurando observar a construção da prática no processo de formação durante o Curso de Licenciatura e em outros espaços de formação da Educadora, bem como a sua atuação na escola e na comunidade, através da história de vida como recurso metodológico. Foram realizadas entrevistas com a própria Educadora, com professores, pais e mães de estudantes da escola e lideranças do Assentamento. O acesso aos documentos, tanto na escola, quanto na secretaria do Centro de Formação do MST, foram de fundamental importância para a composição do trabalho escrito, durante a investigação e para a produção final desse trabalho científico.

O contexto da experiência observada e os dados coletados deram, portanto, suporte à discussão analítica das questões, os aspectos de inovação e emergência de uma nova prática pedagógica. Associados ao referencial teórico, esse elementos serviram de base para analisar e compreender os desdobramentos da realidade do Assentamento, no contexto da região e da luta pela terra.

As concepções e os princípios de educação, da escola e da formação de educadores do campo, bem como as manifestações na práxis pedagógica, em articulação com a escola, a comunidade e os movimentos sociais, constituíram um rico referencial de análise para compreender as relações entre o conhecimento acadêmico-científico e os saberes oriundos das vivências e experiências da Educadora e sua trajetória de formação.

Ora, a escola, a comunidade e o MST têm uma prática social e educativa articulada aos princípios do Movimento e à realidade do Assentamento. No seu interior há conflitos, contradições, acertos e erros, que podem gerar as emergências, na medida em que buscam o reavivamento de si enquanto sistema.

Fazer a interlocução com os sujeitos, conhecer seu cotidiano durante um período de suas vidas, seu discurso, o que dizem, como expressam seu pensamento, suas expectativas, seus desejos e sentimentos, constituem uma forma de relacionar dados de uma situação particular a outras situações já conhecidas. Além disso, trazer esses elementos para uma reflexão no contexto da pesquisa, relacionando aspectos da teoria a aspectos da vida real, concreta, vivida ali no

cotidiano, artesanalmente, mesmo que num curto período de tempo, constituiu-se a essência da reflexão para compreender o empoderamento implicado no processo de ser militante no MST naquele Assentamento – Oziel Alves.

Fui recebida pela Educadora foco da pesquisa; visitei a escola e conheci a agrovila, lideranças e outros militantes, interessados e já envolvidos no processo de investigação, mostrando que a práxis pedagógica é multidimensional, visto que envolve todos os aspectos da vida da pessoa, seja do educando, seja do educador. Gadotti (2001, p. 30) afirma que na tradição marxista de educação “práxis significa

ação transformadora” (grifo do autor). No caso do grupo em evidência, a práxis

ocorre dentro de um processo de construção de sujeitos individuais e coletivos, como está marcado em suas falas.

No nosso entender, o conhecimento dos processos de transformação, a partir de uma dada realidade na observação e vivência da práxis pedagógica da Educadora pesquisada e dos demais sujeitos da comunidade, poderá contribuir na articulação da práxis social do MST e a práxis pedagógica da escola como sujeitos concretos e capazes de transformação.

5.4 O CAMPO PRECEDE A ESCOLA: A LUTA PELA TERRA E A FORMAÇÃO DE EDUCADORES DO CAMPO

Inspiro-me em Paulo Freire quando ele afirma: “A educação é um ato de amor, por isso, um ato de coragem. Não pode temer o debate. A análise da realidade. Não pode fugir à discussão criadora, sob pena de ser uma farsa” (FREIRE, 2007, p. 104). É com esse espírito que a Escola do Assentamento Oziel Alves busca desenvolver suas atividades.

Para compreender o sentido educativo do MST (e do Assentamento Oziel Alves) é preciso compreender a experiência mais ampla da formação humana das pessoas, da coletividade, ou desse novo sujeito social, que constituem o Movimento e, desse modo, “entender por que e como estão propondo uma escola que, simplesmente, possa constituir-se como parte desta experiência” (CALDART, 2000, p. 23). Nessa mesma obra e página a autora afirma que o sentido educativo do MST pode ser entendido como sentido sociocultural, como parte de um processo histórico mais amplo e de maior duração. Chama a atenção, ainda, para o uso da expressão

sujeito social para indicar uma coletividade que constrói sua identidade (coletiva) no processo de organização e de luta pelos seus próprios interesses sociais [...]. Os sem-terra passam a ser sujeitos sociais à medida que se constituem uma coletividade que traz para si (o que não quer dizer esgotá-la em si) a luta para garantir sua própria existência social como trabalhadores da terra [...]. À medida em que estes sujeitos passam a ter um lugar significativo nestes embates, [...] passam a se configurar também como sujeitos políticos (CALDART, 2000, p. 25, grifo da autora).

Em sua trajetória de luta e organização dos trabalhadores do campo, o MST foi construindo uma concepção de educação que busca “recuperar algumas matrizes pedagógicas desvalorizadas pela sociedade capitalista: pedagogia do trabalho, pedagogia da terra, pedagogia da história, pedagogia da organização coletiva, pedagogia da luta social” (MST, 2001, p. 125).

A Pedagogia do Movimento busca “refletir sobre o conjunto de práticas que fazem o dia-a-dia dos Sem Terra, extrair delas lições de pedagogia que permitam qualificar sua intencionalidade educativa junto a um número cada vez mais de pessoas” (MST, 2001, p. 125-126). Nessa perspectiva, o Movimento entendeu ser necessário formular princípios filosóficos e pedagógicos, para balizar o trabalho de educação do Movimento: Princípios Filosóficos: 1. Educação para a transformação

social (Educação de classe, massiva, organicamente vinculada ao MST, aberta para

o mundo, educação para a ação, aberta para o novo); 2. educação para o trabalho e

a cooperação; 3. educação voltada para as várias dimensões da pessoa humana; 4.

educação com/para valores humanistas e socialistas; 5. educação como um

processo permanente de formação/transformação humana. Princípios Pedagógicos: 1. relação entre prática e teoria; 2. combinação metodológica entre processos de ensino e de capacitação; 3. a realidade como base da produção do conhecimento; 4. conteúdos formativos socialmente úteis; 5. educação para e pelo trabalho; 6. vínculo orgânico entre processos educativos e processos políticos; 7. vínculo orgânico entre processos educativos e econômicos; 8. vínculo orgânico entre educação e cultura; 9. gestão democrática; 10. auto-organização dos/das estudantes; 11. criação de coletivos pedagógicos e formação permanente dos educadores/das educadoras; 12. atitude e habilidades de pesquisa; 13. combinação entre processos pedagógicos coletivos e individuais (MST, 1996, p. 6-24).

A ocupação da escola pelo MST e a formação dos educadores do campo, nos cursos de licenciatura, constituem-se espaços e estratégias para a vivência e materialização desses princípios. Caldart aponta que é necessário

[...] buscar compreender com mais cuidado o processo através do qual se vem produzindo esta relação entre um movimento social e a escola. Existe uma trajetória a ser analisada desde a primeira vez que famílias sem-terra decidiram lutar pela escola de seus filhos, [...] quando a educação e a escola passam a ser vistas como parte da estratégia de luta pela Reforma Agrária e pela participação na construção de um novo projeto de país, ao mesmo tempo que como parte do cotidiano das famílias sem-terra, é traço característico dos assentamentos do MST. Uma trajetória que também possui um sentido sociocultural e educativo específico dentro do processo que tem produzido o sujeito Sem Terra (CALDART, 2000, p. 141).

Com base nesses princípios, o Movimento foi formulando suas propostas e diretrizes de ação, para avançar na coerência de suas práticas, “construindo um sentido estratégico (com objetivos de longo prazo, com articulação entre as ações) para nosso trabalho e para o conjunto da nossa organização” (CALDART, 2000, p. 4).

Ao referir-se às pedagogias do Movimento, Caldart (2000) identifica duas dimensões do processo de formação dos sem-terra ligados ao MST: uma

[...] que vincula cada família sem-terra à trajetória histórica do Movimento e da luta pela terra e pela reforma Agrária no Brasil, tornando-se fruto e raiz (sujeito) desta história; e outra que faz de cada integrante do MST um ser humano em transformação permanente à medida que sujeito de (também condicionado a) vivências coletivas que exigem ações, escolhas, tomadas de posição, superação de limites, e assim conformam seu jeito de ser, sua humanidade em movimento. Do entrelaçamento das vivências coletivas, que envolvem e se produzem em cada família, cada grupo, cada pessoa, com o caráter histórico da luta social que representam, se forma então a coletividade Sem Terra, com uma identidade que não se enxerga olhando para cada pessoa, família ou grupo de sem-terra em si mesmos, mas que se sente ou se vive participando das ações ou do cotidiano do MST (CALDART, 2000, p. 205, grifos da autora).

A autora destaca o próprio Movimento como sujeito educativo principal do processo de formação dos sem-terra, “no sentido de que por ele passam as diferentes vivências educativas de cada pessoa que o integra, seja em uma ocupação, um acampamento, um assentamento, uma marcha, uma escola” (p. 205). Ainda nessa mesma obra, a autora destaca que “entender o sentido de uma educação que se produz desde a dinâmica social como o MST é também buscar entender como a escola pode participar dos processos de transformação social” (p. 45). Afirma, ainda, “Tratar da educação no Movimento é tratar de escola [...]” (p. 144). A educação formal está na pauta permanente do MST, uma vez que constitui um dos elementos de sua ação.

“Ocupar a terra, lavrar a vida, produzir gente” (CALDART, 2000, p. 248), eis a mesma ideia no Assentamento Oziel Alves, na placa de entrada, onde pude ver a presença do MST, desde o nome do Assentamento, as datas da ocupação e conquista; e nos muros as palavras de ordem: “Ocupar, produzir, resistir”. Também as bandeiras do Movimento nos pontos estratégicos do Assentamento (praça, Centro de Formação, Escola e residências) são as marcas que identificam e reafirmam o porquê, o como e a importância de conquistar, de se estabelecerem e produzem a vida ali, como seres históricos. Isso significa viver os desafios do MST como sujeito pedagógico, ou seja,

Primeiro: Olhar para si mesmo como um sujeito educativo.

Segundo: Compreender mais profundamente a sua própria pedagogia. Terceiro: Ter mais claro qual o lugar da educação e da escola no projeto histórico do Movimento.

Quarto: Radicalizar o processo de ocupação da escola (CALDART, 2000, p. 248-254).

Também a Mística expressa essa identidade e reforça o sentido da luta, a solidariedade entre os militantes e a importância de preservar a memória do Movimento. Nesse sentido, todos se tornam educadores e protagonistas responsáveis e solidários na busca por um destino comum mais justo para eles e para toda a humanidade, na certeza de que “nada começa nem termina: continua” (CALDART, 2000, p. 255).

5.5 FORMAÇÃO DE EDUCADORES NO SEU CONTEXTO DE VIDA: REFLEXOS