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FORMAÇÃO DE EDUCADORES NO SEU CONTEXTO DE VIDA: REFLEXOS NA

As discussões em torno da formação de educadores, nos últimos vinte anos do século XX e início deste século, vêm tomando lugar entre educadores e setores da vida social, pela complexidade que essa temática assume. Frigotto (1996, p. 75) discute formação e profissionalização do educador, afirmando que esse tema “não pode ser tratado adequadamente sem referi-lo à trama das relações sociais e aos embates que se travam no plano estrutural e conjuntural da sociedade”.

Na formação dos educadores na LECampo/UFMG, o currículo procura realizar a integração dos saberes problematizados na relação dialógica e a construção da leitura de mundo feita pelos estudantes e desses com seus alunos,

sempre colocando-se em situação de coletividade. Essa formação deve contemplar: momentos de sistematização e reflexão coletiva dos dados da realidade.

A produção de uma imensa colcha de retalhos na escola do Assentamento envolvendo todas as turmas da escola, com histórias contadas em sala de aula, desenhadas e pintadas em cada quadro (retalho), constituiu exemplo dessa integração. São histórias dos livros e da própria comunidade, resultando numa memória e num registro dos conhecimentos, da cultura e das habilidades que as crianças desenvolvem para desenhar, recortar e colorir, além de interpretar e compreender relações. Essa atividade já ultrapassa os muros da escola e vai tornar- se um produto cultural da comunidade e, provavelmente, vai cobrir o campo de futebol do Assentamento. Isto é fazer educação concretamente e descobrir novos talentos e possibilidades, explicitando o que dizem Pereira, Gemaque e Ribeiro (2007, p. 207): “a profissão de professor combina sistematicamente elementos teóricos com situações práticas reais [...]”, pois

é difícil pensar na possibilidade de educar fora de uma situação concreta e de uma realidade definida. Por essa razão, ao se pensar no professor que trabalha nas escolas do campo, se imagina que, ao realizar sua formação inicial ou continuada, a ênfase tenha sido a prática como atividade formativa, um dos aspectos centrais a ser considerado como conseqüência decisiva para a atuação junto aos sujeitos e a realidade que ali vivem.

Isso implica o desenvolvimento de uma compreensão ampla e consubstancial do fenômeno e da prática educativa, em seus diferentes âmbitos e especificidades. É uma tarefa que demanda a afirmação de um conjunto de princípios que regem a vida individual, social e política, integrando experiências do cotidiano, na ação pedagógica num permanente diálogo com as várias áreas do conhecimento e da realidade. Eis o depoimento de uma das Educadoras que participou do processo de confecção da colcha de retalhos:

A colcha de retalho não falo que ela ainda é um material didático, por quê? Como foi a colcha de retalho? Durante as aulas, as histórias que a gente ia trabalhando com os meninos, a gente ia contando as histórias para eles e pedia para eles trazerem um retalho. Eles pintavam e a gente chamou uma costureira, uma avó, na verdade ela não é moradora do assentamento, mas se ofereceu para costurar. A atividade é coletiva dentro da escola, mas ainda não é uma atividade coletiva do assentamento. De repente pode vir a ser (NILVA, educadora, mãe e militante).

A confecção da colcha de retalhos constitui-se, portanto, numa rica oportunidade de fazer essa integração e desenvolver várias áreas do conhecimento, o que poderia tornar-se uma proposta metodológica para as escolas do município e da região, pois que, o ensino fundamental é de responsabilidade da Superintendência Regional de Ensino de Governador Valadares. Entretanto, não há ainda um trabalho efetivo devido aos entraves do sistema oficial de ensino, que desqualifica a escola rural e desvaloriza seu trabalho, quando poderia e deveria socializá-lo entre as escolas.

Noutra atividade com as crianças da 3ª série – o estudo da comunidade (localização; ruas; serviços; residências, etc.) elas construíram roteiro e responderam a questões a respeito do que queriam saber sobre a comunidade, sob a direção da professora. Elas aprenderam, então, a problematizar, a observar, a tirar conclusões e a registrar informações. Aqui estão presentes as teorias do conhecimento, correntes filosóficas e abordagens pedagógicas que trabalham o diálogo e a problematização como método de ensino, partindo do concreto para o abstrato, do próximo para o remoto, ao contrário do que fazem comumente as escolas.

Outra questão essencial, que geralmente preocupa todos os educadores é: qual a relação entre a teoria e a prática e como isto se manifesta na ação pedagógica das Educadoras? No Assentamento pude observar a organização e aplicação de um Centro de Interesses, conforme propõe o educador Decroly – um método que é usado empiricamente nos assentamentos e que apresenta a mesma lógica dos temas geradores de Paulo Freire. Ao final deste trabalho, apresentamos a proposta de utilizar sistematizadamente esse método nas escolas de assentamento, incorporando-o aos cursos de formação para instrumentalizar os educadores na sua prática pedagógica. A utilização sistemática do Centro de Interesses pode não só facilitar o planejamento do ensino, bem como realizar a integração curricular, organizando os objetivos, os conteúdos e estratégias específicas e articulando a um todo – os conhecimentos, atitudes, procedimentos e valores que devem ser desenvolvidos, de acordo com a fase do desenvolvimento do aluno e seus interesses. O Centro de Interesses exige avaliação contínua em cada fase do processo, o qual é constituído de três momentos: iniciação, desenvolvimento e culminância, produzindo um novo conhecimento socializado na escola e na comunidade.

Na época do aniversário da Ocupação (23 de agosto), os alunos da Educadora e das outras turmas construíram a história do Assentamento, partindo da comemoração coletiva do aniversário da ocupação, organizando painéis com fotografias trazidas de casa e do acervo do Centro de Formação do MST, produzindo textos, de acordo com o nível dos alunos. É a história concretamente estudada, valorizando os líderes e compreendendo a sua história e de seus pais – condição básica da identidade da formação de consciência. Também foi estudada a Matemática, registrando a produção do Assentamento, as datas e a linha histórica do tempo, além de jogos e gincana para avaliar conhecimentos e habilidades. Todo esse processo constituiu-se um outro Centro de Interesses, que envolveu escola e comunidade. E que pode, sem dúvida, fazer parte do currículo escolar, coletivamente pensado e sistematizadamente realizado, com atividades, estratégias, recursos e avaliação, organizados e materializados como produção coletiva de conhecimento, a ser socializado entre as escolas e no Movimento.

Essas atividades socializadoras são realizadas regularmente e incorporaram- se à vida cultural e ao lazer da comunidade, como o Festival de Pipa, o Chá com Poesia, a Festa Junina e outras.

O Chá com Poesia já se tornou um momento assim [...] mês de maio toda a comunidade espera, vêm pessoas de fora, de Valadares prá esse momento. Tá sendo um processo muito legal que pessoas que não participavam de nada da comunidade [...], tá começando a se desenvolver, tá participando da vida da comunidade a gente sabe que tem inúmeros problemas, mas já é um avanço, pessoas que nunca fizeram nada, nunca saíram de casa e irem prá frente de um monte de pessoa e cantar, já é um início, já é a valorização do ser humano. O chá propicia à comunidade despertar para ouvir, prá falar, como eu disse antes, gente que não saía de casa, vai lá na frente e fala uma poesia. Então ele ouve, fala, ouve o filho, então aí eu vejo a importância de ir além da sala de aula (SÍLVIA, Educadora – entrevista).

Tais atividades são realizadas com a comunidade, incluindo o Coletivo de Educação e os Núcleos de Base – instâncias de organicidade do Movimento, em que há uma intencionalidade na participação dos pais e das lideranças, no desenvolvimento dos potenciais relacionados à expressão do pensamento através da arte e do conhecimento dos nomes e estilos na literatura brasileira. As crianças estudam os poemas e apresentam com painéis, cartazes, imprimindo ou escrevendo à mão para distribuição. Além disso, é uma oportunidade de despertar o interesse e a motivação para se expressarem com coerência, coesão e beleza – o que precisaria de um trabalho de desenvolvimento desses potenciais, por meio da escola

integral e de outras instâncias como uma Banda, participação em orquestra; grupos de ritmos e poesia, etc., que poderiam integrar as atividades curriculares, como educação permanente. Esse germe já está presente no Assentamento Oziel Alves, na fala da educadora:

No assentamento nós temos um coletivo de educação. Ele é composto por pais, alunos, membros da comunidade, e nós professores e estudantes que ajudam na cantina e, no coletivo, a gente discute o processo da comunidade, o que vai fazer durante o ano prá interagir e aí foi sugerido por uma professora que trabalha também na escola que ouviu de uma amiga dela que em Belo Horizonte existe um grupo que na Estação eles serviam café, serviam café e falavam poesia só que prá nós o chá tem mais a ver com a realidade do campo e também por ser no mês de maio é um mês muito frio e o chá ajuda a esquentar e também baseado na cultura dos povos ingleses que todo dia às 5 horas da tarde eles param de fazer tudo que estão fazendo e vão tomar chá e conversar foi baseado nesses dois... a gente vai adaptando. Ele surgiu com o propósito de melhorar a oralidade da criança, mas aí vai tomando outro rumo (EDUCADORA – entrevista).

É interessante observar que essas relações determinam as transformações, as inovações e os fatores que causam as rupturas com as formas tradicionais de ensinar e aprender, determinadas pelo modelo positivista que fragmenta o conhecimento, as relações e os processos organizativos. Daí pode emergir o novo, o diferente, partindo do pressuposto de que há um outro modo de conhecer, que supera a fragmentação e conclama a prática educativo-pedagógica a uma ação fundamentada na relação teoria e prática e a intensa relação dessa unidade dialética. Eis o depoimento de uma mãe e líder que colabora na comunidade no processo educacional, ensinando e trabalhando com plantas medicinais:

Eu acho muito importante, graças a Deus, a gente tem uma relação muito boa com a escola, a comunidade. Essa escola ela é escola e comunidade. A escola foi criada pela comunidade, construída e conservada. Qualquer dificuldade que a escola enfrenta a comunidade tá junto prá resolver qualquer problema e superar qualquer obstáculo. Em tudo que vai formando a comunidade a gente vai envolvendo prá ajudar. O trabalho com as plantas: eu vou lá e falo prás crianças, mostro prá que serve [...], prá fazer um chá, curar uma doença (LENA – líder e mãe – entrevista).

Isso precisa ser sistematizado com fundamentos científicos e o seu produto socializado nos meios educacionais, como formação de educadores. Desse modo, a formação docente envolve não só a área da educação, mas outras áreas da esfera social, trazendo para a atualidade uma problemática da formação do educador, que tem urgência em buscar soluções, especialmente a partir de um debate que se

instalou na sociedade em torno da década de 80, e vem se prolongando até os dias atuais, dada a relevância que essa temática assume.

A LDB em seu art. 61, parágrafo único, determina que:

A formação dos profissionais da educação, de modo a atender às especificidades do exercício de suas atividades, bem como aos objetivos das diferentes etapas e modalidades da educação básica, terá como fundamentos:

I – a presença de sólida formação básica, que propicie o conhecimento dos fundamentos científicos e sociais de suas competências de trabalho;

II – a associação entre teorias e práticas, mediante estágios supervisionados e capacitação em serviço;

III – o aproveitamento da formação e experiências anteriores, em instituições de ensino e em outras atividades.

Pude presenciar essa síntese quando a Educadora ensinava ética e livre arbítrio a duas crianças e à turma toda quando problematizava o dever de casa feito por uma delas sem a devida atenção ao raciocínio desenvolvido, já que fizeram em dupla; o que deveria ser um processo de aprendizagem autônomo, tornou-se uma atividade “mecânica”, na qual somente uma das crianças soube apresentar os passos desenvolvidos no exercício. Ao questionar a transcrição do exercício ela discutiu com as crianças a importância de pensar no que se está fazendo, de procurar raciocinar, de perguntar, e não se restringir ao que o outro colega fez, pois isso, além de tirar a oportunidade da própria pessoa se desenvolver, pode ter consequências de um comportamento não ético para a vida delas, para a aprendizagem e para as relações no Assentamento, bem como relações futuras. “Por isso temos que estar atentos ao que fazemos”, disse a Educadora.

É o que reafirma o princípio pedagógico do MST:

Relação entre prática e teoria: relacionar prática e teoria nos processos pedagógicos, na escola, significa organizar o currículo em torno de situações que exigem respostas práticas dos/das estudantes, respostas que só saberão dar se estudarem muito e se pensarem bastante para relacionar o que encontram nos livros com o que a professora está dizendo, com as coisas que os pais já disseram, o que já observaram em outras situações parecidas com o que estão discutindo entre eles (MST, 1996, p. 11).

Essa ação torna-se uma práxis, pois que fundamentalmente associada à reflexão problematizadora, tal como Freire (2005, p. 42) afirma: “A práxis, porém, é a reflexão e ação dos homens sobre o mundo para transformá-lo. Sem ela, é impossível a superação da contradição opressor-oprimido”. Como constituintes

inseparáveis da práxis, “a ação e a reflexão são a maneira humana de existir” (FREIRE, 2005, p. 47).

Parece-nos, aqui, que a Educadora aplica outro princípio pedagógico do MST “combinação metodológica entre o processo de ensino e de capacitação”, num sentido amplo, pois:

quem ensina é o educador (seja uma professora, a escritora de um texto ou os pais...); quem capacita é uma ATIVIDADE OBJETIVADA, ou seja, um tipo de situação objetiva que provoca a pessoa a aprender para reagir diante de problema concreto que lhe cria (MST, 1996, p. 12).

A capacitação significa “colocar o educando/educanda em relação com a atividade objetivada, ou até inventá-la, se ela não existe na realidade atual. Isto quer dizer provocar necessidades de aprendizagem” (MST, 1996, p. 12). A partir daí, a criança considerada no caso, poderá exercitar o saber fazer por meio do retorno à tarefa de casa, o que os pais certamente poderão acompanhar, na formação de um comportamento ético. Isso está presente em todas as instâncias do Movimento e na formação dos educadores no Curso de Licenciatura: o exercício de uma disciplina em todos os aspectos da vida humana (intelectual, moral, política e social).