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HISTÓRIA DE VIDA: TRAJETÓRIA DE UMA EDUCADORA DO CAMPO

A Educadora se constitui como sujeito histórico na sua trajetória de vida, suas práticas e pelas teorias que compuseram o percurso formativo na Universidade e no Movimento Social, bem como o contexto e os atores da comunidade Oziel Alves, pois são parte de um coletivo educador.

Nas entrevistas a Educadora diz: “sou formada em magistério, trabalhei em uma escola rural seis anos e meio”; ela iniciou sua trajetória ainda bem jovem, atuando inicialmente na Igreja Católica como catequista. É filha de pequenos agricultores. No ano de 2002 casou-se com um assentado – passando a morar no Assentamento Oziel Alves Pereira. Ao chegar ao Assentamento ingressou no MST e, no momento, faz parte do Coletivo de Educação.16 Após um ano residindo no Assentamento, passou a atuar como professora na escola local. “A entrada dela na escola foi uma ação do Coletivo da Educação” (Entrevista Professora Nilva – mãe

16 Instância organizativa composta por vários segmentos da comunidade para colaborar no trabalho

e militante). Em 2005 a Educadora ingressou no Curso de Licenciatura em

Educação do Campo, área de Conhecimento: Ciências da Vida e da Natureza, na UFMG, por indicação da comunidade e concluiu em 2010.

Falando do Curso e da produção da monografia, a Educadora diz:

Nada melhor do que algo da sua prática pedagógica; beneficiou as crianças, de certa forma os pais, beneficiou a mim mesma, o meu trabalho, igual eu tava te falando aquela questão da insegurança às vezes eu era insegura... diante do fato... prá trabalhar a questão da sexualidade, depois ... a partir do meu estudo, do meu aperfeiçoamento, eu hoje trato assim com naturalidade com as crianças, consigo orientar os pais [...].

Aqui, ela vivencia o terceiro princípio pedagógico do MST: “a realidade como

base da produção do conhecimento” (MST, 1996, p. 13) em que utiliza o conhecimento científico para orientar crianças e pais quanto à sexualidade, o que para ela se constituiu uma experiência de aprendizagem.

[...] é uma coisa que se você não me lembra disso que eu fiz eu falo assim... internalizei aquilo e como que já vai tornando normal e cê nem vê aquilo já com os olhos de ... que é estranho, que você aprendeu a partir do Curso e é bem lembrado quando você toca isso, você deu um exemplo bem concreto a gente vai vendo, vai internalizando, vai tornando normal no dia a dia, que aprende, vai colocando em prática e a partir do momento que você aprendeu a lidar com a situação você vai tornando normal que já nem estranha mais então isso vai acontecendo durante todo o curso durante os cinco anos não lembro mais dos primeiros aprendizados que eu já internalizei, já fui colocando em prática. Eu só falo assim que com certeza deu um aperfeiçoamento em tudo, tanto na escrita quanto na leitura, escrever um texto mesmo (EDUCADORA – entrevista individual).

Usar a história de vida como instrumento para análise da trajetória da Educadora foi de suma importância, uma vez que permitiu incorporar as experiências de vida mescladas aos diversos momentos das lutas e contextos sociais vivenciados no Assentamento, quando as professoras impediram a entrada de professores estranhos à proposta pedagógica do MST.

Nossa escola a gente teve que ocupar ela. (A candidata do Assentamento) não tinha formação, não podia concorrer ao edital (de contratação), então teve que ocupar. Tem barreiras para um novo entrar. Tem que mobilizar, porque tem barreira; tem que concorrer ao edital, então eu dobrei (a carga horária) para impedir que um de fora entrasse para não perder a proposta, o espaço que conquistamos. A própria comunidade avisou: não precisa ir para lá concorrer ao edital porque a comunidade não aceita. O fato de ser formada não significa que vai para lá.

Essa aprendizagem confirma o princípio pedagógico número seis do MST no qual “educação é um processo permanente de formação e transformação”, incentivando a participação em todas as lutas sociais concretas dos trabalhadores, “para que se organizem e aprendam também a lutar pelos seus direitos de crianças, de jovens, de estudantes, de alunos/alunas, de mulheres, de homens, de trabalhadores, de trabalhadoras, de participantes da organização, de cidadãos/cidadãs” (MST, 1996, p. 17). Isso favoreceu o entendimento dos componentes históricos presentes na sua formação individual e social/profissional. A sua trajetória materializa, nessa pesquisa, o quinto princípio pedagógico do MST (item 2): “a existência social de cada pessoa é o fundamento (base sobre a qual

se funda) de sua educação”. O que educa/transforma a pessoa não é apenas o discurso, a palavra e a teoria por melhor que sejam. É sim a vivência concreta do novo “[...] será a partir dessa vivência e de tomar consciência dela que irão acontecer mudanças reais na pessoa e poderemos dizer que então se educando” (MST, 1996, p. 10), o que contribui, sem dúvida, na emergência de uma práxis pedagógica emancipadora.

Quando a Educadora fala de sua prática a partir do Curso, o que mudou tanto na escola, como na comunidade, ela se percebe num processo de transformação.

Eu acho que o aprendizado ele vai introjetando na gente aos poucos, né? E parece que quando vai chegando ao final das coisas [...] parece que a gente já nasceu com aquilo, a gente vai aos pouquinhos, a gente vai... é... sendo acrescentado aos pouquinhos. Então, tem hora que cê olha assim e dá impressão que cê não vê muita coisa, né? porque cê já foi tão acostumando ao longo do período de aprendizagem cê vai adequando aquilo, internalizando, que parece que já tava com aquilo há muito tempo e não sente que aquilo é diferente no momento (EDUCADORA – entrevista).

Isso acontece no trabalho pedagógico quando ela se entende como construtora de uma educação emancipatória, mesmo que seja de modo incipiente vivencial e sincrético, porque, como diz Saviani (1996, p. 4)

a construção do pensamento se daria, pois, da seguinte forma: parte-se do empírico, passa-se pelo abstrato e chega-se ao concreto [...]. O pensamento parte do empírico, mas este tem como suporte o real concreto. Assim, o verdadeiro ponto de partida, bem como o verdadeiro ponto de chegada é o concreto real.

Entretanto, esse concreto não é dado e está eivado de elementos subjetivos e das concepções da classe dominante e do senso comum. Por isso, é preciso o método dialético, a compreensão das contradições para passar ao bom senso e à consciência crítica.

Mas se você fizer uma avaliação você vai buscando elemento cê vai vendo como que vai fazendo diferença na vida da gente olha aquilo, vai qualificando o trabalho da gente, o discurso, os posicionamentos assim a gente fica mais seguro das atitudes que toma dá mais coragem a gente prá tomar iniciativa. Então, eu acho que em todos os aspetos contribui. Às vezes eu não consigo te mostrar um fato concreto, no momento que pergunta assim, foge da memória um fato concreto no momento, mas que vai internalizando aos poucos na gente a gente vai mudando aos pouquinhos e quando você dá conta cê já não é mais aquela pessoa que iniciou (EDUCADORA – entrevista individual).

Para os residentes no Assentamento, a participação, o envolvimento da comunidade nas atividades da escola é a grande síntese concreta na compreensão da intencionalidade do Movimento. Segundo Caldart, “o MST sempre procurou desenvolver em sua base social a compreensão sobre os componentes estruturais da luta pela Reforma agrária, e sua relação com o conjunto dos problemas da sociedade” (CALDART, 2004, p. 144).

Conforme os entrevistados, o Coletivo de Educação é um desses espaços que, no Assentamento Oziel Alves vem contribuindo significativamente para uma aproximação à proposta de educação do MST. Buscar conciliar os interesses públicos, ou seja, a proposta de educação do Estado e do Município, com a proposta do Movimento é um desafio para todos, tanto as educadoras que atuam na escola, quanto o próprio Coletivo e a comunidade.

Por isso, “para falar da educadora, primeiro tem que falar da trajetória da educação no Movimento em si. A luta pela terra [...] não tem como desvincular a luta pela terra e a luta pela escola, pela educação. Elas não se separam” (JESSÉ – pai e militante, Entrevista).

Essas entrevistas mostram que os participantes evidenciaram uma compreensão da educação humanista na perspectiva defendida por Ferreira Jr. e Bittar, que afirmam:

A perspectiva humanista da educação que se manifesta em dois momentos distintos, mas dialeticamente interligados: (a) quando faz a crítica da alienação produzida pelo processo educativo engendrado no contexto de uma sociedade fundada no primado da propriedade privada dos meios de

produção, e cujo principal resultado é a mutilação do homem; (b) e, a um só tempo, quando propugna a possibilidade da omnilateralidade humana no âmbito da sociedade revolucionada com base nos pressupostos econômicos, sociais, políticos e culturais defendidos pelo socialismo (FERREIRA JR; BITTAR, 2007, p. 2).

É interessante constatar que todos os segmentos entrevistados apontam a luta pela escola como parte da luta pela terra, luta que não se esgota, mostrando “o lugar da escola dentro da dinâmica social e política que produz” o sentido sociocultural e educativo do MST (CALDART, 2000, p. 53).

O MST ocupa a escola não apenas garantindo que as decisões sobre ela passam por dentro de sua organicidade. Este é um passo importante mas não garante a Pedagogia do Movimento. É a presença dos Sem Terra como sujeitos, como identidade, como modo de vida, no cotidiano da escola o que pode mover a pedagogia (CALDART, 2000, p. 254).

A história de vida da Educadora, mesclada com a história de vida da comunidade, no que se refere à luta por educação e escola, com base nos princípios políticos e educativos do MST, não só referendam esses princípios, mas apontam o Movimento como sujeito educador. O envolvimento da comunidade com a escola expressa o compromisso radical com uma educação baseada nos valores defendidos pelo Movimento, que enfrenta as contradições de um sistema capitalista e expropriador do direito básico de todos à educação, ao contrário do que afirmam as leis do Estado. Em seu Projeto Político emancipador o Movimento busca construir um projeto pedagógico/educativo também emancipador como um valor inalienável na sobrevivência física e cultural da comunidade e do Movimento.