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4 ANÁLISE DO CONTEÚDO LEGAL DOS PROJETOS DE PSA-ÁGUA: AS

4.3 O conhecimento técnico-científico

A execução de práticas conservacionistas para a provisão dos serviços ambientais é imprescindível aos projetos de PSA-Água, pois o pagamento financeiro estará condicionado a uma “adicionalidade ambiental” (WUNDER, 2005). Fugiu à regra o projeto ProdutorES de Água que não focou em “adicionalidade ambiental”, mas conservar as áreas florestais existentes em propriedades rurais, razão pela qual não promoveu nenhuma prática conservacionista. Neste ponto, o projeto Conservador das Águas pela Lei n° 2.100, de 21 de dezembro de 2005 estabeleceu que:

Art. 3° – As características das propriedades, as ações e as metas serão definidas mediante critérios técnicos e legais com objetivo de incentivar a adoção de práticas conservacionista de solo, aumento da cobertura vegetal e implantação do saneamento ambiental nas propriedades rurais do município (EXTREMA, 2005).

No Projeto Piloto Produtor de Água no PCJ, foi o Manual Operativo do Programa Produtor de Água que estabeleceu as práticas a serem adotadas. Contudo, destaca que:

O Programa é flexível no que diz respeito ao tipo de manejo conservacionista a ser adotado nos projetos. Entretanto, o manejo deve observar a relação custo/benefício e a eficácia de abatimento da erosão e, para tanto, cada projeto deverá utilizar os parâmetros básicos disponíveis na literatura técnica (ANA, 2013 p. 20).

Desse modo, o que se aponta, é que a participação do proprietário estará condicionada a determinados critérios técnicos. O “projeto técnico” (BELOTE et al., 2008), ou o “projeto executivo” (PEREIRA, 2013), ou ainda o “projeto ideal” (ANA, 2012) será a base técnica a ser seguida. Tais projetos trazem a situação atual do uso e da ocupação do solo da propriedade e, principalmente, o que se pretende realizar em termos de práticas conservacionistas com suas dimensões quantitativas e qualitativas (ANA, 2013). Portanto, a operacionalização dos projetos de PSA-Água tem imprescindível sustentação no conhecimento técnico-científico.

A prioridade dada ao conhecimento técnico para a definição das práticas conservacionistas, permite realizar dois apontamentos. O primeiro, de caráter mais amplo, se refere à posição privilegiada do conhecimento técnico-científico dentro dos esquemas de pagamento por serviços ambientais, e, por oposição, à não valorização do conhecimento popular como conhecimento válido para explicar fenômenos da natureza e da realidade social. O segundo, de caráter mais específico, se refere à desconsideração do conhecimento local e ao que tal descaso pode levar: o não engajamento dos proprietários dentro dos projetos de PSA- Água.

A primeira questão nos leva a uma das funções do conhecimento técnico-científico dentro de um esquema de PSA. Tal como conceituado por Wunder (2005, p. 3) o PSA é ou deve ser “uma transação voluntária na qual um serviço ambiental bem definido ou uma forma de uso da terra que possa assegurar este serviço é comprado por pelo menos um comprador de pelo menos um provedor sob a condição de que o provedor garanta a provisão deste serviço”. Nessa direção, no âmbito de um potencial mercado de compra e venda de serviços ambientais, o conhecimento técnico-científico terá a função de garantir a confiabilidade entre as partes. Pois, negociar em mercado é fazer uma promessa. Quanto mais complexo for o mercado, mais

garantias os compradores exigem antes de poder confiar nas promessas originais sobre a qualidade e a quantidade da negociação. Logo, será o conhecimento técnico-científico, e não o popular, que garantirá ao comprador do serviço ambiental a certeza do que se está comprando. O conhecimento popular pode ser até válido para as trocas em nível local, mas não para convencer compradores a pagar por serviços ambientais. Para esta última situação, é um protocolo de monitoramento direto com base científica para a comprovação de que os serviços ambientais estão sendo gerados (PORRAS; AYLWAR; DENGEL, 2013).

Entretanto, os projetos aqui analisados se vinculam a políticas públicas e não a mercados de serviços ambientais. Se tal configuração não exime a comprovação que os gastos públicos estejam tendo os resultados esperados, alguns autores sugerem aí um menor grau para comprovar eficácia (PAGIOLA; GLEHN; TAFFARELO, 2013).

De toda forma no caso de políticas públicas, podemos pensar no conceito de PSA de autores como Muradian et al. (2010) que definem o PSA como uma transferência de recursos entre atores sociais, a qual objetiva criar incentivos para alinhar decisões individuais ou coletivas de uso da terra com o interesse social na gestão de recursos naturais. Mesmo neste caso, o conhecimento popular não será útil dentro dos esquemas de PSA. Por esta razão, confia-se no “projeto técnico”, nos “critérios técnicos” e na “literatura técnica” para que haja validade científica. Vale dizer que as principais práticas conservacionistas adotadas pelos projetos estudados contêm o “selo” de centros nacionais de excelência em pesquisa: as barraginhas de contenção de enxurradas, principal técnica utilizada para a conservação do solo, apesar de considerada como uma tecnologia social,13 foram concebidas dentro da EMBRAPA (LANDAU et al., 2013) e os métodos de reflorestamento empregados nos projetos se consolidaram pelos trabalhos de pesquisadores do Laboratório de Ecologia e Restauração Florestal (LERF) da ESALQ/USP. Estes últimos foram adotados como padrão por diversas instituições públicas e ambientalistas que compõem o Pacto pela Restauração da Mata Atlântica (RODRIGUES; BRANCALION; ISERNHANGE, 2009).

A prioridade dada ao conhecimento técnico-científico como base para os esquemas de PSA expõe dois lados distintos. Por um lado, se torna um dos maiores limitadores de sua eficiência devido à complexidade de se comprovar, pelo monitoramento direto, que as práticas conservacionistas geram ganhos quantificáveis do serviço ambiental focado

13 Mesiano e Dias (2008) apresentam como algumas das características de uma tecnologia social, a adaptação a pequenos produtores; não promotora do controle, segmentação, hierarquização e dominação nas relações entre atores e incentivadora do potencial e da criatividade do produtor.

(PORRAS; AYLWAR; DENGEL, 2013). Por outro lado, se torna uma de suas maiores oportunidades, uma vez que exigirá a geração de novos conhecimentos.

A insuficiência de conhecimento científico sobre as milhares de inter-relações que ocorrem dentro e entre os ecossistemas e as respostas destes às intervenções externas está sendo superada pela ciência econômica, que vem fornecendo as ferramentas necessárias para ultrapassar este obstáculo de caráter ecológico, hidrológico, meteorológico, pedológico, microbiológico... por meio da simplificação e quantificação dos serviços ambientais utilizando técnicas indiretas de valoração, como as avaliações contingentes (consentimentos a pagar e a receber) e por indicadores como os custos de oportunidade14. Acredita-se que estes métodos possam alcançar apenas o que Weber (1997, p. 132) chamou de “ “fantasiar” um ecossistema por meio de um valor monetário”. Mas que está sendo suficiente para atrair o interesse de diferentes esferas de governo sobre o mecanismo de PSA-Água no Brasil (VEIGA NETO; GAVALDÃO, 2011; PAGIOLA; GLEHN; TAFFARELO, 2013). E talvez, seja suficiente para atrair compradores para os serviços ambientais.

No entanto, há intensos esforços (a criação de linhas de financiamento nacionais e internacionais, o desenvolvimento de programas e projetos de pesquisa, a criação de revistas científicas especializadas, dentre outros) em direção ao aumento do entendimento das relações entre funções e serviços ecossistêmicos (MURADIAN; RIVAL, 2012), o que fornecerá subsídios para o futuro monitoramento direto e para o maior controle sobre a provisão dos serviços ambientais. Este já é um campo do conhecimento que se abre ao desenvolvimento da ciência ambiental. Entretanto, o aspecto mais importante da geração desse conhecimento da natureza está no que deriva dele, conforme Moreira (1995): a chave para sua utilização produtiva e apropriação privada. Nas palavras de Moreira (1995):

A sociedade despende parte de seu trabalho social na produção deste conhecimento, e que este dispêndio, ou investimento, não é diretamente aplicado a uma propriedade em particular, o direito privado sobre uma parte dos solos vai viabilizar que seu proprietário entre na disputa pela apropriação do trabalho social relacionado à produção deste conhecimento. Seu patrimônio se valoriza, em virtude desta apropriação indireta do conhecimento produzido: as terras férteis objetivam mais valores (MOREIRA, 1995, p. 101).

Mesmo que um proprietário de terras não despenda um níquel de seus recursos próprios, ou um minuto de seu tempo, na produção destes conhecimentos, a propriedade sobre às terras lhe dá o direito de disputa sobre os frutos do progresso técnico aplicado. Este é um poder de mercado, que a propriedade da terra apresenta na competição intercapitalista: ser grande ou pequeno, e estar em posse de terras férteis relativas ao seu tempo social histórico, tem a ver com o exercício deste poder (MOREIRA, 1995, p. 102).

Portanto, o conhecimento científico que será acumulado sobre o funcionamento e sobre os serviços prestados pelos ecossistemas permitirá, impreterivelmente, que os proprietários rurais valorizem seus estabelecimentos rurais através do trabalho socialmente empregado na geração deste conhecimento. A vinculação entre propriedade da terra e propriedade de serviços ambientais realizará a apropriação privada deste conhecimento e da natureza.

Seguindo, o que se deseja aqui, não é questionar a validade do conhecimento técnico gerado com base no método científico, apesar de ser pertinente questionar a real efetividade das práticas conservacionistas para o aumento da quantidade e da melhoria da qualidade da água. Porém, convém interrogar a concepção de uma gestão integrada dos recursos naturais como “a expressão de uma única super-racionalidade, cujo conteúdo técnico se imporia finalmente a cada um com a força da evidência” (GODARD, 1997, p. 235). Nesse sentido, em nenhum documento legal analisado, encontra-se a possibilidade de procurar, de identificar ou de reconhecer conhecimentos locais que poderiam ser incorporados ao escopo de ação dos projetos. Do nosso ponto de vista, além de não se reconhecer a possibilidade da existência destes saberes, perde-se a oportunidade de garimpar inovações. Albagli e Maciel (2006), indicam um conceito abrangente de inovação, que vai além da inovação tecnológica, que valoriza não somente o conhecimento técnico-científico, mas também o conhecimento não formalizado, construído nas práticas socioculturais, a partir do conhecimento tácito.

Desse modo, tão importante quanto a capacidade de produzir novo conhecimento é a capacidade de adaptar/re-contextualizar, recriar e aplicar conhecimento, de acordo com as necessidades e especificidades de cada organização, país e localidade; e, mais ainda, a capacidade de converter esse conhecimento em ação ou, mais especificamente, em inovação (ALBAGLI; MACIEL, 2006, p. 253).

Esta reflexão nos leva ao segundo apontamento de interesse, de nível mais específico, que toma a desconsideração do conhecimento local como um fator que afetará o engajamento dos proprietários, levantando dúvidas em relação à efetividade de longo prazo dos projetos. A inexistência de espaço para a introdução de saberes não técnico à implantação dos projetos pode ser interpretada a partir de uma crença em seu caráter financeiro. Ou seja, a sensibilização, a mobilização e o convencimento para adesão a um projeto de PSA-Água têm como base o pagamento financeiro. Nesta medida, outras dimensões podem ser desconsideradas. Assim, a população rural pode ser menosprezada no momento da formulação da política. A confiança na estrita transferência financeira e no conhecimento

técnico pode ser negativa para atribuir legitimidade à participação social. O voluntariado em oposição às políticas impositivas não garante que o instrumento valorize conhecimentos existentes nas localidades onde estão sendo realizados. Corbera, Kosoy e Tuna (2007) em estudo na Meso-América consideram urgente que os projetos de PSA não se concentrem apenas na negociação por meio de uma transação monetária, mas também invistam na construção de confiança entre prestadores de serviços, usuários e intermediários. Sem esse investimento, aumenta-se o risco de marginalizar alguns provedores, exacerbar históricos conflitos e potencializar as falhas de projetos no longo prazo. Talvez uma postura no âmbito dos PSA voltada à recuperação das raízes culturais e técnicas dos agricultores, ou ainda de confrontação de seu saber-fazer com as técnicas e saberes científicos, poderia constituir apoios valiosos ao êxito das iniciativas, graças ao reconhecimento e valorização das múltiplas funções da agricultura familiar para a sociedade, conforme propõe Sabourin (2009).

Mas a supervalorização do conhecimento técnico-científico reflete uma tendência de influência na concepção nas políticas ambientais de organizações internacionais. Apesar dos projetos de PSA-Água estudados partirem de esferas governamentais, a influência de ONGs ambientalistas internacionais é notável (PAGIOLA; GLEHN; TAFFARELLO, 2013). O Projeto Piloto surge diretamente da iniciativa de uma destas ONGs. Para estes atores institucionais foi dado, ou estes assumiram por conta própria, o papel de difundir o mecanismo de PSA no mundo, recebendo para tal esforço, o apoio de agências multilaterais de financiamento (HRABANSKI; VALETTE, 2012; BONNAL; BONIN; AZNAR, 2012). Desta maneira, é pertinente relacionar a prioridade atribuída à ciência nestes projetos à atuação das grandes ONGs transnacionais, que, segundo MacChapin (2008), mudaram nos últimos anos suas estratégias de ação, conferindo importância central à ciência no lugar do conhecimento local das realidades sociais para determinarem suas agendas. A substituição dos Programas Integrados de Conservação e Desenvolvimento com base na participação local por novas ações com base na ciência é uma tendência recente na atuação destas ONGs (MACCHAPIN, 2008).