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Políticas públicas e a multifuncionalidade da agricultura no Brasil

2 MULTIFUNCIONALIDADE DA AGRICULTURA E PAGAMENTO POR SERVIÇOS

2.4 Políticas públicas e a multifuncionalidade da agricultura no Brasil

No Brasil, o referencial de MFA foi entendido e defendido como base para reconhecer, valorizar e apoiar à agricultura familiar por meio de políticas públicas de caráter territorial (MALUF, 2002; CAZELLA; BONNAL; MALUF, 2009). Como coloca Bonnal, Cazella e Maluf (2008),

[...] introduzir o caráter multifuncional da agricultura nas políticas de desenvolvimento territorial implica prever um debate societário sobre as vantagens e desvantagens de se transferir recursos públicos para a melhoria das condições de vida no meio rural. Assim, as operações implementadas no meio rural, que ainda carregam a marca do assistencialismo, podem passar a vincular seus subsídios em troca de benefícios para a sociedade em geral, como a preservação do meio ambiente, da biodiversidade e das paisagens, o alívio da pressão antrópica nos centros urbanos ou a produção de alimentos de qualidade (BONNAL; CAZELLA; MALUF. 2008 p. 222).

No contexto brasileiro, o referencial de MFA não chegou a se consolidar como ocorreu no contexto europeu. A partir de 2003 (Governo Lula), os programas públicos vêm atribuindo novos e ampliados papéis à agricultura familiar, mas a assimilação do referencial de MFA ocorreu quando alguns de seus elementos foram incorporados ao debate público e em algumas políticas públicas, mas de forma fragmentada e quase sempre acessória ao eixo principal de programas (BONNAL; MALUF, 2009). Dentre os programas que incorporam elementos da MFA, destacam-se: o Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar (PRONAF) como potencial dinamizador de atividades econômicas rurais (MALUF, 2002), mas também, com potencial para influenciar dimensões sociais, ambientais e culturais (MORUZZI MARQUES, 2003); o Programa Fome Zero mais focado em garantir a segurança alimentar e nutricional da população pobre. Neste âmbito, nasceu o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA) que integra o apoio à comercialização dos produtos da agricultura familiar com ações de combate à fome, o que estimula transformações sociais, econômicas, ambientais e produtivas (MORUZZI MARQUES; LE MOAL; FREITAS, 2014); o Programa de Desenvolvimento Sustentável dos Territórios Rurais (PRONAT) com foco na organização social dos territórios rurais; e o Programa de Desenvolvimento Socioambiental de Produção Familiar Rural na Amazônia (PROAMBIENTE) mais direcionado à gestão dos recursos naturais (BONNAL; MALUF, 2009).

Entretanto, foi dentro das políticas de desenvolvimento territorial rural que o referencial de MFA ganhou maior relevância (BONNAL; MALUF, 2009). Neste sentido, oportuno apontar o caso do PRONAT, que, para Leite (2010), esteve no centro da formação da própria Secretária de Desenvolvimento Territorial (SDT) do Ministério de Desenvolvimento Agrário (MDA) e que reconhece a criação de territórios rurais no Brasil, garantindo o apoio necessário ao desenvolvimento dos mesmos por meio de programas públicos. Dentro deste programa o território é definido como:

[...] um espaço físico, geograficamente definido, geralmente contínuo, compreendendo a cidade e o campo, caracterizado por critérios multidimensionais – tais como o ambiente, a economia, a sociedade, a cultura, a política e as instituições – e uma população com grupos sociais relativamente distintos, que se relacionam interna e externamente por meio de processos específicos, onde se pode distinguir um ou mais elementos que indicam identidade e coesão social, cultural e territorial (LEITE, 2010, p. 113).

Bonnal e Maluf (2009), estudando um grupo de programas públicos2 sob a óptica da adesão ao referencial de MFA, chegaram ao entendimento de que há diferentes visões sobre o papel e a forma de organização da agricultura familiar na sociedade brasileira, assim como são diversas as traduções dessas visões em termos de políticas públicas. Porém, a MFA não se apresentou como um enfoque-chave na formulação de políticas públicas de desenvolvimento rural. Os autores concluem que a dimensão produtiva da atividade agrícola representa, em última instância, o foco predominante e a principal justificativa para a implementação dessas políticas.

Para Martins (2005), a falta de tradição na condução de políticas públicas estrategicamente direcionadas às áreas rurais seria uma das razões da MFA e da gestão ambiental por agricultores familiares serem de difícil assimilação na sociedade brasileira. Vale lembrar que é somente no momento que emerge o processo de transição democrática, que culmina com a Constituição Federal de 1988, que ocorre a emergência da agricultura familiar como categoria sociopolítica, quando começam a ser elaboradas políticas públicas específicas, rompendo com o tradicional monopólio do poder político no campo pelas elites agrárias (BONNAL; MALUF, 2009).

No entanto, não se pode desconsiderar as disputas que ocorreram na escala das negociações em torno do comércio agrícola internacional como fator de bloqueio da aceitação da noção de MFA. Inclusive, o governo brasileiro se posicionou contra a noção por entendê-la como uma forma de proteção comercial.

Porém, vale destacar que, em 2002, o PROAMBIENTE assumiu o referencial de MFA em sua concepção. Este programa surge da organização de movimentos sociais na região amazônica e teve como objetivo promover o equilíbrio entre a conservação dos recursos naturais e a produção familiar rural por meio da gestão ambiental territorial, do planejamento integrado das unidades produtivas e da prestação de serviços ambientais. Para isso, foram

2 Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar (Pronaf); Programa de Desenvolvimento Sustentável dos Territórios Rurais (PDSTR); Programa Fome Zero; Programa de Instalação de Consórcios Intermunicipais de Segurança Alimentar e Desenvolvimento Local (Consad); Programa de Desenvolvimento Socioambiental da Produção Familiar Rural na Amazônia (Proambiente); Programa Agenda 21; o Programa Arranjos Produtivos Locais e o Programa Gestão da Política de Desenvolvimento Regional e Ordenamento Territorial (BONNAL; MALUF, 2009).

propostas seis linhas de ação: 1) Controle Social, com a proposta de criar Conselhos Gestores do programa; 2) Planejamento Territorial, com a proposta de criar Planos de Desenvolvimento Sustentável; 3) Planejamento Econômico e Ecológico Integrados das Unidades de Produção, com a proposta de elaboração participativa do Plano de Utilização da Unidade de Produção; 4) Assessoria Técnica e Extensão Rural (ATER), com a proposta de estruturação de equipe técnica local, 5) Certificação Mista de Serviços Ambientais e, 6) Remuneração por Serviços Ambientais (SA). No que se refere aos SA, o programa propôs a certificação por meio de um Acordo Comunitário de Serviços Ambientais, quando em um processo de acordo interno seriam formalizados os manejos passíveis de remuneração, estabelecidas metodologias de verificação participativa de SA, identificados os cumpridores e os não cumpridores dos acordos e firmados os meios coletivos de resolução de conflitos. Em um processo externo, foi proposto obter uma normalização oficial chamada de “Certificação de Serviços Ambientais” que seria legitimada pelo Instituto Nacional de Metrologia, Normalização e Qualidade Industrial. A proposta de transferência de renda, sob critérios ecológicos, deveria ser por meio da constituição de um fundo governamental alimentado por ecotaxas de empreendimentos que impactam o meio ambiente (MATTOS, 2011).

A experiência do PROAMBIENTE obteve sucessos, mas enfrentou grandes obstáculos que impossibilitaram a efetivação de algumas de suas propostas (MATTOS, 2011). Mas o importante, aqui, é demonstrar a amplitude dos temas que uma política pública com um enfoque na valorização das múltiplas funções da agricultura pode assumir. Dentre estes temas pode estar incluído o reconhecimento e a valorização da prestação de SA gerados pela agricultura e pelos agricultores para a sociedade como um todo. Neste sentido, o mecanismo de PSA se mostra compatível com o intuito de reconhecer e de valorizar não somente a dimensão ambiental, mas dimensões social, cultural e territorial dentro de uma política pública.

No entanto, como entende Sabourin (2007) sobre o que poderia ser incorporado por políticas públicas nos países do Sul como MFA, o relevo seria para a identificação e a valorização de dispositivos coletivos de gestão de recursos naturais, estes assentados em valores não mercantis. Uma política de MFA consistiria em facilitar, assegurar ou apoiar o funcionamento, a reprodução, a adaptação e a perenidade de dispositivos coletivos de interesse público. O autor, estudando iniciativas de gestão coletiva de recursos naturais no Nordeste, chegou a propor que o Estado brasileiro teria a oportunidade, por meio de políticas públicas, de reconhecer (reconhecimento jurídico, político e territorial) e de apoiar (apoio

técnico, pedagógico, organizacional, institucional e econômico) o funcionamento e a gestão de dispositivos coletivos que gerem serviços ambientais (SABOURIN, 2009).

2.5 Políticas públicas de pagamento por serviços ambientais no âmbito internacional