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Políticas públicas e a multifuncionalidade da agricultura no contexto internacional

2 MULTIFUNCIONALIDADE DA AGRICULTURA E PAGAMENTO POR SERVIÇOS

2.3 Políticas públicas e a multifuncionalidade da agricultura no contexto internacional

sua trajetória de incorporação na agenda política, com vocação de se tornar um referencial para formular políticas públicas. Aqui, as políticas públicas são entendidas como “o conjunto de intervenções, programas, projetos que são formulados, coordenados ou executados pela iniciativa pública, o Estado” (JONES, 1970 citado por TONNEAU; SABOURIN, 2007, p. 286). Porém, considera-se que a formulação das políticas públicas envolve a construção de uma representação da realidade sobre a qual se deseja intervir, é sobre esta imagem chamada de “referencial”, que os atores sociais interpretam os problemas, confrontam soluções e definem suas propostas de ação (MULLER, 2002). Seguindo Muller (2002), há um referencial global que é uma representação geral em torno da qual vão se ordenar e hierarquizar as diferentes representações setoriais e, um referencial setorial que é a representação do lugar e do papel de um setor numa sociedade determinada numa época determinada, mas que se caracteriza por se articular com o referencial global.

Neste sentido, para Bonnal (2010), o referencial de MFA foi utilizado para tratar principalmente de três tipos de questões, situadas em diferentes escalas de governo: 1) da regulamentação comercial agrícola, no nível internacional; 2) da legislação relativa às políticas agrícolas no nível de comunidade europeia; e 3) da definição de políticas agrícolas no nível nacional em uma série de países classificados como desenvolvidos, mas não exclusivamente. De algum modo, estas questões estão inter-relacionadas.

Tomamos a trajetória de operacionalização da MFA a partir da sua estreita relação com as transformações que ocorreram na PAC. Desse modo, dois aspectos são centrais, o da liberalização das políticas econômicas e agrícolas no âmbito da CE e o da tomada em consideração da dimensão ambiental dentro da PAC (DELORME, 2003).

A PAC foi instituída em 1962 e visou constituir “uma parceria entre a agricultura e a sociedade, entre a Europa e os agricultores europeus” (CE, 2013a, p. 3). Criada como a principal política da CE, a PAC buscou fomentar e subsidiar agricultores para que estes garantissem a segurança alimentar da população após a Segunda Guerra Mundial. Desde então, desempenhou papel central no processo de modernização da agricultura europeia, de proteção do seu mercado agrícola e de seus agricultores (ROUX, 2011). Em 1992, ocorreu a primeira reforma da PAC - resultado de pressões multilaterais e dos acordos derivados da Rodada Uruguai (momento que se cria a Organização Mundial do Comércio - OMC) - visando à redução e à eliminação de tarifas e de barreiras não tarifárias ao comércio agrícola europeu, agindo em direção da sua maior liberalização (DELORME, 2003; BONNAL; BONIN; AZNAR, 2012). Na ocasião, a CE promoveu a redução de subsídios aos seus preços agrícolas, aproximando-os dos preços agrícolas mundiais. Em contrapartida, foram estabelecidas as chamadas ajudas diretas compensatórias com o intuito de não permitir a perda de renda dos agricultores (ABRAMOVAY, 2002; ROUX, 2011). Vale pontuar que parte das ajudas diretas aos agricultores foram vinculadas ao cumprimento das chamadas “medidas agroambientais” (MEAs), também instituídas em 1992 (ROUX, 2011). A aceitação desta estratégia em nível de comércio internacional ocorreu devido a OMC estabelecer como legítimo o apoio às chamadas “dimensões não mercantis da agricultura”, concepção que não era sinônimo da de MFA (MALUF, 2002), mas que acabaram se confundindo. De todo modo, a estratégia das ajudas diretas, entendida como uma forma de proteger o mercado agrícola europeu (ABRAMOVAY, 2002), promoveu uma polarização nas negociações dentro da OMC entre os países que foram chamados de “amigos da multifuncionalidade”, os quais eram os mais protecionistas de seus mercados agrícolas (CE, Coreia do Sul, Japão, dentre outros), e outro que foi chamado de “Grupo de Cairns”, composto principalmente por países agroexportadores (como Brasil, Argentina e Austrália), que defendiam maior liberalização dos mercados e rejeitaram a política de apoio à MFA (BONNAL; BONIN; AZNAR, 2012).

Paralelamente ao contexto do comércio internacional, há a tomada em consideração da questão ambiental na estrutura da PAC, que emerge da leitura dos impactos negativos da agricultura sobre os recursos naturais (DELORME, 2003). Neste sentido, são as MEAs que materializam as preocupações ambientais dentro da PAC, mas também visavam influenciar

outras dimensões do rural (RÉMY, 2004; ROUX; BOINON, 2010). As MEAs estabeleceram, por meio de contratos entre agricultores e Estado, as ajudas financeiras diretas aos agricultores que deveriam realizar ações para a proteção das águas, para a manutenção da biodiversidade, para a proteção das paisagens, para aderir à agricultura biológica, dentre outras ações (ROUX; BOINON, 2010; ROUX, 2011). As MEAs eram voluntárias, mas a partir de 2005, se tornaram obrigatórias para os países que recebiam recursos da PAC (ROUX, 2011). De todo modo, a trajetória de tomada em consideração das questões ambientais, mas também, de outras questão que não necessariamente estavam relacionadas ao mercado agrícola, leva à segunda reforma da PAC em 1999, quando ocorreu uma separação mais clara entre temas relacionados à gestão dos mercados e aos auxílios diretos, que foram alocados no chamado “primeiro pilar”, dos temas ligados ao desenvolvimento rural alocados no “segundo pilar”, no qual foi possível assumir explicitamente o referencial de MFA para formular novas políticas públicas (ROUX, 2011).

Neste caso, conforme Bernstein, Cooper e Claassen (2004), a CE utilizou dos programas agroambientais para apoiar preços agrícolas, renda ou ambos, mas também para aumentar as amenidades ambientais. Assim, as políticas agroambientais frequentemente têm objetivos duplos de proteção ambiental e de apoio à renda dos agricultores. De todo modo, a prioridade da PAC é investir no mercado agrícola, pois o seu orçamento 2007-2013 foi distribuído em cerca de 80% para o primeiro pilar e 20% para o segundo pilar (CE, 2012), o que corresponde a mesma proporção prevista para o orçamento 2014-2020 (CE, 2013b), o que significa destinar apoio mais consistente à agricultura produtivista em detrimento do desenvolvimento rural (BONNAL, 2010).

Porém, não se pode negligenciar a tomada em consideração da noção de MFA, sendo a França o país a ser destacado por seu compromisso em levar à prática este referencial, ainda mais considerando sua importância agrícola e seu grande acesso aos recursos da PAC.

A França foi um dos principais países a assumir a noção de MFA. A sua Lei de Orientação Agrícola de 1999, no seu 1° Artigo estabeleceu que a política agrícola:

[...] “leva em consideração as funções econômicas, ambiental e social da agricultura e contribui com o ordenamento do território, almejando um desenvolvimento sustentável.” Assim, “trata-se do reconhecimento da multifuncionalidade da agricultura, o que significa que o exercício da agricultura não implica somente produzir, mas também contribuir para a harmonia das paisagens, o respeito ao meio ambiente e a manutenção da vida no campo.” (RÉMY, 2004, p. 21).

Foi essa lei que possibilitou a criação do principal instrumento de política pública que operacionalizou o referencial de MFA, o Contrato Territorial de Estabelecimento (CTE) (MALUF, 2002; RÉMY, 2004; ROUX; BOINON, 2010; ROUX, 2011). O CTE teve início em 2000 e visava estabelecer compromissos, por meio de contratos, entre pessoas físicas ou jurídicas e o Estado no sentido de uma reorientação nas formas de produção agrícola e de conservação dos recursos naturais (RÉMY, 2003; ROUX; BOINON, 2010). A particularidade da concepção deste instrumento foi o reconhecimento de que o modo de funcionamento do estabelecimento rural era importante para a conservação dos recursos naturais, mas igualmente fundamental para a reprodução socioeconômica da família, para a produção de alimentos, para a manutenção da paisagem e do território. Enfim, a agricultura praticada nos estabelecimentos rurais desempenha um papel social muito além da produção.

O CTE investiu na vertente socioeconômica, encorajando os agricultores a melhorarem sua eficácia e na vertente ambiental/territorial, estimulando sistemas de produção que considerassem demandas sociais em matéria de qualidade dos produtos, de respeito ao meio ambiente e de equilíbrio dos territórios (ROUX; BOINON, 2010).

O CTE, mesmo envolto a contradições e problemas, conseguiu certo sucesso junto aos agricultores que se empenharam na sua operacionalização. Porém, em 2002, foi substituído pelo Contrato de Agricultura Sustentável (CAD), que começou a funcionar em 2004. Este novo instrumento promoveu modificações em relação à antiga lógica do CTE, tendendo a ser mais focado aos aspectos ambientais, pois priorizou linhas de apoio destinadas a áreas prioritárias para a conservação ambiental (RÉMY, 2004; ROUX; BOINON, 2010). Contudo, em 2007, o CAD foi substituído pelas MEAs, que já existiam no âmbito da PAC e seguiam o modelo contratual (BONNAL; BONIN; AZNAR, 2012).

No entanto, em 2013, foi aprovada a chamada “Lei do Futuro” (Loi d’Avenir pour l’agriculture, l’alimentation et la forêt) da agricultura francesa, que retoma a MFA como referência para a política rural, uma vez que a elaboração e coordenação desta lei foi dada ao sociólogo Bertrand Hervieu considerado um dos “pais” da chamada lei da multifuncionalidade agrícola de 1999 (BÚRIGO; CAZELLA, SENCÉBÉ, 2014).

De todo modo, as MEAs investem por meio de novas práticas de produção agrícola em um novo conceito de ruralidade, o qual supera o olhar setorial e potencializa as possibilidades de desenvolvimento territorial de áreas rurais (MARTINS, 2005). As MEAs passam a ser incorporadas dentro de um desenvolvimento com vários objetivos, incluindo as dimensões social, ambiental e territorial (DUCOS; DUPRAZ; BONNIEUX, 2009), tendo os objetivos de diminuir os efeitos negativos da agricultura intensiva e o de convertê-la em uma agricultura

mais sustentável (ROUX; BOINON, 2010). Ainda, para Billaud (2014), a política agroambiental tem o potencial de estabelecer uma democracia participativa para a agricultura devido ao estabelecimento de acordos entre diferentes atores no que versa sobre objetos como os recursos naturais.

Na França, as MEAs objetivam financiar a mudança de práticas agrícolas com vistas à geração de benefícios globais sobre a preservação da biodiversidade e dos recursos hídricos, além de buscar prevenir riscos naturais e manter atividades agrícolas em zonas com desvantagens naturais por meio de compensações. Para alcançar tais objetivos foram criados diferentes dispositivos, tais como: a) os que apoiam à pecuária extensiva em pastagens nativas, visando o estoque de carbono e o combate às mudanças climáticas; b) os que incentivam agricultores a utilizar a rotação de culturas com o intuito de reduzir o uso de defensivos agrícolas e melhorar a qualidade da água; c) os que apoiam a conversão e a manutenção da agricultura biológica; d) os de proteção de cultivares ameaçadas de extinção para reduzir a erosão genética de espécies animais e vegetais; e, e) os que apoiam agricultores em locais prioritários para a preservação e recuperação da qualidade da água e da biodiversidade (FRANÇA, 2012).

Apesar da França ter destaque, cada país membro da CE estabelece seu conjunto de MEAs de modo específico, que pode variar dentro do próprio país devido as prioridades regionais. Na Suíça, o pagamento ecológico direto é feito desde 1992 para quem protege a biodiversidade e evita a poluição da água por nitrogênio e por fósforo (ROYER; GOUIN, 2007). Na Região de Walloon na Bélgica, cada medida é direcionada ao aspecto da agricultura que o governo deseja encorajar, como exemplo, apoiar jovens agricultores a adquirir estabelecimentos rurais e investir na fazenda (ROYER; GOUIN, 2007). Em Portugal, o enfoque é proteger paisagens formadas por agroecossistemas e por áreas protegidas, assim, investe-se em medidas que reduzam os impactos da agricultura convencional sobre os ecossistemas (SANTOS; VIVAN, 2012). Enfim, as MEAs assumem por meio de diferentes dispositivos a valorização e o apoio às múltiplas dimensões da agricultura e do mundo rural europeu.