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4 ANÁLISE DO CONTEÚDO LEGAL DOS PROJETOS DE PSA-ÁGUA: AS

4.2 A racionalidade econômica

O mecanismo do PSA se consolida em uma transação quando um agente remunera financeiramente outro para a provisão do serviço ambiental (WUNDER, 2005). Em Extrema/MG, esta transação ocorre entre a Prefeitura Municipal e os proprietários rurais. Os dois primeiros artigos da Lei n° 2.100, de 21 de dezembro de 2005 mostram que o apoio financeiro é destinado à melhoria da qualidade e quantidade das águas no município, e que a adesão dos proprietários rurais será o meio para alcançar este fim.

Art. 1° - Fica criado o Projeto Conservador das Águas, que visa à implantação de ações para a melhoria da qualidade e quantidade das águas no município de Extrema. (EXTREMA, 2005)

Art. 2º - Fica o Executivo autorizado a prestar apoio financeiro aos proprietários rurais habilitados que aderirem ao Projeto Conservador das Águas, através da execução de ações para o cumprimento de metas estabelecidas. (EXTREMA, 2005)

No Espírito Santo, o governo do estado se propôs a recompensar financeiramente o proprietário rural em função da sua contribuição para a conservação e recuperação dos serviços ambientais. A Lei n° 8.995, de 22 de setembro de 2008 diz:

Art. 2° - O PSA tem como objetivo recompensar financeiramente o proprietário rural, em função do valor econômico dos serviços ambientais prestados por sua área destinada para a cobertura florestal [...] (ESPÍRITO SANTO, 2008). Nos Comitês PCJ, o Projeto Piloto segue integralmente o Manual Operativo do Programa Produtor de Água da ANA, que teve a sua segunda edição aprovada pela Portaria n° 196, de 30 de agosto de 2013 e que orienta o desenvolvimento e habilita projetos e às formas de apoio prestado aos parceiros no âmbito do Programa (ANA, 2013). Os recursos se destinam aos proprietários rurais com vistas a garantir a melhoria da qualidade, o aumento e a regularização da vazão hídrica.

O Programa Produtor de Água apoia projetos de pagamento por serviços ambientais de proteção hídrica que visem promover a melhoria da qualidade e a ampliação da oferta das águas e a regularização da vazão dos corpos hídricos (ANA, 2013).

Estes componentes do corpo legal destas iniciativas públicas mostram as dimensões nucleares da transação que os projetos de PSA-Água estabelecem: a ambiental e a financeira. Nota-se que o objetivo central dos projetos é a melhoria ou a manutenção das condições ambientais relacionadas aos recursos hídricos, e, para alcançá-las, será utilizada uma transferência monetária. Nesse ponto, abre-se duas possibilidades para entender o papel dos projetos de PSA-Água no contexto da conservação ambiental no meio rural. A primeira refere-se à transação estabelecida para reconhecimento da função da população rural como gestora dos recursos naturais no espaço rural. A segunda diz respeito à prioridade da racionalidade econômica para efetivar a gestão dos recursos hídricos no meio rural. Como será discutido abaixo, focalizamos nesta segunda possibilidade para esclarecer os fundamentos que determinam a existência dos projetos de PSA-Água, o que traz

preocupações críticas tomando-se em consideração o referencial da multifuncionalidade da agricultura.

Entende-se aqui, que o intuito de recompensar, incentivar ou apoiar financeiramente proprietários rurais como meio para a melhoria das condições ambientais pode se afastar de uma concepção privada e monetarizada da natureza quando veicula que as decisões e ações destes atores favorecem um conjunto mais amplo da sociedade. Desse modo, o pagamento representará mais que uma transferência monetária, mas um reconhecimento público da importância que estes atores possuem para a sociedade (CARNEIRO, 2014). A transação monetária, aqui materializada nos projetos de PSA-Água, carrega tal possibilidade de reconhecimento e de valorização social destes atores, que em muitos contextos são vistos negativamente como degradadores do meio ambiente (MALUF, 2003). Talvez o texto legal estabelecido para o ProdutorES de Água no Espírito Santo se aproxime mais desta abordagem, pois traz antes como objetivo, recompensar o proprietário rural. No entanto, a questão posta é se a transferência monetária seria a melhor opção para tal possibilidade, uma vez que se configura como um instrumento econômico e que coloca, de qualquer modo, em primeiro plano a racionalidade econômica.

Neste sentido, a transferência monetária como expressão da racionalidade econômica se ancora no princípio segundo o qual todos os indivíduos agem com o fim último de maximização de seus ganhos monetários. Nesta medida, trata-se de uma contraposição a uma concepção de “racionalidade mais ampla” que tem correspondência em outras estruturas de um sistema social – parentesco, religião, cultura, economia, dentre outras (GODELIER, 1965, p 391). Tal entendimento fica ainda mais claro quando se considerar sob quais concepções os projetos de PSA-Água se acoplam.

No Brasil, a adoção de instrumentos econômicos para a gestão dos recursos hídricos vem se intensificando desde a década de 1990, quando para alcançar a racionalização dos usos trouxe na PNRH os princípios do usuário-pagador e do poluidor-pagador (LANNA, 1999). O mecanismo de PSA-Água incorpora outro princípio, o do provedor-recebedor. Mesmo que a aplicação de instrumentos econômicos não exija a criação de mercados de trocas (WUNDER, 2013), estes necessitam da criação de valores monetários. Para Ioris (2010) foram estes princípios que permitiram o estabelecimento do valor monetário da água no país. A base legal dos projetos estudados não transparece a busca por estruturar mercados de serviços ambientais, mas como coloca Ioris (2010), o princípio do provedor-recebedor transmite a mensagem da água como um insumo produzido e produtivo, e não como uma substância vital. A água se torna um recurso com estoques a serem explorados racionalmente (WEBER, 1997).

Ademais, o termo “prestadores de serviços ambientais” empregado nos projetos de PSA-Água por toda a América Latina (MARTIN-ORTEGA; OJEA; ROUX, 2014; PAGIOLA; GLEHN; TAFFARELLO, 2013) transmite a mensagem de que há estruturado um mercado de bens e serviços, onde os proprietários rurais prestam um serviço para quem está pagando, não necessariamente para a sociedade, mesmo quando o Estado é o financiador do pagamento. Com efeito, a terminologia empregada expressa a lógica do mecanismo. Assim, é pertinente a analogia ao petróleo, tal como proposto por Petrella (2004) com sua noção de “petrolinização da água”. Trata-se de considerar que a água in natura é um bem comum, mas a partir do momento que há uma intervenção humana (neste caso a prestação do serviço ambiental), ela deixa de ser um bem comum natural e passa a ser um bem econômico, objeto de troca e de apropriação privada. Portanto, a racionalidade do mecanismo do PSA-Água, como se apresenta, está diretamente inspirada pela concepção neoclássica de que as operações de livre mercado podem garantir as soluções mais eficientes para as externalidades ambientais (ENGEL; PAGIOLA; WUNDER, 2008; IORIS, 2010; MORAN, 2011).

Entretanto, além da percepção privativa e monetarizada que o mecanismo de PSA-Água como instrumento econômico transmite, deve ser levado em consideração dois aspectos críticos: a efetividade da racionalidade econômica para alterar comportamentos em contextos rurais e em unidades do tipo familiar, e o potencial efeito de obscurecer e até de destruir arranjos locais e comunitários de acesso, uso e manejo da água.

A lógica econômica pode, muitas vezes, não ser tão lógica em contextos rurais e de agricultura familiar. Considera-se que a racionalidade econômica do sistema capitalista, está mais intrinsicamente assimilada pelos setores diretamente inseridos no mercado competitivo; pagar pelo uso da água ou por sua poluição, e de algum modo, receber pelo não uso e pela proteção são cálculos realizados para insumos produtivos, pois o seu consumo refletirá nos custos de produção e no lucro. Para Martins (2006), a relação da sociedade com o meio ambiente também é mediatizada por processos políticos e culturais, o que limita a lógica econômica para efetivar os instrumentos econômicos para a gestão dos recursos hídricos. O autor coloca que a ação racional em sentido estrito é relativa, mesmo nas circunstâncias em que uma conduta econômica pareça ser irracional esta encontra significação em outras dimensões sociais. Godelier (1965, p 392) afirma que “não há racionalidade em si e nem racionalidade absoluta. O racional de hoje pode ser o irracional de amanhã, o racional de uma sociedade pode ser o irracional de outra. Enfim, não há racionalidade exclusivamente econômica”. Com isso, Martins (2006) sugere que é pertinente supor que a cultura do produtor rural sobre seu espaço de produção seja uma variável-chave na construção de

qualquer modelo institucional que procure influenciar seus critérios de uso dos recursos. Pensando sob o referencial de multifuncionalidade da agricultura, um modelo institucional assumido por políticas públicas deveria legitimar a percepção do agricultor como um ator social que tem várias inserções na sociedade, tendo a peculiaridade de fazer da sua profissão um modo de vida, rompendo com a percepção do agricultor movido exclusivamente por uma racionalidade econômica (CARNEIRO, 2014).

Para a eficiência dos mecanismos econômicos na gestão dos recursos naturais ainda se impõe outras limitações. Godard (1997) indica que:

...esses mecanismos apreendem apenas uma parte dos recursos ou dos aspectos pertinentes decorrentes da gestão dos recursos; e a lógica implícita corresponde a um tempo econômico inadequado para fundamentar uma gestão prospectiva dos recursos em suas interações com as opções de desenvolvimento (GODARD, 1997, p. 222).

Ainda, a priorização da racionalidade econômica para imputar mudanças de comportamento deve ter sua efetividade questionada no meio rural, principalmente quando se considera o uso da água, que, em muitos casos, é regulado por delicados arranjos não econômicos de acesso e de uso cimentados por relações historicamente construídas e fortemente assimiladas pela população local (GALIZONI, 2005). É isso que mostra a tese de Galizoni (2005) desenvolvida em comunidades rurais no município de Bom Repouso no sul de Minas Gerais, localidade onde os direitos de propriedade da terra são claramente definidos. Essa tese nos interessa, pois esse município está localizado a apenas 65 quilômetros do município de Extrema e bem próximo da região considerada crítica para a gestão dos recursos hídricos que é a área de contribuição dos reservatórios do Sistema Cantareira. A autora encontra nas comunidades estudadas que o acesso à água não está determinado pela propriedade da terra, o dono da propriedade rural não é dono da água, pelo contrário, a partilha é o imperativo social, todos que necessitem podem ter acesso às diferentes fontes de água. Os arranjos que estruturam o acesso à água estão assentados, principalmente, sobre relações de parentesco e de vizinhança, construídos e consolidados por relações de reciprocidade. Nestas comunidades, a população local tem a concepção de que a água é uma dádiva divina, o que determina uma marcada oposição à concepção de “produção de água”, ou seja, se ninguém influi na produção da água, ninguém pode mandar nela, nem vendê-la, portanto, a gestão é da comunidade e não do indivíduo (GALIZONI, 2005). Estas descobertas marcam o ponto diametralmente oposto ao qual se encontra as concepções propostas pelos projetos de PSA-Água e pelo Programa Produtor de Água da ANA.

De fato, os projetos de PSA-Água estudados ocorrem onde há o fenômeno da chegada de moradores provenientes de grandes cidades, característica do que Carneiro (2012) chama de “ruralidades contemporâneas”. Devido a essa característica, acredita-se que percepções mais utilitaristas e individualistas sobre o acesso à água ganhem espaço, mas que não chegam a suprimir as relações de reciprocidade e partilha tradicional. No entanto, o que se aponta é que a legislação que cria os projetos de PSA-Água em nenhum momento propõe identificar, entender ou reconhecer os arranjos locais de acesso e uso da água, que por sinal, devem estar mais próximos do que estabeleceu a PNRH, tratar a água como bem de domínio público. Ao contrário, os obscurecem e ainda pode promover a desarticulação destes arranjos com a transmissão de uma perspectiva privativa e individualista. Percebe-se assim, conforme Godard (1997), que o desenvolvimento da economia moderna apoiada sobre a expansão dos mecanismos econômicos e de mercado e das diferentes formas de administração pública, tem promovido à desarticulação e o desaparecimento de modos de gestão dos recursos naturais com base em enfoques comunitários chamados de “tradicionais”.

Por fim, para Ioris (2010), a lógica de mercado por detrás de PSA-Água é fundamentalmente baseada em uma relação utilitária entre as pessoas e a natureza, que ignora as capacidades das populações locais para apreciar o valor e proteger espontaneamente sua base ecológica. Avança dizendo que as mudanças na política para a conservação da água como a privatização utilitária e o estabelecimento dos princípios usuário-pagador e poluidor- pagador mostraram resultados desapontadores. Os instrumentos econômicos não serviram para melhorar a gestão dos recursos hídricos. A prioridade da racionalidade econômica para solucionar problemas da água somente perpetua um sistema de exploração ambiental e de exclusão social que historicamente caracteriza a gestão da água no Brasil (IORIS, 2010).