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consegue dar conta de uma unidade dentro de uma multiplicidade, pois é ítalo-brasileiro tanto o imigrante, aquele que era cidadão italiano e veio para o Brasil

no final do século XIX – pois estabelece esse vínculo -, quanto aquele que viveu no tempo de Vargas e, sob o discurso do Estado brasileiro, teve que silenciar na/pela sua voz a língua dos imigrantes, como também aquele que vive hoje e estabelece um vínculo identitário, quer pelo lugar – no caso, a Quarta Colônia, mas Rio Grande do Sul e Brasil – quer com a cultura – seus bens/objetos simbólicos11 –, como por exemplo, a língua ou a memória que por ela se efetiva. Ou seja, perpassam esse sentido questões sócio-históricas, culturais e ideológicas.

Neste trabalho, investigo as construções imaginárias que foram constituindo/estão a constituir, ao longo do tempo, o sujeito ítalo-brasileiro12, permeadas por algo – penso – que está indicando a presença do dano e do desentendimento, – conforme o dizer de Rancière13 –, da ruptura, lugar este que talvez não vai lhe confirmar o sonho, ou, pelo menos, vai fazer com que não seja mais o mesmo. O que registram/dizem/trazem suas memórias? Como se significa, em (seus) monumentos, erigidos/erguidos/construídos nas encruzilhadas das estradas ou nas praças centrais do lugar a que diz pertencer/desenvolver? O que traduzem de sua subjetividade as palavras ditas nas entrevistas sobre o seu palpitar? Que história constroem seus percursos de escritura advindos de constructos de outras gerações? Que memórias ressoam e chegam até mim, que faço parte disso, e que me instigam, quando também já sou outra? Essas são as questões que norteiam este estudo, e dessas materialidades discursivas – consideradas enquanto nível de existência sócio-histórica, com base em Orlandi (2012, p. 44) – é que elegemos/selecionamos/montamos nosso arquivo, mesmo sendo difícil e árdua a tarefa, pois são “objetos” que, muitas vezes, não se encontram cadastrados, registrados, expostos pela/à sistematicidade dos arquivos

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Conforme Zanini (2006).

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A essa questão, ver Zanini (2006), que pontua ser o sentimento de italianidade uma construção em que “descendentes de italianos, no contexto de um encontro interétnico, apropriam-se de determinados símbolos como seus e lhe atribuem valor e significação” (p. 17).

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No decorrer deste estudo, voltaremos a questão do como nos referir a esse sujeito, tendo em vista processos sócio-históricos ao qual está submetido.

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RANCIERE, Jacques. O desentendimento: política e filosofia. Tradução de Ângela Leite Lopes. São Paulo: 34, 1996.

“oficiais”. Foi preciso sair à rua para encontrá-los, pois muitos estavam/estão à deriva, fadados ao esquecimento e à mortalidade de suportes que perecem no tempo; outros estão postos como pedras de/em um caminho, estáticas, mudas, despercebidas pelos passantes ou, quiçá, fazendo sentido sempre. Se nelas se constituíram sentidos, eles são da ordem da evidência, de uma direção de sentidos proposta pelo discurso dominante de outro momento sócio-histórico: era/é preciso vê-los, lê-los e interpretá-los de um diverso lugar. Era preciso propor trajetos outros de leitura.

Diante disso, como constituímos nosso arquivo? Os desafios foram muitos, principalmente porque nosso trabalho se abria a diferentes materialidades discursivas, em seus distintos materiais14 e, consequentemente, distintos modos de tomá-los analiticamente. Os critérios que elencamos para as escolhas tocavam/tocam a questão: o que tem feito (e efeito de) sentido hoje? Que discursos têm circulado na atualidade? Ou, que discursos servem de ancoragem para o que hoje circula? O que diz e o que sustenta esse “mundo semanticamente normal” – comforme o explicitado por Pêcheux ([1983] 2008) –, assentado no logicamente estabilizado e no pouco suscetível a outra possível interpretação? Assim, elegemos livros de memórias familiares, monumentos, com base em Brust (2013)15, cuja temática seja “imigrantes”; entrevistas, em diferentes, porém atuais, momentos, por diferentes sujeitos pesquisadores, alguns mais, outros menos acadêmicos. Desse arquivo, fizemos alguns recortes – considerados, conforme Orlandi (1984, p. 14), como unidade discursiva: “fragmentos correlacionados de linguagem e situação”; “um fragmento de situação discursiva”, com vistas a entender como se processam as relações do sujeito, do discurso, dos sentidos onde vamos buscar respostas para

14 Segundo Orlandi (2011, p. 19), “são materiais de reflexão para todo analista de discurso: os

escritos, as imagens, os ditos, as novas tecnologias, fotos, o silêncio e muitos outros, cada qual com suas especificidades, seus dispositivos analíticos e sua contribuição para a compreensão dos processos de significação”; “materialidade discursiva” quando tais materiais encontram-se em processo de análise, quando em nível de existência sócio-histórica. Por “materialidade significante”, ainda segundo a autora (Ibidem, p. 45), compreende-se “o espaço contraditório de desdobramento das discursividades”, espaço que tem a língua como real específico (os destaques são nossos). Em Nota introdutória à edição brasileira da obra Materialidades discursivas (2016), de Pêcheux et al. (Org.), Orlandi (2016) afirma que a referida noção tem tido seu uso banalizado, sendo confundido com o que já está categorizado nas disciplinas da linguagem, em geral, como “corpus”, como “dados” ou como “objetos de análise”. Para compreendê-la, é preciso saber que se está embasada no campo teórico do materialismo e é por ele o percurso de tal entendimento; em outras palavras, ainda, “processo em movimento, matéria (substância suscetível de receber uma forma)” (ORLANDI, 2016, p. 13).

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Brust (2013), em Dissertação de Mestrado, que trabalha com discursos do sujeito imigrante italiano no perpassar do tempo – especificamente, monumentos –, em que a memória das suas construções e de suas desconstruções circula no trânsito entre a saturação e o apagamento.

nossa questão de pesquisa, tarefa em que a Análise de Discurso sustenta, acompanha-nos e dá-nos instrumentos para proceder às análises. Nossa metodologia, quando iniciamos esse percurso, não estava pronta, apta a uma aplicação – sendo que esse não é o nosso lugar –; mas foi se construindo, conforme a demanda do que nos foi dado a interpretar - o que é próprio dessa disciplina, que se embasa em questões do materialismo histórico e dialético. Seguimos o dito latino cum mente et malleo, o qual remete à ausência da divisão do trabalho (do teórico ao analítico) e ao qual (nos) associamos através do texto de Michel Pêcheux, “Ler o arquivo hoje” ([1984] 2010, p. 49), no qual nos referenciamos e que nos dá como epígrafe a instigante colocação de Michel de Certeau: “A história dos rastros do homem através de seus próprios textos permanece em grande parte desconhecida”, sendo que esse homem (esse sujeito) não é a referência dos grandes nomes da história, mas é o referente de si mesmo, instituindo-se e constituindo-se enquanto tais, ao se fazerem pertencentes a ela, àquela história que não mais se restringirá aos grandes. (Há o sertão, o grande, e há o sertão, o das veredas).

Ao nos determos na leitura e na interpretação destes objetos, promovemos movimentos teóricos não só para atender as inquietações iniciais, mas também para acolher aquelas que ficaram em suspenso, decorrentes do nosso envolvimento com estudos realizados durante a elaboração da dissertação de mestrado – já citada –, em que trabalhamos, fundamentalmente, com a questão da memória. Analisar as produções discursivas do sujeito ítalo-brasileiro da/na e sobre a Quarta Colônia de Imigração Italiana do Rio Grande do Sul que levem ao campo das possíveis respostas para a nossa questão de tese, a saber: como se dá o funcionamento das discursividades 16 produzidas na Quarta Colônia que remetem às construções imaginárias desse sujeito, em relação ao espaço de imigração, em relação a si mesmo e em relação ao outro e em relação à língua na/pela língua? – eis o eixo condutor desta pesquisa. Neste percurso, teoria e análise discursiva se montam e se constroem, por meio de questões que vão se interpondo - pelo que pode advir do próprio objeto, do sujeito-pesquisador, da própria teoria, elementos

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Compreendida como estrutura e acontecimento: discurso inscrito em redes de memória e nos trajetos sociais nos quais irrompe, o que não invalida a questão de que só por sua existência já marca a possibilidade de uma desestruturação ou uma reestruturação dessas redes e trajetos, conforme pontua Pêcheux ([2008] 1983).

que não se fecham em si mesmos. Na sequência, passamos a descrever a estrutura com a qual daremos forma a este trabalho de tese.

O título é “O „sertão‟ Quarta Colônia: travessias pelas subjetivações do sujeito ítalo-brasileiro” e deve/precisa ser explorado a partir da com-junção de dois sujeitos, unidos por um imaginário comum: o do sujeito pesquisador e o do sujeito-objeto pesquisado, ambos em relação à Quarta Colônia de Imigração Italiana. O primeiro se autoriza a fazer do espaço vivido o espaço – e o sujeito desse espaço – a ser pensado em sua tese de doutorado e tem forjada sua identidade17 no corte de ser brasileiro e falar português, atravessado por uma memória de não ter no Brasil o passado dos seus e ouvir/não falar a língua de seus avós, aliada ao fato de que, nesse dito espaço, experimentara “das astúcias da língua”. O segundo é aquele autorizado pelo primeiro a entrar no fio do discurso como uma terceira pessoa, objeto deste estudo: o sujeito que se delimita, que se constitui na fronteira de estar dentro de uma colônia de imigrantes, a qual, ainda que não mais esteja cercada, continua a ter tal inscrição – pela memória que nela, e ao redor dela, habita. Assim, é na travessia (pelo discurso) de ambos, que vai se ver como se formam os imaginários: travessia pelo teórico e pelo analítico de um, pelo tempo e pelo espaço do outro.

Na primeira parte, abordamos elementos relacionados a utopias, imaginários e ilusões. Para isso, traçamos um breve percurso por sentidos que se produzem em torno de utopia e, por eles, buscamos tocar em questões pertinentes à imigração italiana no sul do Brasil, especificamente à Quarta Colônia. Na sequência, ainda na primeira parte, posicionamo-nos em relação ao constructo teórico que nos orienta, a Análise de Discurso de fundação francesa, que tomamos como todo um movimento, de prática e de teoria, de inscrição da/na história, de diálogos e de questionamentos dentro de uma ciência em relação àquilo que a constitui, um movimento em busca de saber dos saberes da Linguística e pensar/elaborar constructos outros pautados por olhares outros, distintos, diferentes, distantes do lugar até então “habitado”. Ainda em referência a utopias, entraremos na especificidade da questão da língua e da história, já, então, dentro das questões tratadas por Michel Pêcheux, a saber: a relação entre as grandes revoluções da Idade Moderna e a questão das línguas e

17 Tomamos a noção de “identidade” em Orlandi (2007, p. 76): “[...], a identidade resulta de processos

de identificação segundo os quais o sujeito deve-se inscrever em uma (e não em outra) formação discursiva para que suas palavras tenham sentido. Ao mudar de formação discursiva, as palavras mudam de sentido”.

das políticas empreendidas, além da ressignificação da história nos estudos da linguagem. Dando continuidade à nossa proposta, trataremos dos imaginários e das ilusões, dando sustentação à noção de sujeito, basilar neste estudo.

Na segunda parte, incursionaremos acerca do sujeito sobre o qual se desenvolve este trabalho, começando com reflexões a respeito de como nomeá-lo, passando por formas com as quais ele próprio se designa e pela questão da(s) língua(s) que o constitui/constituem, pela qual/pelas quais ele se identifica, subjetiva- se, memorializa-se e “recorta” seu imaginário de pertencimento18

(s). Refletiremos, ainda, sobre o processo de territorialização e de urbanização desse sujeito - quando lançamos um outro olhar sobre a “colônia”, ou seja, colônia-sertão-cidade como um espaço de inscrição do sujeito ítalo-brasileiro num espaço maior, dando-se a ver – semdo que finalizaremos com o seu discursivizar-se, o que se dá sob diferentes materialidades discursivas, nas quais, como já referimos, rastrearemos, nas análises, as questões imaginárias e ideológicas que lhes são pertinentes.

Na terceira parte, trataremos, inicialmente, das reflexões que a própria Análise de Discurso faz sobre a construção de sua metodologia de análise. Precisamos trazer isso porque é por esse constructo teórico que temos o suporte para enfrentar, questionar e desconstruir as evidências e as estabilizações imperativas que dizem para onde devemos nos dirigir. Na sequência, como nosso objeto de análise é o discurso, lançaremos um olhar para pensar o discurso – constituído em/por diferentes materialidades discursivas – nos processos discursivos que entram em jogo, visando, com isso, a compreender como os processos imaginários (e ideológicos) do sujeito ítalo-brasileiro materializam-se e relacionam-se entre si. Ainda neste momento, incursionaremos pela forma como instituímos/estamos instituindo o corpus, descrevendo-o. Explicitaremos que livros selecionamos, que monumentos elegemos e quais entrevistas escolhemos, detalhando as condições de produção desses discursos e os critérios adotados para que estes tenham sido selecionados. Neste momento, a partir dos recortes discursivos que relacionamos, juntamente com sua descrição, teceremos considerações, empreenderemos análises, relacionaremos (pelo seguir de um dos

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Com base em Orlandi (2011) em que o sujeito, já individuado, afetado pela língua e pela ideologia, inscreve-se em uma formação discursiva e projeta-se numa posição-sujeito, na sociedade, representando-se como parte do grupo a que “pertence”; a partir disso, na perspectiva discursiva, há o efeito de pertencer: “uma das ilusões que o liga a suas condições sociais de existência”, sendo que, “mais do que símbolos comuns, é o imaginário que solda o grupo” (p. 23).

fios da imbricada teia de fios do discurso) pontos em comum, ancoragens de sujeitos e de sentidos em seus processos discursivos, nos quais habitam imaginários, passando pelas diferentes materialidades em que se constrói esse discurso.

Esse procedimento – já o observamos – tem se constituído em árdua e, paradoxalmente, prazerosa tarefa, pois há que se fazer o trajeto do distanciamento de vivências que compõem nossa (minha) infância. Em cada linha que lemos, em cada voz que ouvimos, em cada monumento que observamos está presente a memória pessoal, da criança que conheceu aquelas pessoas, que escutou - ou que não pôde escutar - suas histórias, que brincou à sombra daquelas corriqueiras construções, porque viveu na Quarta Colônia dos anos 1960, 1970, 1980... – convive ainda – e que reviveu a Quarta Colônia dos anos 1940 e dos anos 1920 pelas lembranças dos seus (nossos), narrativas essas que continuam a ressoar e que agora transitam sob uma outra superfície.

Por fim, procederemos à discussão dos resultados, em que discutimos como se processam as construções imaginárias do sujeito ítalo-brasileiro, relacionadas às que faz dele mesmo, sobre o território/o lugar que passa a ocupar/pertencer, às que tem do outro para quem se dirige e às de sua própria história; depois disso, pensamos nas desconstruções desse imaginário, ou seja, quando suas utopias vão deixando de existir, transformando-se apenas em memória de uma esperança passada num futuro. Afinal, “há todas as espécies de razão para que um X entenda e não entenda ao mesmo tempo um Y” (RANCIÈRE, [1995] 1996, p. 12). Esse sujeito “sabe” disso? – se isso acontece, como se processa, quando e como se dão essas rupturas, ou, em outras palavras, em que construções imaginárias e ideológicas se efetiva o dano? Além disso, reconhece(-se) na imagem por/para ele construídas - predominantemente a de homem trabalhador e honrado, merecedor de homenagens – o lugar daqueles que falam, o lugar que lhe é atribuído, por obra e graça da política? Para tais considerações, assentar-nos-emos no que Rancière desenvolve na obra O desentendimento ([1995] 1996); uma vez que pensamos haver o que chamamos esforço para a reparação e busca de consenso19 e é para

19 Por consenso, consideramos Orlandi (2010c): para a autora, o consenso é “fabricado”, e tal

processo, apoiado na prática da opinião pública, forja um ideal para “solucionar satisfatoriamente” conflitos sociais ao instituir um “nós” coletivo (e homogêneo) sobre o qual incidem políticas públicas que atendam a aspirações e sentimentos compartilhados por uma maioria; no entanto, considerando que as relações sociais são dissimétricas, a produção do consenso estaria sustentada em uma concepção de vínculo social que produz a segregação (não mais a exclusão); em outras palavras, há,

esses recortes que vamos dirigir nossa atenção, pois pensamos que há, na contemporaneidade, uma busca pela dissolução das zonas de litígio, pela presença do político na política que pensa os sujeitos: pelos discursos sustentados em/por diferentes materialidades discursivas, não estaria aí, nesse processo simbólico de subjetivação, a efetivação de imaginários (e efeitos) de unidade, identificação e pertencimento? Com isso analisado, pensamos em estabelecer paralelos entre os discursos baseados no critério diferentes materialidades, pois questionamo-nos: repetem-se, aproximam-se ou distanciam-se? Além disso, se há uma rede de saberes, de sentidos entrelaçados, como ela se dá: há faltas, esburacamentos, saturações? Que regularidades nos apresentam, discursivamente, de seus imaginários? A esse movimento de compreensão da rede de sentidos, estabelecemos respostas a algumas questões para nos servirem de guia. Ou seja, na construção do imaginário, como funcionam as subjetividades do sujeito ítalo- brasileiro: estaria aí um sujeito dividido?; ocorreria a desconstrução desse imaginário, em que signifique se dar conta de “desentendimentos” e de “danos”, havendo hoje formas de reparação e consenso? Nossas considerações finais sobre o estudo desenvolvido apontam o reconhecimento de que esse sujeito busca reinscrever-se em outros lugares.

no esfacelamento das diferenças, um apagamento do político, homogeneidade essa instituída pelo discurso da mundialização.

Imagem 1 – Monumento construído na RST 287, em 1995. Homenagem aos 118 anos da chegada dos imigrantes italianos à Quarta Colônia e aos 120 anos de chegada ao Brasil. Sinaliza o acesso a Silveira Martins (berço da Quarta Colônia).

2 DAS UTOPIAS, DAS ILUSÕES E DOS IMAGINÁRIOS: LUGARES DE